terça-feira, 30 de agosto de 2022

4858) "Nope", o horror nas alturas (30.8.2022)




Está em cartaz por aí o filme Não, Não Olhe (“Nope”, 2022) de Jordan Peele, uma mistura de horror e ficção científica, do mesmo diretor do ótimo Corra! (“Get Out”, 2017).
 
Corra! é aquela história do rapaz negro que começa a namorar uma garota branca. Ela é rica, linda, e parece muito apaixonada por ele. Convida-o então para aquele momento mais temível na carreira de um namorado: um fim de semana na casa dos pais dela, “para que vocês se conheçam melhor...”  O rapaz preferiria, talvez, ser esfolado vivo por lagostas gigantes, mas a garota é tão legal e tão bonitinha que ele vai.
 
Não vou me deter nesse filme aí, basta dizer que as lagostas teriam sido preferíveis.
 
O ótimo ator Daniel Kaluuya volta neste filme. Ele é “O. J.”, e faz parte de uma família de adestradores de cavalos. O pai morreu em circunstâncias charles-forteanas: uma moeda caiu do céu e perfurou-lhe o crânio. Esse fato inicial dá o tom do filme. Coisas improváveis acontecem. E não são improváveis na vida real, que derrapa no bizarro o tempo todo. São improváveis no cinema de Hollywood, a mais invulnerável das bolhas narrativas.

 
No rancho que “O.J.” mora, com sua irmã Emerald (Keke Palmer), os cavalos começam a desaparecer. O mesmo parece estar acontecendo no rancho vizinho, onde são encenados espetáculos ao vivo de cowboys. O. J. e Emerald chegam à conclusão de que se trata de um OVNI que abduz os cavalos, e pedem auxílio a alguns malucos. Para destruir o OVNI e salvar a Humanidade? Não, apenas isto: filmá-lo e vender as imagens por uma grana interplanetária.
 
O filme tem um orçamento até respeitável (custou 68 milhões e rendeu o dobro, até agora), mas é um filme “B” em muitos sentidos, mas principalmente no fato de ligar um foda-se para as convenções de sucesso.
 
Procurarei não dar muitos spoilers, afinal o filme mal estreou. Prefiro falar sobre alguns temas que correm ao longo dele.
 
O filme tem um conceito interessante sobre os alienígenas. Começa com um mero disco voador, bem convencional, sendo avistado nos céus, mas evolui depois para uma forma orgânica e bem realizada, que em certos momentos lembra os seres submarinos de O Segredo do Abismo (1989) de James Cameron.
 
E tem um precedente ilustre: o conto de Conan Doyle, “O Horror nas Alturas” (“The Horror of the Heights”, 1922, em Tales of Terror and Mystery), onde ele postula a existência de monstros aéreos, gelatinosos e meio transparentes, que esvoaçam quase invisíveis nas camadas mais elevadas da atmosfera. O conto é das primeiras décadas da aviação, e Doyle, bom escritor de ficção científica, rapidamente se volta para esses novos campos inexplorados.


Diz ele a certa altura:
 
Um explorador pode descer em nosso planeta mil vezes seguidas e nunca avistar com um tigre. E contudo os tigres existem, e se ele se deparar com um deles na selva, pode ser devorado. Existem selvas na atmosfera superior, e elas são habitadas por criaturas piores que os tigres.


(Daniel Kaluuya, em "Corra!")
 
O racismo era o tema principal do filme Corra!, onde um rapaz negro, ao ser atraído para dentro de uma família de brancos, descobre que eles querem destruí-lo e metaforicamente “devorá-lo”. Ele reage com violência e consegue se safar, mediante uma verdadeira carnificina. Em Nope, o mesmo ator (Daniel Kaluuya) é ameaçado pela criatura alienígena, que tenta devorá-lo fisicamente; ele e seus amigos reagem com violência contra a criatura.
 
No primeiro filme, o tema racial está claramente colocado, o tempo inteiro. Em Nope, não: é como se os personagens fossem “pessoas”, apenas, pois o alienígena está à apenas procura de criaturas vivas – ele mostra aliás uma certa preferência pela carne dos cavalos. O monstro não distingue raças; aos olhos dele, somos todos iguais. Os negros (O. J. e Emerald) estão ali representando a raça humana.
 
Falei acima que é um “filme B”, e é preciso qualificar isto um pouco. No tempo em que os cinemas dos EUA tinham programação dupla, o filme “A” era aquele em cujo sucesso se apostava mais; o “B” era o contrapeso, o complemento da programação.
 
Nem sempre o filme “A” era o mais caro e o “B” mais barato. Era um pouco como o Lado A e o Lado B dos discos “compactos”, que traziam uma canção de cada lado. Nos discos, apostava-se no sucesso do Lado A e no Lado B colocava-se uma canção menor, guardando as melhores para o Lado A de novo disco a ser lançado no mês que vem.
 
Daí surgiu essa idéia – que me atrai – de que filme B, por esse conceito, é o filme que não se propõe a ser um enorme sucesso, que quer apenas se pagar e encaminhar o próximo. O filme A é aquele onde se espera ganhar bastante dinheiro, então se gasta mais grana; e já que se gasta mais grana a necessidade de retorno vai aumentando, em efeito cascata.
 
Expectativa de sucesso é uma desgraça, no cinema de Hollywood. Significa que todos os executivos num raio de quilômetros vão querer assistir as primeiras versões do filme pré-editado e dar palpite: “Muda a trilha sonora... Corta vinte minutos... Tira essa atriz e refilma as cenas dela... Bota uns números musicais pra alegrar...”  É o verdadeiro horror nas alturas.
 
