quinta-feira, 30 de abril de 2020

4575) A ausência patológica do medo (30.4.2020)




(Jared Kushner e Ivanka Trump)


Anos atrás, numa reunião social, conversando sobre política (aquela conversa em torno de uma mesa com uísques e cervejas, onde a gente conhece apenas um terço dos participantes), alguém tocou no nome do ex-presidente Fernando Collor.

Houve a malhação-de-Judas habitual (claro – ele já tinha sido defenestrado do Poder), mas me chamou a atenção o depoimento de um dos presentes, que disse conhecê-lo pessoalmente.

– Collor é o exemplo típico do cara produzido para ocupar o poder: familia de políticos, bons colégios, boa formação, boa base cultural, boa oratória... Mas existe nele um traço que o diferencia do resto dos políticos. Ele tem o que na medicina, na psicologia, é chamada “Ausência Patológica do Medo”. É um traço quase de psicopatia, e não está necessariamente relacionada a mau-caratismo, crueldade, etc.  É simplesmente o sujeito que tem 100% de certeza a respeito de tudo que pensa, que diz e que faz. Torna-se um cara perigoso porque não lhe passa pela cabeça que alguma ação dele possa não dar certo.

E de fato, aquela imponência varonil de Collor, caminhando na rampa do Planalto com a empáfia e a autoridade de um granadeiro prussiano, sempre produziu uma impressão muito grande no povaréu. Naquela fervilhante campanha de 1989, quantas vezes em mesas de bar eu vi comentários do tipo “Esse aí é macho mesmo, com ele não tem nhém-nhém-nhém...”.

(Digressão: “nhém-nhém-nhém” era o equivalente a “mi-mi-mi” trinta anos atrás, e foi posto em circulação por Fernando Henrique Cardoso.)

Isto me veio à mente lendo um artigo de Michelle Goldberg no NYTimes, onde ela cita o livro-pesquisa de Andrea Bernstein sobre o trêfego Jared Kushner, o conhecido genro de Donald Trump. 

Kushner detém hoje em dia, nos EUA e por tabela no mundo, um poder inconcebível para gente como eu, que anda de ônibus e volta do “Extra” carregando sacolas. Valendo-se do inevitável “berço” e do previsível “altar” (casou com a filhinha do potentado), ele ganhou uma posição desproporcional na política do país, sem ter sido eleito sequer para vereador.

Diz Bernstein:

Os profissionais que têm lidado com Kushner afirmam que, não importa o que ele esteja fazendo, “ele acredita que pode fazer aquilo melhor do que qualquer outra pessoa, e tem uma confiança suprema em sua própria capacidade e seu próprio julgamento, mesmo quando não sabe do que está falando".

Isso bate com uma frase que a imprensa cita às vezes. Em 2006 Kushner comprou o jornal The New York Observer, e logo entrou em choque com o editor-em-chefe, Peter Kaplan, que produziu a divertida frase a seu respeito: “This guy doesn’t know what he doesn’t know”, algo como “Esse rapaz não sabe nem mesmo quais são as coisas que ele ignora”.

O mais interessante é que pessoas como Fernando Collor e Jared Kushner (e os milhões que eles representam, e que são iguaizinhos a eles) são o exemplo mais típico do que a gente chama de “meritocracia”, porque são de famílias ricas e poderosas, estudaram nos melhores colégios, devem ter tirado excelentes notas, e tudo o mais.

Quando isso coincide de acontecer num indivíduo que se acha predestinado, que foi criado ouvindo todo mundo dizer que ele é diferenciado, que ele pertence a um grupo de poder e deve “sonhar alto”, que ele é um vencedor, etc. e tal, é meio caminho andado para o cara se achar um super-homem.

E o problema fica ainda maior quando ele tem esse pequeno desvio psiquiátrico, a “Síndrome da Ausência Patológica do Medo”, que na linguagem das ruas a gente chama de “falta de simancol” ou “falta de desconfiômetro”, e os mais calejados tratam como “a certeza da impunidade”.












segunda-feira, 27 de abril de 2020

4574) Dicionário Aldebarã XX (27.4.2020)



(ilustração: Michael Whelan)

O planeta de Aldebarã-5 tem uma civilização influenciada pelos colonizadores terrestres.  Seu vocabulário exprime as características da natureza do planeta e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura.  Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.


