terça-feira, 12 de março de 2013

3132) Barrados no clube (13.2.2013)





(Sérgio Sampaio)



Groucho Marx, numa frase famosa, definiu num paradoxo a atitude dos marginais e rebeldes de todos os tempos: “Não quero entrar num clube que me aceite como sócio”. 

O paradoxo inicial se dá pelo fato de que o sujeito sugere que, se o clube o aceita, não pode prestar. Se o clube o aceita, não merece respeito, não é digno do seu interesse. Se o aceita, está abaixo dele, ou na melhor das hipóteses no mesmo nível dele... e nesse caso que diabo ele vai fazer num clube furreca como esse?!

Na verdade, os artistas marginais (e os marginais em geral) gostam de ser escorraçados, gostam do preconceito, gostam de ser vistos com desconfiança. 

Em seu livro sobre o marginalíssimo Sérgio Sampaio (Eu quero é botar meu bloco na rua, Ed. Língua Geral, 2009), Paulo Henriques Britto lembra que “a associação entre rock e a condição de outsider é um tema recorrente no período pós-tropicalista”, e cita a canção em inglês do disco londrino de Caetano que diz: 

“Você sente uma vaga sensação de orgulho quando lhe dizem: ‘Aqui você não pode entrar – cai fora’ – rock and roll é isso aí”. (“That’s what rock and roll is all about”).

Ser barrado na porta de alguma coisa dá a idéia de que você é considerado indigno, mas também sugere que você é considerado perigoso, é uma ameaça. 

Faz bem ao ego ser barrado. Ser perseguido produz medo, mas a adrenalina que combate esse medo é pensar que quem é perseguido é porque tem algum poder. É a fantasia compensatória de todos os “slans”, de todos os “precogs”, de todos os X-Men da FC: somos barrados porque somos uma ameaça. 

Quem é barrado é porque pode, se entrar, botar a perder o Paraíso Terrestre de alguém. Pode “desafinar o coro dos contentes”, como ameaçavam Torquato Neto e Macalé. Pode “estragar o piquenique” como garantia Paulo Leminski. Pode “invadir sua praia” como prometia ferozmente o Ultraje a Rigor.

Gilberto Gil, no “Rock do Segurança” (“O segurança me pediu o crachá / eu disse: Nada de crachá, meu chapa...”) é quem melhor cristaliza essa sensação de superioridade. O mendigo/ET barrado na porta da mansão é mais livre, mais louco, mais inteligente, mais perigoso e mais potencialmente feliz do que todos os burgueses trancafiados em sua Calle da la Providencia. 

Ser barrado quer dizer que você foi reconhecido, quer dizer que eles admitem o transtorno que você pode causar se cruzar aquela porta, como os Piratas do Tietê ou os Palhaços de Laerte. 

Ser barrado é a condecoração final para quem não quer entrar no Clube – quer ser mesmo é reconhecido como ameaça ao clube.  Até porque, como lembra Gil, “meu amigo – se eu quisesse eu entraria sem você me ver!”.










3131) "Quase Borges" (12.3.2013)




Nas suas derradeiras décadas de vida, Jorge Luís Borges viveu um tipo peculiar de celebridade. Cego, morava na companhia da mãe e de uma empregada, num apartamento confortável mas modesto. 

A TV argentina, imagino, não batia à sua porta toda semana para perguntar-lhe o que achava do hip-hop ou da crise entre judeus e palestinos. Quem o procurava eram poetas e jornalistas do mundo inteiro, que não acreditavam na própria sorte quando ele atendia pessoalmente ao telefone ou à porta, e concedia algumas horas de papo. 

Um desses felizardos foi o poeta Augusto de Campos, que em 1984 visitou o escritor e saiu de lá com anotações que redundaram num relato afetuoso e perceptivo, e na tradução de vários poemas de Borges. Tudo reunido agora em Quase Borges – 20 Transpoemas e uma Narrativa (Musa Rara / Ed. Terracota, São Paulo, 2013).

Augusto de Campos talvez seja nosso maior tradutor de poesia, e certamente um dos responsáveis pela elevação da qualidade e do rigor dessa arte entre nós. Até os que não gostam nem dele, nem de sua poesia, nem de suas posições teóricas tiram o chapéu para o modo como praticou e conceituou, para mais de uma geração, a impossível tarefa de traduzir poemas. 

Toda tradução é uma interferência, porque coloca no poema alheio coisas que não estavam lá na versão original. Toda tradução é perda, porque deixa de incluir coisas que lá estavam.  Toda tradução é distorção – troque uma vírgula, uma sílaba, uma palavra, e o poema já está dizendo outra coisa. 

Como traduzir sem ser infiel? Essa é a pedra filosofal que os tradutores procuram em vão. Um tradutor é um alquimista que muitas vezes transforma ouro em chumbo, quando seu objetivo (irônico, fantasioso, inatingível) é transformar ouro em ouro.

As grandes ousadias tradutórias de Augusto de Campos foram feitas com poetas ingleses, russos, provençais. Traduzir Borges é mais fácil, pela semelhança de cadências, sonoridades e vocabulário entre o espanhol e o português. O verso de Borges é clássico, sereno, rigorosamente rimado e metrificado. 

A tradução de Augusto procura a fidelidade ao que é dito, e admite também certas descontrações de rima, em benefício da harmonia conjunta dos versos: rimar “Homero” com “madeiro”, “coisa” com “duvidosa”, “cinza” com “pisa”. Liberdades que fariam hesitar um tradutor mais melindroso, mas que ele se permite em função da sonoridade e da naturalidade. 

A tradução, principalmente de poesia, é um jogo constante de perdas e ganhos. Augusto segue Borges de perto, e, quando interfere de modo mais rebuscado (veja-se sua solução no primeiro verso de “O Golem”) o faz preservando o tom e a intenção do original.