Não, Não Olhe tem algo de Bacurau (Kleber Mendonça e Juliano Dornelles, 2019), em sua ambientação meio desértica, remota, longe dos centros urbanos, com pessoas de poucos recursos tentando enfrentar uma ameaça externa que (um detalhe simbólico nos dois filmes) corta sua eletricidade e sua conexão, ou seja, começa por eliminar “virtualmente” as pessoas. Depois disso, elas se tornam apenas “carne viva” em fuga, tentando se esconder. Ou reagir.
 
Tem algo também de Repo Man (Alex Cox, 1984), com a presença de um alienígena misterioso fazendo estragos e da reação meio desorientada de um grupo de pessoas comuns. Os protagonistas não são os cientistas atômicos e os generais do Exército de tantos “filmes de monstros da FC”. São gente comum, jovem, que ouve rock, que tem algum conhecimento prático de tecnologia e algumas noções meio fantasiosas sobre vida extraterrestre, uma mistura de cultura de almanaque com teoria da conspiração.
 
O filme é sobre isso, não é uma simples exibição de efeitos especiais (que aliás são bastante razoáveis). A todo instante aparecem algumas situações bizarras que são típicas do cinema autoral, e que no caso de um “Filme A” teriam que ser submetidas as uma verdadeira bateria de interrogatórios de executivos de estúdio, que são, por definição, a espécie alienígena mais antropófaga e robotizada.
 
“O estranho, o bizarro, o inesperado” – esse era o mantra do seriado Acredite... Se Quiser, sucesso de muitos anos na TV, inclusive no Brasil. O Believe It Or Not de Robert L. Ripley surgiu nos jornais impressos em 1919, o mesmo ano do clássico The Book of the Damned de Charles Fort, que explorava este mesmo território.

São idéias fantasiosas, lúdicas, que não pretendem convencer ninguém, e nesse aspecto essencial diferem das atuais teorias terraplanistas, sempre evangelizadoras em benefício próprio. A fascinação pelo que é bizarro e inexplicável nada tem de ciência: é narrativa em estado puro, narrativa imaginativa popularesca. O caldo nutriente de onde surgiu a ficção científica de cem anos atrás.



sábado, 27 de agosto de 2022

4857) O Rio das antigas (27.8.2022)



(Rio 1890, por Marc Ferrez)
 
Terminei recentemente a vagarosa leitura de Memórias da Cidade do Rio de Janeiro (Ed. José Olympio, 1955), de Vivaldo Coaracy. Foi grande a vontade de voltar de imediato à página 1 e começar tudo-tudo de novo, porque são milhares de fatos, explicações, relatos, transcrições e comentários sobre ruas, becos, avenidas, igrejas, praças e logradouros desta cidade. Tudo no estilo engravatado mas saboroso do historiador.
 
Eu nunca teria sido historiador, porque me faltam a paciência rastreadora e o rigor comparativo; mas sou um bom leitor de romances históricos, porque mantenho até hoje a curiosidade, e uma certa capacidade de mimetismo-mental, oriunda da literatura, que me permite visualizar com relativa facilidade um ambiente social bem descrito.
 
Isto me traz à literatura, porque defendo sempre a importância dos livros que, sem serem uma grande obra de arte literária, conseguem essa rara façanha de “retratar uma época” com certa vivacidade de espírito e empatia sensorial. O enredo pode ser pobre, os personagens de papelão, o diálogo pode ser clichê... mas alguns autores, fracos nesses departamentos, conseguem ser eloquentes no âmbito da descrição. São cronistas, retratistas, “descritores” – mesmo que não sejam contistas ou romancistas. São importantes e necessários, ao seu modo. É importante distinguir.


Em todo caso, larguei “V. Cy” e peguei Coelho Neto, um dos meus romances de formação (era um dos preferidos de meu pai): A Conquista, de 1899, que tenho na segunda edição (Lello & Irmão, Porto), de 1913. Para mim é o melhor livro do autor maranhense, de quem li vários na adolescência (lá em casa tinha uns 15). A conquista é a Abolição da Escravatura, que ele narra do ponto de vista de um grupo de poetas e jornalistas, jovens idealistas, farristas, sem dinheiro e cheios de ideais.
 
É quase um roman à clef, porque é fácil perceber quem é quem: José do Patrocínio aparece sob o próprio nome, mas “Otávio Bivar” é Olavo Bilac, “Paulo Neiva” é Paula Nei, “Anselmo Ribas” e “Ruy Vaz” eram pseudônimos usados pelo próprio Coelho Netto, que se divide nesses dois protagonistas, um de dezoito anos, o outro mais velho e mais rodado.
 
Mas acima de tudo é o retrato do Rio dos anos 1880, que ele reconstitui com um envolvimento que me entusiasma de novo (eu não relia este romance há mais de 40 anos). Eis um trecho da saída dos poetas, tarde da noite, na região dos teatro e restaurantes:
 
Pararam hesitantes no meio do largo. Tílburis moviam-se lentamente; de quando em quando um partia à disparada. A ronda passava vagarosa; os animais caminhavam como sonâmbulos, maquinalmente, a cabeça baixa e os soldados, derreados, iam como embebidos na luz magnífica que o astro branco vertia. O “Stadt Coblenz”, a “Maison Moderne”, o “Caboclo” regurgitavam iluminados; às portas, grupos discutiam aos berros, agitando bengalas e, mais adiante, o “Príncipe Imperial” transbordava. O povo enchia o saguão e despejava-se amontoadamente espraiando-se em direções diferentes, e as luzes do frontão do teatro extinguiram-se subitamente ficando a rua em treva. Rodavam carros abertos, bondes enchiam-se e, de longe, vozes diferentes anunciavam com furor “empadinhas de camarão”.