“Assambol”: sistema social de sorteios mediante o qual duas das pessoas inscritas têm que trocar de residência durante sete dias, cada uma delas indo dormir na casa da outra, conviver com a família da outra, exercer o trabalho ou outras funções que são desempenhadas pela outra. O processo é voluntário e encarado como uma oportunidade de enriquecimento da experiência pessoal, e geralmente resulta em amizades duradouras.

“Carrebing”: pessoa com temperamento entre egoísta e ansioso, que a faz ficar de pé diante de um palco prejudicando a visão dos que estão sentados, furar filas sob o pretexto de que está apenas pedindo uma informação no guichê mas sempre dando um jeito de ser atendida naquele momento, segurando aberta a porta do elevador para esperar outra pessoa que vai descer com ela mas está longe de estar pronta, e assim por diante.

“Sodibo”: praças e estações constantemente cobertas de decoração festiva (bandeirolas, luzes, etc.) para dar aos visitantes que passem por aquela cidade a impressão de que ela está em festa, e assim convencê-los a ficar; quando eles se informarem melhor, ouvirão dizer que a festa “foi na semana passada” mas em breve haverá outra, e com isto a circulação de viajantes é sempre grande.

“Sellchinork”: o ritual de, ao acordar pela manhã, permanecer de olhos fechados rememorando o que foi sonhado durante a noite, e anotar as partes mais significativas antes da primeira refeição do dia.

“Jorrops”: pequenas bolsas pregadas à parte de trás dos assentos dos transportes públicos, contendo livrinhos de natureza variada para serem lidos pelos passageiros durante a viagem; quem quiser levar um, deixa outro.

“Torinid”: lanche popular que consiste em espetinhos de bolas de carne tipo almôndegas, enfiadas uma a uma, cada qual com sabor diferente: apimentado, doce, empanado, guisado, com legumes, etc.

“Coniara-Tere”: período na adolescência em que o rapaz ou a moça tem que passar um mês inteiro na casa de uma família, ajudando nos trabalhos dentro e fora de casa, convivendo, estudando; ao fim de cada mês, a família decide para que casa ele(a) deverá seguir para avançar no seu aprendizado.

“Dossodip”: diz-se de certos trejeitos físicos ou cacoetes verbais que uma pessoa tem mas não se dá conta, mas as pessoas que convivem com ela se acostumam a perceber e com isso deduzir suas reações de desagrado, surpresa, interesse, etc.

“Tulunfass”: instrumento musical que consiste num pote de barro grande, arredondado, cheio de água até certo ponto, com penduricalhos metálicos que se agitam a produzem reverberações quando o exterior do pote é percutido com as mãos nuas ou com baquetas forradas de lã.

“Mariuk-dan”: o costume de, antes do sepultamento de uma pessoa, cada parente ou amigo se dirigir para a sepultura antes de ser fechada e colocar ali algum pequeno objeto (ou uma réplica dele) simbolizando o laço que o ligava à pessoa falecida.

“Edjiume”: pequenos suportes, geralmente de louça ou de metal, que se coloca sobre a mesa e nos quais pode-se prender um livro aberto. Servem para liberar as mãos das pessoas que gostam de ler enquanto fazem um lanche.

“Kam-Unin”: objetos, ou pequenas coleções de objetos, cuidadosamente acondicionados, que os pedreiros costumam inserir entre os tijolos, entre as telhas ou sob o piso de uma casa, durante a construção, e que servem como pequenas cápsulas-do-tempo (sempre têm a data gravada) para serem descobertas e apreciadas num dia futuro.












sexta-feira, 24 de abril de 2020

4573) Minhas canções: "Alicerce da Terra" (24.4.2020)





Por volta de 1982 eu passei uns meses no Rio de Janeiro, nas casas de meus amigos, antes de me mudar em definitivo. Numa destas eu estava no apartamento em que Mestre Fuba morava em Ipanema – como o pai dele vinha ao Rio com frequência, a trabalho, era cômodo manter um apartamento pequeno, onde o filho morava e ele se instalava quando vinha.

O filho hospedava também outros trovadores errantes, como era o meu caso, e numa destas resolvemos fazer um show coletivo. Juntamos uma turma de cinco: Fuba, Pedro Osmar, Jarbas Mariz, Paulo Machado e eu. Era a época das “coletivas musicais”, aquelas noitadas longas em que uma longa fila de cantores-compositores se sucedia no palco.

