quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

4547) A magia negra de Agatha Christie (5.2.2020)



Um dia desses vi por aqui na web o anúncio de que na Inglaterra estava sendo produzida, pela BBC, uma série de TV baseada neste romance de Agatha Christie, The Pale Horse (1961), e como era um dos vários que nunca li, achei por bem dar uma olhada. Não me arrependi. Lamento apenas (como sempre que leio um livro nessas circunstâncias) não ter lido 20 ou 30 anos atrás.

A magia negra, a feitiçaria e o mundo sobrenatural não aparecem com frequência na obra de Dame Agatha, que costuma ser voltada para outro tipo de Oculto: o inconsciente, as coisas que a gente pensa sem saber que está pensando, as coisas que nos pensam, nos guiam, nos levam a agir dessa ou daquela maneira. E que às vezes nos conduzem ao crime.

A expressão “the pale horse” é uma citação do Apocalipse, celebrizada literariamente num livro de contos de Katherine Anne Porter, Pale Horse, Pale Rider (1939), que não sei se Dona Agatha leu e guardou a imagem na cabeça. Pode até ter lido: fui checar agora e vi que o livro de Ms. Porter é ambientado durante a epidemia de influenza que matou 50 milhões de pessoas no começo do século, e que Agatha certamente acompanhou, já adulta.

Há um eco distante dessa temática neste romance dela, em que pessoas aleatórias começam a morrer de gripes e pneumonias variadas, em Londres e arredores. Uma combinação de circunstâncias faz chegar à polícia uma lista de nomes repassados por uma mulher, em seu leito de morte, para um padre, que logo em seguida é assassinado.

Os assassinos não conseguem roubar a lista (objetivo do crime), e a polícia começa a desconfiar que aquelas mortes naturais não eram tão naturais assim. E o que dizer das pessoas ainda vivas daquela lista? Estão sob ameaça?

O narrador é Mark Easterbrook, um historiador intelectual, de espírito investigativo, que lembra em alguns momentos os protagonistas dos romances policiais de Colin Wilson. Ele descobre que um vilarejo com o interessante nome de Much Deeping abriga uma conspiração que envolve rituais satânicos, fenômenos mediúnicos, mortes provocadas à distância... Ou será tudo imaginação?

As histórias sobrenaturais de Agatha estão reunidas em The Hound of Death (1933), doze contos interessantes, onde o que mais se destaca é o menos sobrenatural de todos, “The Witness for the Prosecution”, que depois seria transformado numa peça e num filme de sucesso. Ela se detinha geralmente em temas como premonição, mau olhado, fatalidades inexplicáveis, clarividência, etc.

The Pale Horse faz uma citação explícita ao Macbeth, porque grande parte do seu enredo tem como foco três “bruxas” idosas e excêntricas que se dedicam a rituais misteriosos.

Por outro lado, e aqui está uma interessante camada nova de significado, o romance pertence à fase moderna da autora, onde ela se dedica a comparar os “velhos tempos” com os “novos tempos”; nessa linha, o melhor dos que li é o Espelho Quebrado (“The Mirror Crack’d From Side To Side”, 1962). O choque entre gerações e entre modos de agir, visto pelos olhos de uma mulher já sessentona ou setentona.

Entre os personagens de The Pale Horse a gente encontra tipos tradicionais, como o milionário colecionador, o pároco interiorano, as vizinhas fofoqueiras e os funcionários aposentados de tantos outros livros. Mas há também as moças londrinas de saia curta ou de calças compridas colantes, que bebem nos bares; há empresas de pesquisa de mercado; e há, perpassando todo o mistério do livro, uma conversa difusa sobre “energia negativa”, “raios mortais”, “ondas mentais”, “cérebros eletrônicos” e todo um jargão de pós-guerra, de princípio da era espacial.

O sobrenatural escondido no vilarejo de Much Deeping pode ser uma força bruta, primitiva, ancestral, talvez a malignidade cega e primordial que inspirava Arthur Machen e Algernon Blackwood; mas ela pode estar se manifestando através de aparelhagens elétricas e eletrônicas, e é isso que deixa Mark Easterbrook (e o Inspetor Lejeune) com a pulga atrás da orelha. E se, afinal de contas, esses poderes mágicos existirem de fato? E se forem apenas mais uma força da natureza que até então não conhecíamos, como a energia atômica?...

Boa parte do romance policial no pós-guerra assume essa dualidade entre ocultismo e ciência (ou pseudo-ciência), e The Pale Horse talvez seja um dos exemplos onde a autora melhor consegue se equilibrar no fio de arame da dúvida até a resolução (bastante satisfatória) nos capítulos finais.

E tão importante quanto isto é a capacidade dela em descrever os tipos dos vilarejos do interior, seu comportamento, seus valores, suas manias. E seu mergulho sempre alerta nos porões da maldade, da crueldade e do sadismo, e do impulso misterioso que leva algumas pessoas à cegueira moral e ao crime.

Ao comentar as bazófias das bruxas que se dizem capazes de matar à distância, uma personagem diz:

Como regra geral, pela minha experiência, as pessoas realmente malignas não vivem se gabando. Conseguem ficar quietas a respeito da própria maldade. É somente quando seus pecados não são tão graves assim que elas se dedicam a comentá-los. O pecado é uma coisa tão degradada, tão pequena, tão ignóbil... Para essas pessoas é terrivelmente necessário fazer com que ele pareça algo importante e grandioso. (p. 68)

E no final, Easterbrook e o Inspetor Lejeune comentam os crimes:

-- O que me deixa perplexo, sempre, – [disse o Inspetor] – é pensar como uma pessoa pode ser tão inteligente e ao mesmo tempo tão estúpida.

-- A gente sempre imagina um grande criminoso – disse eu – como sendo um personagem imponente e sinistro, uma personificação do Mal.

Lejeune balançou a cabeça.

-- Não, não é bem assim – disse ele. – O Mal não é uma força sobre-humana, é alguma coisa menos que humana. Um criminoso é alguém que quer se tornar importante, mas nunca terá a importância com que sonha, porque será sempre algo menor que um ser humano. (p. 185-186)

Não é uma formulação tão elegante e complexa quanto a da “banalidade do Mal” de Hannah Arendt, mas é também uma boa descrição da nossa experiência no dia-a-dia.



(Agatha Christie)