 

(...) A cidade dormia. Começavam a varrer as ruas. Uma nuvem densa de poeira empanava o brilho dos lampiões e, dentro dessa bruma espessa, dum tom alourado, moviam-se homens cantando e atirando vassouradas: carroças rodavam parando de quando em quando. Raras mulheres, debruçadas às janelas, cochilavam; tílburis passavam à disparada e os dois, em passos apressados, seguiam cosidos aos muros, com os lenços à boca. Apitos trilaram ao longe e, com estrépito sonoro, os soldados da ronda passaram a toda a brida através da poeira como dois cavaleiros fantásticos. Vinham rapazes cantando num vozeirão atroador. (Cap. 1)
 
Coelho Netto é vituperado hoje em dia por seu estilo churrigueresco, ou seja, ele nunca escrevia uma palavra comum se pudesse botar ali um termo alambicado, idiossincrático, abstruso. E, como todo autor que escrevia para preencher espaços, só largava um assunto quando não lhe ocorria mais nada para dizer. Há verdade nisso, mas o fato é que era um escritor sólido, bom segurador de histórias extensas, bom rabiscador de histórias rápidas. Produziu em excesso, talvez; mas sempre sabia o que estava fazendo.
 
A Conquista deve ser seu livro mais solto, mais coloquial, mais cheio de humor, ao descrever um grupo de poetas e jornalistas jovens, namorando atrizes, alugando a pena às ambições deste ou daquele; uma versão mais leve das Ilusões Perdidas (1843) de Balzac.  Lembra também os poetas mexicanos da primeira parte de Os Detetives Selvagens, de Roberto Bolaño (o diário do jovem García Madero): seus namoros, seus trocadilhos, seus pequenos golpes de sobrevivência, sua fascinação ingênua pelos grandes poetas do Hemisfério Norte.
 
É o Rio de Machado de Assis, mas Machado, lâmina de outro gume, não o reproduziu com essa riqueza de imagens, essa percepção dos “figurantes” como gente viva, essa vivência de ponta de rua e de lampião da esquina.
 
É um Rio surpreendente, por onde o mundo rural irrompe inesperadamente em plena noite, pegando o leitor de surpresa:
 
Vozes atroaram o silêncio e uma célere trepidação de rebanho em marcha fez com que os rapazes parassem colando-se à parede e logo dois campeiros surgiram, a cavalo, estalando chicotes, cantarolando e, em seguida, uma boiada a trote, os animais muito juntos, em bolo, silenciosos. Os grandes chifres entrebatiam-se e homens atiravam os cavalos à calçada ou passavam por entre os mansos animais, bradando, como nos campos: “Ehôoo!... toca!  Junta... êeh!...”  E a manada seguia e perdeu-se na poeira dourada donde apenas vinham os gritos dos guieiros.
– É o bife.
– Para onde vai isso?
– Para Niterói, creio eu.
Um bêbado resmungava cambaleando, às guinadas. Ouviram tinidos de campainhas e uma tropa de burros desfilou, sacolejando ceirões, a caminho do mercado.
“Vou-me embora... Vou-me embora!
É mentira, não vou não...
Se eu vou m’embora, faceira,
Deixo aqui meu coração”,
cantava languidamente o tropeiro escarranchado na bestinha viajeira, puxando a récua.
– Pleno sertão.
– É verdade.   (Cap. 1)
 
Sertão, cidade, cafés elegantes, pardieiros e cortiços, tudo se mistura nesse Rio de Janeiro que crescia aceleradamente, e que entre 1872 e 1890 praticamente dobrou de população, ultrapassando os 500 mil habitantes. 

A Conquista é um romance histórico, levemente histórico, porque a Abolição ocorre em segundo plano. Mais do que histórico é um romance de costumes, um romance que se volta para o modo como as pessoas vivem, seus valores, suas expectativas, seus objetivos, suas regras de relacionamento, etc. Para mim, além do sabor da escrita, é importante porque retrata uma certa intelectualidade literária urbana (que Machado também retratou em inúmeros contos) num momento crucial de transição.


 (Coelho Netto)


 
 
 






quarta-feira, 24 de agosto de 2022

4856) O papel do líder (24.8.2022)



(Moisés, por John Hembree)


Existe uma figura humana central, mais importante do que todos. É o Herói, é o Rei, é o Sumo-Sacerdote, é o General-em-Chefe, é o C.E.O., é o Presidente, é o Imperador, é o Líder...
 
Temos mentalidade monarquista. Precisamos de UM indivíduo onde focar nossas expectativas, nossa confiança, nossa obediência cega.  E, quando ele não corresponde, nossas expedições punitivas, com foices erguidas e archotes acesos.
 
Existem exemplos de líderes que se tornam arquétipos, alegorias da experiência humana.
 
Por exemplo: Moisés. Poucas figuras terão uma história pessoal tão cheia de episódios extraordinários, mas Moisés é sempre o símbolo evocado quando a gente quer falar de um Líder que não vive para presenciar a própria conquista. “Fulano de Tal foi uma espécie de Moisés, que conduziu o povo hebreu à Terra Prometida, mas morreu quando ela estava à vista, lá no horizonte...”
 
É o general ou presidente que morre antes do fim da guerra que ajudou a ganhar, como Franklin Roosevelt. É o craque da seleção que se machuca antes da decisão da Copa. É o líder oposicionista que segura o tombo durante os anos negros e morre às vésperas da redemocratização. Os exemplos são muitos e evocam uma imagem de tragédia por um lado (“Que pena! A pessoa que mais merecia, e o Destino negou!...”) e por outra uma imagem de desprendimento – como se ele soubesse desde o início que aquela conquista não era para ele, e sim para uma coletividade.
 
Um exemplo diferente é o do Líder egoísta, que quer a glória maior para si, porque afinal de contas ele é o Líder, e os seus vassalos que se virem.