Começamos a ensaiar o show, que foi marcado para um espaço na Universidade Santa Úrsula, em Botafogo. Pedro Osmar, o líder do grupo Jaguaribe Carne, de João Pessoa (de onde surgiram, entre outros, Chico César e Totonho) era o dínamo propulsor dessa atividade toda. Para mim, “fazer um show” significava apenas comparecer no dia e cantar algumas músicas escolhidas na hora, mas Pedro tinha outra concepção. Era preciso organizar, viabilizar, produzir, divulgar...

Discutíamos muito sobre o nome do show e numa tarde, depois de uma sessão especialmente acalorada, Pedro Osmar se levantou e disse: “Amanhã a gente se encontra de novo e não é possível que ninguém tenha um nome bom!”. Eu respondi, com a modéstia habitual: “Pedro, vá tranquilo, que amanhã eu vou lhe dar trinta nomes possíveis para esse show.”.

De noite botei o papel na máquina (havia uma máquina de escrever portátil no apartamento) e fiquei tomando cerveja e inventando títulos, terapia de descontração mental que aconselho a todo mundo. Quando estava com 29, deu um branco, e o último não vinha de jeito nenhum. E aí coloquei, só de zoação: “E se alguém encostasse o Brasil na parede e pedisse pra ver os documentos?”.

Não deu outra: o nome do show foi esse, e saiu em todos os jornais.


(À frente: Pedro Osmar. Atrás, da esquerda para a direita: BT, Fuba, Paulo Machado e Jarbas Mariz)

É dessa época uma canção que acabou não sendo cantada no show, por ser muito nova. Lá no apartamento iam de vez em quando nossos amigos riograndenses-do-norte, da banda Flor de Cactus (não confundir com a banda homônima recifense, do começo da carreira de Lenine): Babal Galvão, Chico Guedes, Mingo Araújo, Cláuton “Neguinho” e outros, inclusive o paraibano Alex Madureira, que tocou com eles durante algum tempo.

Eles estavam se preparando para gravar um LP, seu segundo disco de carreira (o primeiro foi Pepitas de Fogo, 1981) e primeiro pela gravadora RCA. 

Esta minha letra, musicada por Babal, acabou sendo a faixa de abertura, e dando nome ao disco.

É um galope-beira-mar, estilo clássico dos cantadores, com uma variante que eu introduzi, repetindo as duas últimas linhas em cada estrofe, como se glosasse um mote. (Os cantadores nunca usam galope beira-mar para glosar mote.)


  
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YouTube (gravação original Flor de Cactus):

ALICERCE DA TERRA
Babal / Braulio Tavares

Meu canto é quem guia o impulso da onda
e faz o oceano emitir seu marulho
meu canto supera do mar o barulho
e faz com que a tempestade se esconda...
Meu canto é que exige que o mar lhe responda
e chama a tormenta pra lhe acompanhar
no dia que emudecer meu cantar
a própria garganta das águas se emperra...
E eu faço tremer o alicerce da terra
cantando galope na beira do mar

O vento passando através duma mata
arranca das árvores suas folhagens
a força de um rio contido entre margens
liberta-se quando ele cai em cascata.
Toda natureza tem a força exata
que leva o mundo a se transformar
nenhum ser vivente consegue escapar
à lei natural que governa e não erra...
E eu faço tremer o alicerce da terra
cantando galope na beira do mar

Se um dia você passeando na praia
ouvir um concerto solene e profundo
como se houvesse no ventre do mundo
uma orquestra que lá se oculta e ensaia,
você feche os olhos, se benza e caia
de joelhos na areia e comece a rezar,
pois quando essa voz principia a soar
nos céus e no inferno um portão se descerra...
Sou eu abalando o alicerce da terra
cantando galope na beira do mar

O mar é um cofre de imensos segredos
naufrágios, tormentas, batalhas e dores
desastres, mistérios, miragens, terrores
sepulcros, cavernas, abismos e medos...
A terra é uma arena de tristes degredos
miséria, doença, infortúnio e penar
maldade, violência, tortura e azar
cobiça, traição, assassínios e guerra...
E eu faço tremer o alicerce da terra
cantando galope na beira do mar





 ( Banda Flor de Cactus )


terça-feira, 21 de abril de 2020

4572) Meu curso de Natação (21.4.2020)





Fiz um curso intensivo de natação, num centro cultural que tem aqui entre Ipanema e o Leblon. Nem estava muito interessado, mas um amigo meu fez um trabalho para eles e ganhou algumas bolsas para alunos. Me ofereceu uma, e lá fui eu, por mera curiosidade.

