terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

4431) O free cinema inglês (5.2.2019)



Alguns movimentos cinematográficos parecem ter sobrevida garantida através de estudos acadêmicos, retrospectivas em cinematecas, mostras em museus, livros-álbuns “fartamente ilustrados” para a gente botar na mesa de centro numa posição onde as visitas vejam.

Outros não. É o caso do free cinema inglês, que teve, pelo menos na minha formação como espectador, uma importância tão grande (e continua a ter) quanto primos ricos como a Nouvelle Vague Francesa, a Vanguarda Russa, o Expressionismo Alemão.

Os filmes eram geralmente em preto e branco, uma tonalidade de preto e branco que não existe mais, com um granulado típico que evoca fumaça, neblina, fog londrino. E aquelas terríveis vilazinhas operárias inglesas, com casas todas iguais embaixo de chuva. (Spider, de David Cronenberg, capta o horror daquilo.) Aqueles jantares silenciosos de gente carrancuda. Aqueles rapazes de rosto fechado, olhos perdidos, mãos nos bolsos, chutando lata, chutando mendigos.

Um ambiente depressivo com uma geração (a geração que foi atrás dos Beatles e dos Stones) que olhava prum lado e via a derrubada das ruínas da II Guerra, olhava pro outro e via o desabrochar de um consumismo “American Way” que eles não tinham grana para acompanhar.

E aquelas meninas pré-pílula, que já transavam pensando em aborto. E o mito da virgindade, obrigatória para umas, motivo de bullying para outros. E aqueles pubs ingleses onde, como diz Maria da Conceição Tavares, os caras ou estão bebendo em silêncio ou trocando socos.

O free cinema mostrava isso tudo. Era um movimento mais ou menos unido; ao que parece, com o passar do tempo foi se fragmentando na carreira-solo de alguns dos seus principais diretores.


Por exemplo, todo mundo conhece John Schlesinger como o diretor de Perdidos na Noite (“Midnight Cowboy”), mas ninguém ouviu falar de Billy Liar, um dos meus dez filmes preferidos, sobre um rapaz do interior que morre de vontade (e de medo) de ir tentar a carreira artística em Londres.


Karel Reizs dirigiu pelo dois bons filmes de sucesso na maturidade, Isadora (1968) e A Mulher do Tenente Francês (1981). Mas para mim ele é o diretor de A Noite Tudo Encobre (“Night Must Fall”, 1964), um estudo sombrio de um serial killer de aparência angelical (Albert Finney). Dias atrás, assisti uma boa parte de seu documentário We Are The Lambeth Boys (1959), mostrando a vida de quem era jovem naquele tempo, e deixando bem claro o poder que teve o rock de arrebanhar e projetar tanta energia desperdiçada em tédio e em violência cega.


Tony Richardson se destacou dos outros porque fez um raro filme colorido de sucesso internacional, A Aventuras de Tom Jones (1963), que ganhou Oscars e mais uma penca de prêmios mundo afora. Mas para mim ele está todinho em dois filmes intimistas, P&B, com ar de semi-documentário às vezes: Gosto de Mel (“A Taste of Honey”, 1961) e The Loneliness Of The Long Distance Runner (1962).  


Não há como não falar no que foi talvez o mais famoso deles, Richard Lester, que dirigiu os filmes dos Beatles, dos quais A Hard Day’s Night (1964) tem todo o espírito free cinema de câmera solta na rua, atores não profissionais, montagem picotada.

Seu filme mais típico, contudo, é A Bossa da Conquista... e Como Consegui-la (“The Knack, And How To Get It”, 1965), uma verdadeira coleção de estrepolias de câmera e edição, que ganhou uma Palma de Ouro em Cannes. Tenho aqui, revejo de vez em quando: algumas partes excessivamente teatrais (é baseado numa peça) estão meio datadas, mas o filme foi uma explosão de liberdade num cinema industrial careta, terno-gravata-e-cachimbo como era o inglês daquele tempo.

Lindsay Anderson foi outro que levou uma Palma de Ouro, desta vez com o anárquico e rebelde If..., crônica de uma revolta estudantil num internato, que revelou o ator Malcom MacDowell.

Tudo isto me veio agora à memória lendo no blog da London Review of Books uma lembrança sobre uma diretora desse grupo. Lorenza Mazzetti (diz o artigo) era o primeiro nome da lista do famoso Manifesto do Free Cinema.

O manifesto diz:

Estes filmes não foram feitos em conjunto, nem com a intenção de serem exibidos em conjunto. Mas quando foram agrupados, sentimos que eles tinham uma atitude em comum. Implícita nessa atitude estão a crença na liberdade, na importância das pessoas e no sentido profundo de tudo que é cotidiano.

Nós, como realizadores de cinema, acreditamos que nenhum filme consegue ser excessivamente pessoal.

A imagem fala. O som amplifica e comenta.

Tamanho é algo irrelevante. A perfeição não é um objetivo.

Uma atitude significa um estilo. Um estilo significa uma atitude.

Lorenza Mazzetti
Lindsay Anderson
Karel Reizs
Tony Richardson

O texto da LRB faz um resumo da carreira dessa cineasta, citando seus filmes principais: K (1954) e Together (1956). Este último pode ser visto em streaming aqui:


O free cinema já foi até chamado de “British New Wave”. Foi um movimento que de certa forma dialogava com a nouvelle vague francesa, ressalvadas as profundas diferenças culturais.

Brotou entre meados dos anos 1950 e ao longo dos anos 1960, em paralelo com o movimento dos Angry Young Men do teatro e da literatura (Kenneth Tynan, Doris Lessing, Colin Wilson, Allan Sillitoe, etc.), com a ficção científica da revista New Worlds (Michael Moorcock, J. G. Ballard, Christopher Priest, Brian Aldiss, etc.).

Tudo isto estava acontecendo ao mesmo tempo, simultâneo com o surgimento dos Beatles e dos Rolling Stones. A melhor maneira de entender um desses fenômenos é vendo-o em paralelo com os demais.

Agora, o free cinema periga não ser citado nem no Google. Mas quando folheio uma revista e vejo uma foto preto-e-branco de Rita Tushingham ou de Julie Christie, ainda sinto aquele nózinho na garganta e um gosto de mel.