("Balboa Avista o Pacífico", por  Tancredi Scarpelli)


A expedição de Vasco Nuñez de Balboa, atravessando horizontalmente a América do Sul, foi a primeira a avistar o Oceano Pacífico (eles tinham desembarcado, é claro, na margem do Atlântico).  Quando os índios locais garantiram que daquele morro ali adiante se avistava o mar, Balboa mandou que suas tropas se detivessem e escalou o morro sozinho – para ter a glória de ter sido o primeiro a avistar o outro oceano.
 
Comentei aqui este tipo de Líder:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2011/12/2742-epifania-do-lider-17122011.html
 
É o Líder que trabalha em função da sua própria imagem, como o cantor popular que diz aos músicos: “Quem tem que aparecer aqui sou eu!”.


(Ulisses e as sereias, por Robert Wallace)

 
Muito parecido com a lenda clássica de Ulisses e as sereias. O canto das sereias tinha a fama de ser belíssimo – mas enlouquecedor. Era como uma droga alucinógena: os marujos ficavam encantados com tanta beleza e perdiam o controle dos remos, do leme, das velas, e os navios se despedaçavam nos rochedos.
 
O que fez Ulisses? Chegando perto do local, mandou que seus remadores tapassem os ouvidos com cera e o amarrassem ao mastro. Para que todos continuassem surdos, obedientes, robotizados, tocando o barco para a frente. E ele, somente ele, pudesse receber a carga psicodélica da música das sereias.
 
É aquele líder que conhecemos tão bem, o líder muitas vezes bonachão, paternal, que trata os súditos ou os eleitores como crianças, crianças que não precisam saber de tudo, não precisam ser informadas sobre tudo, para que possam apenas trabalhar, cumprir seu papel e serem felizes. Gente simples, que não precisa "compartilhar as sofridas responsabilidades do Poder".
 
Exemplos não faltam, na história humana.


E um outro tipo pode ser comparado a estes todos. Michael Dirda, em seu leve e informativo Classics for Pleasure (Orlando: Harcourt, 2007), dedica um capítulo à obra de Plutarco, o grande historiador e biógrafo de vultos gregos e romanos.
 
A certa altura, ele cita a referência de Plutarco ao rei espartano Sous, que estava em combate contra os Clitorianos (sic):
 
E há também a história do rei Sous, que, cercado pelos clitorianos numa área seca e pedregosa, sem acesso a água, foi forçado a negociar com eles um acordo: devolveria a eles todas as terras que havia conquistado, sob a condição de que ele e seus homens pudessem matar a sede na fonte mais próxima. Depois dos juramentos e ratificações de praxe, ele reuniu seu soldados, e declarou que se algum deles abrisse mão da água receberia seu reino como recompensa; e quando nenhum deles foi capaz de aceitar, e depois que todos eles foram de um em um matar a sede, Sous caminhou por último até a fonte, lavou o rosto sem engolir uma só gota, diante da tropa inimiga, e recusou-se a entregar-lhes as terras conquistadas, uma vez que, de acordo com os termos do acordo, “ele e seus homens” não haviam matado a sede. (trad. BT)
 
Existem líderes e líderes.
 
 


 







domingo, 21 de agosto de 2022

4855) "Sandman", a série (21.8.2022)




Estou assistindo a série de TV Sandman, no Netflix. Comentarei agora os episódios de 1 a 6 desta primeira temporada, que correspondem mais ou menos ao primeiro volume dos quadrinhos, Prelúdios e Noturnos.  Comentarei os episódios 7 a 10 (e tem um extra, o 11) depois que reler o volume correspondente, Casa de Bonecas.
 
A série é extremamente bem realizada como obra autônoma e como adaptação de uma obra já existente, no sentido de que amplia e enriquece muitos elementos da obra original, permanecendo fiel ao seu espírito. Claro que diferentes leitores terão diferentes expectativas. Eu sou apenas um leitor casual. Não li nem a metade dos dez volumes da graphic novel. Leio porque gosto, não porque sou fã.
 
Acho bom lembrar que quem faz uma série assim não está se dirigindo apenas aos especialistas que conhecem cada detalhe e aos fãs que já leram 50 vezes cada história. Está se dirigindo a gente como eu, que conhece de longe a obra do autor, gosta, quer conhecer melhor, mas vê com olhos de espectador, não de crítico.
 
De todos os “Perpétuos”, os seres sobrenaturais que administram as vidas humanas, Morpheus (o Sonho, o “Homem da Areia”) é o mais interessante. É uma figura trágica, não porque um final terrível o aguarde, mas porque está preso a um papel, como a maioria dos “heróis” ou semideuses. Heróis não são livres: eles têm uma função a desempenhar e às vezes invejam nos humanos a nossa desorientação, nossa ignorância, nossa disponibilidade, nossa bagunça, nossa ausência de um roteiro cósmico a cumprir.
 
Morpheus, na tela, exibe o fatalismo de um gótico e a impassibilidade de um vulcano. Ele é menos humano do que o corvo que o acompanha, o previsível sidekick atrapalhado, tagarela, útil, presente em tantos desenhos animados para servir de efeito de contraste a um herói insondável e lacônico.



Assistindo a série não consegui deixar de ver por toda parte a paleta de Dave McKean, o capista que fez muito para “dar o tom” da série escrita. Ele pode não ter feito parte da equipe, mas serviu de parâmetro, de referência de implantes visuais. Cenas do sobrenatural em ação, sonhos, paisagens bizarras e de universo-fora-dos-gonzos estão cobertas por aquelas cores de um fogo enferrujado, borrifos espalhando-se sobre lâminas flexíveis, vultos e rostos deformados através dos quais se avista um bosque, uma carta de arcano ou um músculo dissecado. Xeroxes coloridas raspadas com lixa de madeira, colagens enxertadas sobre guaches pegajosas, tudo em movimento digital, como num fundo-do-mar por onde os personagens se deslocam.
 