As aulas foram à noite, de segunda a sexta. Na primeira noite tivemos uma conferência massa, de um figurão cujo nome esqueço, mas foi até de terno e gravata. Ele falou sobre “A Origem da Água”, assunto que nunca tinha me despertado a curiosidade, mas só naquela hora vi como era fascinante.

Claro que ele não estava falando na origem física da água, que afinal sabemos ser o famoso H2O presente na Natureza, e sim a origem dessa relação lúdica que o ser humano tem com a água. A água, explicava ele, se constituía como universo fluido do prazer, e como desafio carinhoso ao movimento corporal. Citou Gaston Bachelard, citou Jean Baudrillard, e outros nomes que anotei para futura referência.

Na segunda noite veio outro professor, que nos explicou “Os Segredos do Movimento”. Se a primeira conferência tinha sido filosófica, esta segunda teve um perfil de natureza mais técnica. Abriu com um Power Point minucioso a respeito dos músculos dos braços e das pernas, falou sobre os impulsos elétricos que o cérebro envia aos músculos, etc.  Depois exibiu uma animação mostrando exemplos de movimentos coordenados de braço, perna e pescoço, com contra-exemplos do “que não se deve fazer”.



Aula muito intrutiva, eu inclusive não sabia que temos dois hemisférios no cérebro, e que cada uma dessas metades coordena a metade oposta do corpo!  A esquerda comanda a direita, e a direita comanda a esquerda.

A terceira aula tinha como título (ainda guardo o programa, muito bem impresso) “O Mito de Sísifo”, e eu cocei a cabeça sem saber como encaixar aquilo no tema proposto. Mas a professora (uma francesa, que falava muito bem o português, com sotaque encantador) deu um banho, sem trocadilho.


Porque o mais importante na natação, disse ela, é o objetivo a ser alcançado, e a concentração mental a ser desenvolvida: ela citava o mito de Sísifo (aquele cara que empurrava uma pedra para o alto de um morro e quando ia chegando lá em cima a pedra escapulia, toda vez) para ilustrar que certas atividades podem parecer insensatas quanto à sua finalidade, mas se descobrirmos sentido e prazer na atividade em si, o meio torna-se um fim e isso nos traz a paz interior.

Voltei para casa transformado; um novo homem. Eu sentia uma verdade íntima muito grande no olhar dela quando cruzava com o meu. Os olhos dela eram cinza-azulados com reflexos índigo, uma coisa impressionante.


Na quarta aula, demos uma geral na história da natação. O professor era um sujeito pequeno, troncudo, meticuloso, de bigodinho bem aparado, que usava uma vareta de metal telescopável para apontar os gráficos, as tabelas de nomes e de números.

Ele dividiu tudo em vários períodos, que copiei diligentemente, mas agora só lembro o Período Empírico, o Período Olímpico, o Período Pré-Científico, o Período Científico... Lembro do momento em que ele apoiou a ponta da vareta na palma da outra mão, empurrou-a para dentro do cabo e disse com ar ameaçador: “E precisamos nos preparar para o Período Pós-Científico”.


A quinta e última aula foi com outra professora, uma senhora sessentona, de óculos, muito bem vestida e com excelente didática. Foi uma abordagem, como direi? Uma abordagem de cunho pessoal. Via-se que era uma ex-atleta, uma pessoa que apesar da idade mantinha um ritmo regular de atividade física. Alguém cochichou no meio da turma que ela era famosa, tinha ganho medalhas não sei onde.

Nadar, demonstrou ela, produz em nós um estado alterado de consciência. Nenhuma outra atividade envolve de modo tão radical nosso corpo, nossa mente, nossos instintos mais básicos, porque quem nada está escapando à morte em cada segundo e está empenhando cem por cento do seu Ser nessa conquista. Andar é falar a própria língua, comentou ela; nadar é dominar uma língua estrangeira. Mas – e aqui ela erguia um dedo de unha bem manicurada – uma língua estrangeira que é também a nossa Ur-Linguagem, nosso idioma primordial, no oceano esférico da placenta.

