quinta-feira, 3 de junho de 2021

4710) Minhas canções: "Alpinista Social" (3.6.2021)



Algumas músicas dão um trabalho danado pra fazer. A gente mexe nelas durante meses, às vezes durante anos, até achar que ficaram com jeito. Outras não: parece até que chegaram prontas.
 
Esta aqui surgiu numa tarde meio ociosa, o telefone tocou e era Lenine, com uma idéia e uma proposta. Ele vinha tentando entrar na rinha disputadíssima de músicas para trilha sonora de novelas da TV Globo. Além de render alguns caraminguás em direitos autorais, isso servia como uma boa vitrine para compositores e intérpretes.
 
Corria o ano de 1990, pelo que calculo. Tínhamos acabado de compor um samba, “Virou Areia”, que ganhara um dos prêmios no Festival de Avaré, a FAMPOP. A esta altura já tínhamos composto alguns sambas de sucesso para os blocos da Zona Sul (Suvaco do Cristo, Simpatia é Quase Amor). Que tal emplacar um samba numa novela? A novela da vez era Lua Cheia de Amor, que a Globo estava gravando e estrearia em breve. Ele pegou o carro e foi lá em casa, no Catete.

 
O conceito – música de novela tem que ter um conceito – era simples. A personagem se chamava Kika Jordão, e ia ser interpretada por Arlete Salles. Era uma mulher de classe média fascinada pelas colunas sociais, pela vida das socialites, e querendo se enturmar no meio delas. Uma mulher sem muita classe, querendo bancar a “phyna” e batendo na trave o tempo todo. O marido trabalha com algo relativo a roupas, tecidos, etc.
 
Em inglês a expressão para esse tipo de gente é “social climber”, alpinista social. Foi esse o ponto de partida. Lenine fez uma levada inicial, cantarolada na base do tã-rã-rã, do lá-rá-rá, e os versos foram surgindo.
 
Apesar da idade ela nunca se cansa
de entrar nessa dança e sair no jornal...
E tem sempre um plano
por debaixo do pano:
ela é alpinista social...


(Arlete Salles, como "Kika Jordão")
 
“Por debaixo do pano” é uma alusão talvez pouco sutil à profissão têxtil do marido. Tínhamos que falar um pouco nas pessoas que querem “falar estrangeiro” ou citar nomes de gente famosa, e esta foi talvez a estrofe mais divertida de fazer:
 
Vira a noite no drink a pensar no overnight
no hi-fi do society ela rodou...
 
O “overnight”, de triste memória, era a aplicação financeira que os bancos faziam diariamente para manter o poder de compra dos correntistas. Numa época em que havia inflação de até 2 ou 3% ao dia, na virada-da-noite era preciso recuperar essa perda.
 
Pensamos então em falar em gente famosa, porque Kika Jordão teria o cacoete habitual de dizer que “era assim com” A, B, ou C.  Na época, o comandante Jacques Cousteau vinha ao Brasil com frequência, não seria impossível alguém no Rio dizer que já tomara algum “champã” com ele. E veio o verso:
 
Plástica no nome, pra não dar vexame;
de francês só conhece Jacques Cousteau.
 
O problema é que não encaixava na métrica! O nome do cara tem quatro sílabas, não havia como encaixá-lo naquelas três notas. Precisávamos de um nome igualmente francês de três sílabas – e o que nos ocorreu foi Belmondo, o famoso Jean-Paul Belmondo de Acossado, que, trinta anos atrás, era mais lembrado do que agora. E ficou: “De francês só conhece Belmondo...”
 
(No YouTube, quem transcreveu a letra não conhecia o ator, e teve que se virar com “Belle Mondeau”, que não deixa de ser uma saída interessante.)


(Jacques Cousteau + Belmondo)
 
Mas os compositores eram (são) teimosos que só um par de mulas, e nenhum dos dois queria abrir mão do nome do bravo oceanógrafo. E assim saíram-se com esta preciosidade, iniciando a estrofe seguinte:
 
E já que custou
tanto a chegar        
no sopé da montanha principal...
 
Com este, garantimos nosso lugar de honra entre os “20 Trocadilhos Mais Infames da MPB”.
 
Lenine gravou a música, com um ótimo arranjo e uma orquestração arrasante. Arlete Salles deu um baile com a personagem. E durante meses chega dava gosto ver as presepadas cênicas depois das quais ela dava uma rabissaca e saía de rua afora, com um sobe-som da música:
 
Lá vai ela, nas pegadas da moda...
 
Pense numa música feita em duas ou três horas, à base de café e bolacha Maria!  Fiquei muito satisfeito, e durante os meses seguintes pensava com meus botões: “Olha aí, como foi simples... Em uma tarde, abri para mim um caminho profissional novo: compositor de trilhas sonoras de novelas!  Vou emplacar muitas outras músicas nas novelas da Globo!”.
 
Ledo engano. Pra mim, foi a primeira... e única.
 
 
*******
 
A gravação de Lenine:
ALPINISTA SOCIAL
(Lenine / BT)
 
Apesar da idade ela nunca se cansa
de entrar nessa dança e sair no jornal...
E tem sempre um plano
por debaixo do pano:
ela é alpinista social...
 
Vira a noite no drink a pensar no overnight
no hi-fi do society ela rodou...
Plástica no nome, pra não dar vexame;
de francês só conhece Belmondo.
 
E já que custou tanto a chegar
no sopé da montanha principal,
ela se preza, ajoelha e reza
para ser alpinista social.
 
Lá vai ela, nas pegadas da moda,
na alta roda, quer passar sem pedigri...
Defasada, mas é boa aluna,
topa qualquer uma, nessa pressa de subir...
 
Lá vai ela... no hi-fi do society
Lá vai ela... quer sair no jornal
Lá vai ela... por debaixo do pano
Lá vai ela... alpinista social
Lá vai ela... sem pedigri
Lá vai ela... nessa pressa de subir
Lá vai ela...