Não faço restrições ao casting, à escolha dos atores. Personagens são máscaras. Já vi Macbeth interpretado por Denzel Washington e por Orson Welles, mas na minha memória afetiva seu rosto será sempre o do Jon Finch do filme de Polanski. Há uma enorme latitude de interpretação, mas também de risco, ao se mexer com personagens que o público acha que já conhece (e tem razões para isso). A questão principal é se o público entende o que o personagem significa, ou se apenas se acostumou com um tipo de ator. De minha parte, acho que só não poderia mesmo aceitar um Sherlock Holmes gordo ou um Nero Wolfe magro.


(David Thewlis, como John Dee)

A série é um enriquecimento da obra original, e penso assim porque alguns dos meus episódios preferidos nos livros (Caim e Abel, John Dee pegando carona ao fugir do hospício, as pessoas presas na lanchonete, o duelo no Inferno, a conversa entre Morpheus e a Morte) estão mais densos, menos extravagantes, mais carregados de uma maturidade onde dá para ver o Neil Gaiman de 60 anos conversando com o Neil Gaiman de 30.


(Neil Gaiman)

Tenho observado que uma boa parte do cinema/TV que se baseiam em temas de FC/fantástico precisam, por causa do assunto e da ambientação, recorrer a cenários impressionantes, extravagantes, rebuscados, surrealistas... Há a necessidade de propor um universo que o público nunca imaginou, e propô-lo visualmente, já que o meio é visual.
 
Muitas vezes o peso visual do ambiente toma conta da imagem e pressiona a ação. O exotismo do cenário, seja ele de paisagens sobrenaturais ou de arquitetura futurista, acaba virando um retentor da ação dramática, como se de repente a história inteira se visse enclausurada numa sucessão de aquários luminosos.


E então essas narrativas perdem a leveza que é a vantagem da câmera cinematográfica (esse Mercúrio com asinhas nos pés). E perdem o espaçotempo picotado pela montagem (=”edição”) e tornam-se, inesperadamente, uma espécie de teatro filmado. Uma sucessão de cenas estáticas, dialogadas, com um mínimo de movimentação e de marcações para os atores, o que se justificaria um pouco mais se os diálogos fossem (como no teatro filmado) de nível bem alto. Se a narrativa é assim, paradona, cheia de tablôs e de retórica, melhor assistir Shakespeare filmado por Kenneth Branagh.
 
Foi essa a armadilha em que caiu, por exemplo, a recente adaptação da série Fundação, de Isaac Asimov, que teve um bom primeiro episódio, inclusive com ousadias de enredo, propondo cenas (a explosão do elevador espacial) ausentes no original; mas depois desandou numa sucessão de reuniões políticas, com diálogos aliás bem pedestres, em cenários cuja escala monumental drenava toda a dramaticidade da ação, ao invés de conferir-lhe força.
 
Sandman tem escapado à maioria dessas arapucas, talvez pelo ritmo HQ da história de origem – em cada prancha/página uma ou duas reviravoltas na ação. É uma narrativa onde cenas de ação rápida e violência brutal ficam engastadas num arco de avanço mais lento, um tanto inexorável (a busca de Morpheus pelos três objetos roubados) que puxa a história para um “andar de cima” onde vigora o tempo dos Perpétuos.
 
Um tempo que em relação ao nosso é como o nosso (do mundo real) em relação ao tempo de um filme, onde tudo ocorre às pressas, em blocos sucessivos de ação retalhada por elipses. Personagens têm direito apenas a essas poucas horas de som e fúria sobre um palco, essas fatiazinhas de vida, entrecortadas, efêmeras. Quando saímos da sala de projeção, estamos de volta ao nosso tempo esférico, imutável, que não acelera nem retarda. Pobres personagens de filme: nós somos os Perpétuos deles.








quinta-feira, 18 de agosto de 2022

4854) A arte de perturbar o Universo (18.8.2022)



(imagem: telescópio James Webb)
 
Nos meus tempos de cantor independente, fui convidado a fazer um show voz-e-violão num Congresso de Físicos. Havia amigos meus na organização, e o congresso acontecia num hotel imenso e agatha-christiano de Caxambu (MG). Na tarde em que cheguei, passei algumas horas tomando cerveja com o prof. Roberto Ribas, os dois sentados a uma prudente distância da piscina, conversando sobre a arte de perturbar o Universo.
 
A década de 1980 já vai longe, mas lembro de ter insistido numa pergunta que ainda me aflige: Que distância um fóton é capaz de percorrer, Universo afora, depois de ter sido emitido pelo Big Bang, até chegar aos nossos telescópios? Um fóton perde energia? A luz cansa? Se sim, por quê? Se não, por quê? Ainda não achei uma resposta que eu entendesse.
 
Outro grão de dúvida que me ficou daquela longa conversa foi o modo como o Universo reage às nossas pequenas interferências.
 
Dei como exemplo a piscina, que se estendia deserta e plácida, diante de nós. Digamos que eu me aproximasse dela, enchesse uma caneca e levasse comigo aquela pequena quantidade de água. Claro que não ficaria um buraco na piscina. No instante em que eu erguesse a caneca, a água em torno preencheria aquele espaço. A piscina pareceria intacta; mas qualquer medição antes-e-depois acusaria essa diferença mínima.
 
(Digressão: Dizemos que “a Natureza abomina o vácuo”, mas acho que não é a Natureza, é a atmosfera.  Alguns artefatos (uma lâmpada doméstica, p. ex.) contêm o vácuo em seu interior. Se de repente fazemos uma abertura nele, as moléculas de ar invadem numa fração de segundo aquele espaço, preenchendo-o, como a água da piscina preenchia o buraco deixado pela caneca. O fluido mais denso tende a preencher o espaço ocupado por um fluido mais rarefeito.)
 
Minha questão era mais ou menos esta: A piscina inteira sabia o que estava acontecendo lá naquela extremidade, onde um rapaz cabeludo, de cócoras, enchia dágua alguma coisa e a levava consigo? Pode-se dizer que sim, porque o nível da água se reduzia por igual na piscina inteira, mesmo que numa fração de 0,0001 de milímetro. A água toda se re-arrumava para compensar aquela ausência.
 
Acho que o professor se saiu com alguma explicação de Mecânica dos Fluidos, numa linguagem acessível a um cabeludo que não concluiu sequer um curso de Humanas. Fiquei com uma certa impressão de que nossas perturbações no Universo obedecem à percepção newtoniana da “razão inversa do quadrado da distância”, ou seja, quanto mais longe do ponto de origem muuuuito menor a alteração.
 
(Digressão: visualizando a piscina com a forma retangular de um mapa-múndi, é como se uma canequinha de água retirada em “Campina Grande” produzisse um movimento nas moléculas de fluido localizadas em “Lagoa Seca”, “Queimadas”, “Riachão”, “Soledade”, etc., mas deixasse impassível e QUASE inalterada a posição dos fluidos do “Japão”, “China”, “Sibéria”, etc.)
 
Isto me veio à lembrança durante a leitura de um conto de terror de T. H. White, “The Troll” (1935).


(T. H. White)
 
Tudo acontece durante uma viagem do protagonista (pai do narrador, sempre designado como “meu pai”) à Lapônia. Nesse lugar gélido do extremo norte, o sujeito se hospeda num hotel e nessa mesma noite (uma noite clara, pois o sol não se põe nessa época do ano) sonha que há sangue entrando por baixo da porta que dá para o quarto vizinho.
 
Ele acorda (esse detalhe é importante – daqui por diante, tudo acontece rigorosamente no “mundo real”) vai até a porta, olha pela fechadura. E vê um Troll, um monstro de uns três metros de altura, devorando o corpo de uma mulher desmaiada. Quando termina, o Troll olha na direção da porta e seu olhar cruza com o olhar do homem que espreita pelo buraco.


(troll)
 
O homem se afasta dali, abalado, mas não tem coragem de contar o que viu. Pergunta na portaria, e lhe informam que o quarto ao lado do seu está ocupado por um casal de meia idade; um professor sueco e sua esposa.
 
Ele sai para caminhar na montanha, sobe, desce, atravessa um rio, molha-se todo, faz um lanche, vê paisagens deslumbrantes, que White descreve com uma prosa fluida, de imagens vívidas (trad. BT):
 
A vida é um inferno inexprimível, mas apenas porque de vez em quando é bela. Se ao menos pudéssemos ser miseráveis o tempo todo, se ao menos não existissem coisas como o amor, a beleza, a fé ou a esperança, se eu pudesse ter certeza absoluta de que o amor que eu sinto jamais seria correspondido... como a vida se tornaria simples! Poderíamos mourejar nas minas-de-sal siberianas durante todo o resto da nossa existência sem ligar para a felicidade. Infelizmente, a felicidade existe. Sempre existe uma chance (numa proporção de 850 para 1) de que outro coração irá se aproximar do meu. E eu não posso deixar de sentir esperança, de manter a fé, e de amar a beleza.
 
De volta ao hotel, ele ouve rumores de que a esposa do professor do quarto vizinho desapareceu. No refeitório, vê o professor à distância: parece um homenzinho miúdo, pacato, mas a certa altura os olhos dos dois se cruzam.
 
Sabe aqueles instantes de reconhecimento instantâneo, olho no olho, quando duas pessoas olham profundamente nas pupilas uma da outra, e penetram em sua alma? Geralmente acontecem antes que surja o amor. Eu me refiro ao reconhecimento claro, profundo, de olhos baços, que foi expresso pelo poeta Donne. Os olhares dos dois se encontraram e se envolveram numa trança dupla. Meu pai reconheceu que o professor era um Troll, e o professor percebeu que havia sido reconhecido.
 
Esse clima alucinatório persiste, principalmente pelas reiteradas afirmações (do pai do narrador) de que estava o tempo todo desperto, acordado, em plena posse de suas faculdades mentais. O Troll era real, diz ele. 

Era tão sólido quanto um guarda-roupa. A gente não tem que acreditar na existência dos guarda-roupas. Eles estão aqui, e têm quinas.
 
O contato com o Fantástico, no entanto, é doloroso demais, desconcertante demais. E ele diz a certa altura:
 
Teria sido muito simples para uma criança, que está ainda estabelecendo sua coordenação com o mundo, lidar com a presença do Troll; mas para o meu pai não era. Ele continuava tentando encaixá-lo de alguma forma, sem perturbar o universo.
 
E aqui deixamos o conto de T. H. White e voltamos para a estrada principal. O Universo, aqui, é o universo perceptivo, o que enxergamos, vemos, tocamos, somos capazes de conceber de maneira aceitável – mesmo admitindo que nele existe o desconhecido, o inesperado, o incoerente, o indefinível.  Mas... um Troll?! 


(O jovem T. S. Eliot)
 
 
O que significa perturbar o Universo? Em última análise, significa existir, tocar nele, produzir uma alteração por mínima que seja, deixar nele um grão de poeira, uma pegada, uma impressão digital, uma lembrança.
 
Quando o Fantástico irrompe em nosso universo e o perturba, é como uma pedra caída num lago tranquilo, uma mosca caída no leite ou (no símile famoso de Raymond Chandler) uma tarântula numa fatia de manjar-branco. O Universo aparenta ser uma ordem racional, harmônica, equilibrada, e de repente brota ali um cisco-no-olho, um fator de desequilíbrio.
 
E o que é esse elemento fantástico, esse Troll? Eu diria que é o próprio autor, o Ser Humano. É ele quem perturba o Universo com sua própria existência, com essa indisciplina de bicho-bruto, indisciplina que é ao mesmo tempo sua glória de existir e seu impulso para a destruição.
 
O contrário do Troll é J. Alfred Prufrock, o pudibundo herói do poema de T. S. Eliot (“The Love Song of J. Alfred Prufrock”, 1915), um daqueles jovens que hoje estariam de camisa polo e sapatênis, meio de mãos postas, deferente, solícito, a dizer: “Por favor... será que eu poderia comer um pêssego? Ou será que isso não significaria perturbar o Universo?...”


Prufrock é o indivíduo sem poesia (retratado justamente num dos melhores poemas do seu criador), um sensaborão, um “J. Pinto Fernandes” que entra aos tropeções, por acaso, na quadrilha amorosa alheia. Perturbar o Universo é sinônimo de existir, de ser gente, de fazer merda de vez em quando, ser politicamente incorreto, ser politicamente correto, fazer barulho, interromper uma coisa, desarrumar outra. Prufrock hesita antes de comer um pêssego porque no fundo ele, o reprimidão, é um Troll desejando arrancar com os dentes a cabeça de uma mulher desmaiada em seus braços. (Falo metaforicamente, é bom que se diga.)
 
O Homem é o Troll da natureza. A civilização produz uma realidade rígida, formalizada, pragmática, extrativa e destruidora (representada no conto de White por um tecnocratíssimo turista americano que ele conhece no hotel). E no meio dessa civilização, surge seu oposto simétrico, o Reprimido que retorna: o instinto animal primitivo, representado pelo Troll. O instinto animal do homem destruirá essa própria civilização com que ele está em vias de destruir o mundo.
 
Nós somos a perturbação do Universo, como (para encerrar) proclamou Paul Valéry no seu “Cemitério Marinho”:
 
Eu sou em ti a mudança secreta... Não tens senão a mim para conter teus medos! Meus arrependimentos, minhas dúvidas, minhas limitações, são o defeito de teu imenso diamante. (trad. José Paulo Paes)





segunda-feira, 15 de agosto de 2022

4853) Drummond: "Elegia do Rei do Sião" (15.8.2022)



(Drummond, por Drummond)

 
Carlos Drummond de Andrade utilizou em vários poemas um dos variados efeitos de “distanciamento” que seu contemporâneo Bertolt Brecht preconizava no teatro. No caso, consiste em projetar uma situação humana qualquer num ambiente exótico e distante, muito afastado da realidade imediata do público, para que este não se distraia na comparação de detalhes, na busca de verossimilhanças superficiais.
 
Para que a fábula se revele e se imponha com seu conteúdo cru de fábula.
 
Brecht fez críticas ferozes à Alemanha de seu tempo ambientando peças na China, em Nova York, ou em cidades imaginárias. Fazendo isso, ele dilui toda a “cor local” que tantas vezes interfere em nossa leitura de um livro ou um filme.
 
Drummond fala, em seu primeiro livro, do Czar búlgaro que caçava borboletas, fala de variados ambientes de capa-e-espada em “Balada do Amor Através das Idades” – e comenta com certa ironia a vida deste reizinho do Sião, que morreu porque não conseguiu fazer um filho homem.
 
Ele diz:
 
Pobre rei de Sião que morreu de desgosto
por não ter um filho varão.
Pobre rei de Bangkok educado em Oxford,
pequenino, bonito, decorativo,
que morreu especialmente para nos comover.
 
Há um tom de simpatia, de paternalismo, mas ao mesmo tempo um leve escárnio, como se fosse fácil, ou mesmo obrigatório, mangar dessa masculinidade incompleta. O que talvez fosse uma preocupação do próprio Drummond, que dois anos antes do livro tinha sido pai de Maria Julieta, a única filha que teve. Seria uma prefiguração do seu próprio destino? Drummond viria a escrever depois: “O filho que não fiz / hoje seria homem.” Um poema melancólico e resignado (“Ser”, Claro Enigma, 1948-1951).
 
O filho que desejava, a Ásia não deu,
e seu desejo de um filho era maior que a Ásia.
Pobre rei de Sião que Camões não cantou.


Por que Camões? Por causa do nome “Sião”, que no poema de Drummond se aplica ao país hoje conhecido como Tailândia, mas que Camões usou como sinônimo de “Zion”, ou Israel:

Sôbolos rios que vão
por Babilónia, m'achei,
onde sentado chorei
as lembranças de Sião
e quanto nela passei.
Ali o rio corrente
de meus olhos foi manado,
e tudo bem comparado,
Babilônia ao mal presente,
Sião ao tempo passado.
(Camões, “Redondilhas”, 1595)
 
É o pranto dos israelitas escravizados na Babilônia e lembrando com ardor da pátria perdida, conforme está no livro dos Salmos. Literariamente os “rios da Babilônia” se consagraram como um local de lamentações de um paraíso-terrestre perdido, das canções de exílio de um povo escorraçado. Chegou até à ficção científica, num conto clássico de mundo pós-nuclear, “By the Waters of Babylon” (Stephen Vincent Benet, 1937).
 
Mas o Sião que compete ao poeta mineiro é o Sião tailandês, é o dele, não o de Camões. E o dele nada tem a ver com a pátria destruída, e sim com um reino exótico do Oriente, que por vias transversas acaba cutucando na memória do poeta a lembrança do Rei Salomão e seu harém de concubinas:
 
Amou três mulheres em vez de dez mil
e nenhuma lhe deu um filho varão.
De sua costela real nasceu uma pequenina siamesa.
Ao vê-la, o rei caiu para trás como um europeu,
adoeceu, bebeu um veneno terrível e morreu.
 
Creio que “veneno terrível” é melodrama inventado pelo poeta, mas o resto é verdadeiro. O rei a que ele se refere é o rei Vajiravudh (1891-1925), que governou sob o nome de Rama VI. O jovem rei passou em branco ao longo de três casamentos, e acabou sendo pai de uma filhinha, a princesa Bejaratana. Ela nasceu em 24 de novembro de 1925, e ele morreu no dia 26, aos 44 anos.


(Vajiravudh, ou Rama VI)

Vajiravudh, educado em Oxford, foi um “rei intelectual”. Seus opositores o acusavam de “ocidentalismo” e de dedicar muito tempo à leitura dos clássicos e pouco à administração do reino – o que parece ser uma injustiça, dada a longa lista de modernizações que promoveu no país. Era uma espécie de D. Pedro II: fundou a primeira universidade do Sião, escreveu poemas, peças de teatro e romances. Traduziu Shakespeare e Agatha Christie, e ajudou a introduzir a literatura de detetive na Tailândia, tendo inclusive criado um personagem inspirado em Hercule Poirot, o detetive Nai-Thong-In.
 
Mesmo um currículo tão simpático parece não ter sido suficiente para reduzir a crueldade com que Drummond descreve seus últimos dias:
 
Seu coração enegreceu de repente,
o corpo ficou todo fofo.
Depois queimaram o corpo fofo e o coração preto numa fogueira esplêndida
e a alma do rei de Sião fugiu entre os canais.
Pobre reizinho de Sião.
 
É uma mistura de piedade e desdém. Ou, quem sabe, o problema sou eu, com minha leitura de quase um século depois, mexendo nas coisas. Literatura é um fenômeno quântico: cada vez que a gente examina a mesma operação, dá um resultado diferente. Poesia, então, nem se fala.
 
Vajiravudh (que era neto do Rei do Sião retratado no musical hollywoodiano O Rei e Eu, com Yul Brynner e Deborah Kerr) é um personagem que merecia uma elegia melhor. Um monarca do tipo “ponto fora da curva”. Ameaçado de assassinato em 1912 numa tentativa de golpe de vários oficiais do exército, perdoou os golpistas, dizendo que estavam lutando pelo bem do país. Em sua obra literária defendia o antigo código de honra da cavalaria: “Minha alma é de Deus, minha vida é do Rei, meu coração é das damas, minha honra é minha.”
 






sexta-feira, 12 de agosto de 2022

4852) Contracapa de Pix (12.8.2022)



&  tudo indica que o próximo Dilúvio será de água sanitária
 
&  quando a Censura proibir os vagalumes, soltem pirilampos
 
&  a gente se vicia em celular porque celular nos obedece instantaneamente
 
&  escrever bons versos nunca avalizou o caráter de ninguém
 
&  tudo que eu como, depois da Covid, está em preto-e-branco
 
&  queria ter a calma de um tigre, capaz de furar um sinal vermelho sem diminuir o passo
 
&  a possibilidade de um dicionário trilingue continua à espera de um exame objetivo
 
&  meu preço nem é muito alto, mas só me vendo a quem adivinhar, com exatidão de dígitos
 
&  coração de leão pode ser uma boa coisa, mas eu preferiria pernas de guepardo
 
&  é aquele tipo de jogador que prefere sofrer um pênalti do que fazer um gol
 
&  certos poetas têm a atitude do portador de uma mensagem em código, da qual conhecem a urgência, mas não o significado
 
&  a mente é um castelo sem corredores mas cheio de passagens secretas
 
&  não sei se aprendo clarineta ou se compro um telescópio
 
&  o negócio agora é afinar o coro dos descontentes
 
&  tem certas mulheres que são dotadas daquele olhar de cartão vermelho
 
&  não há felicidade espiritual que resista a uma dor de dente
 
&  mesmo um jornal velho que está embrulhando peixe tem alguma informação que a gente não sabia
 
&  é interessante como as pessoas sem caráter geralmente sabem que são assim, e se sentem muito bem, obrigado
 
&  o que se vê é o conflito entre a Vetusta Ciência de Formalizar o Espírito das Leis contra a Nobre Arte de Ludibriar a Arbitragem
 
&  acompanhar a Política pela imprensa é como acompanhar futebol pelo rádio
 
&  a Verdade, sem beleza, é utilitária e rude; a Beleza, sem verdade, é frívola e desnecessária
 
&  como é que uma imagem do tamanho de um selo é capaz de encher uma sala?
 
&  o impulso de Tânatos não é o de desejar a morte, mas de não dar importância a ela
 
& a verdade é que quando as pessoas que se preparam para o pior começam a ficar impacientes porque o pior demora a acontecer
 
&  quem tem dinheiro nem lembra que ele existe, e quem não tem não pensa noutra coisa
 
&  o segredo da vida é saber entrar e saber sair, saber falar e saber ouvir, saber subir e saber descer
 
&  não quero parecer pessimista, mas a verdade é que nós ainda somos felizes, e não sabemos
 
&  ninguém é obrigado a ler o que não gosta, o que não aprova, o que não entende; cada um só lê o que consegue ler
 
&  ninguém me tira da cabeça que “C.E.O.” é apenas uma maneira esnobe de dizer “sinhô”
 
& tu te tornas eternamente responsável pelo que os teus orientandos publicam
 
&  qualquer coisa neste mundo pode ser provada com o auxílio de um único exemplo
 
&  a gente só deixa de tratar os filhos como bebês indefesos quando eles começam a nos tratar como velhinhos defasados