No final houve a entrega dos certificados, e um breve coquetel, em que confraternizamos. Gostei muito da experiência, e na semana que vem já me inscrevi para o curso de “Reportagem Jornalística”.











sábado, 18 de abril de 2020

4571) De Repente a Vida Acaba (18.4.2020)




Já comentei aqui no blog um ou outro livro de minha irmã Clotilde Tavares, “a Doutora”, se bem que para comentar os escritos dela eu fico na dúbia posição de não poder elogiar, porque alguém vai falar de panelinhas e de nepotismo cultural, e não poder criticar, senão ela me mata.

Não é bem assim, claro. Estou fazendo graçola porque o problema é de outra natureza – o fato de que temos um background literário muitíssimo semelhante, passamos a vida lendo e escutando as mesmas coisas, de modo que tudo que ela escreve me parece tão bem feito quanto uma toalha de renda e tão natural quanto água de moringa.

De Repente a Vida Acaba (Natal: M3, 2019) é o que ela chama de “primeiro romance”, embora eu também considere romances suas outras narrativas de ficção como A Botija (São Paulo: 34, 2003) e O Monstro de Sete Bocas (Natal: Jovens Escribas, 2015); mas isto são picuinhas de nomenclatura. Eu entendo: é porque os anteriores são fininhos, e este livro novo é do tipo que se você botar em pé numa mesa, ele fica.

Ver aqui:

Este livro de agora é a história em-paralelo de duas mulheres, duas amigas meio próximas, meio afastadas. A primeira narradora, Maria Eulina, é uma senhora com seus 60-e-bote-força, meio aposentada, que vive sozinha, e curte a dor-de-cotovelo de querer ser escritora e não saber como, apesar de ser uma mulher culta, lida, preparada.  E de repente (em circunstâncias folhetinescas que não revelarei aqui) chega-lhe às mãos um livro escrito por essa amiga, que gosta de se apresentar pelo cognome de Lady Midnight, uma figura mais jovem, doidona, biriteira, rapazeira, solta-na-buraqueira...

E a narrativa vai em paralelo acompanhando essas duas figuras, uma dando nota na vida da outra. É como se fosse a Perpétua (Joana Fomm) da novela Tieta lendo a autobiografia de Rita Lee e de parágrafo em parágrafo fazendo: “Humpf!...”

Existe uma longa discussão mundo-afora sobre essa coisa do ângulo feminino, o olhar feminino, a escrita feminina, etc., mas não sou doido de me meter nela. No livro, tem dois olhares femininos esgrimindo um com o outro o tempo todo, e a primeira impressão que tenho é o de ninguém ali estar se preocupando em ser feminina ou em feminizar coisa nenhuma.

Talvez por conhecer a autora eu ache isso muito natural: mas não vejo ali nenhuma preocupação em “contar uma narrativa feminina”, como não vejo em “contar uma narrativa urbano-nordestina”, e aliás o livro é as duas coisas o tempo todo. Quem conheceu Natal dos velhos tempos me desminta. (Me refiro à capital do Rio Grande do Norte, onde vive há décadas a renomada beletrista.)

Pra mim o mais bem realizado é a linguagem ou as linguagens, porque há duas narradoras. Lá na nossa casa – e agora dou um salto de pelo menos 50 anos no passado – lia-se e conversava-se sobre livros. Eu e a Doutora, que somos os mais velhos dos quatro irmãos, acabamos assimilando uma quantidade muito grande de leitura precoce, porque lemos Conan Doyle e Maurice Leblanc e Monteiro Lobato e Michel Zevaco e Shell Scott e Machado de Assis e Agatha Christie e Coelho Neto e Raquel de Queiroz...

Vai daí que a gente assimilou, precocemente, uma certa prosa antiquada, vitoriana (bote aí Doyle e Coelho Neto) misturada a uma prosa mais solta e “acanalhada” (bote aí Lobato e Shell Scott), sem atribuir valor transcendental nem a uma nem a outra.

Me lembro uma vez em que peguei uma carta de minha irmã para mostrar a alguém, alguma informação tipo endereço ou telefone a ser copiado. A pessoa observou que no fim ela se despedia dizendo: “Outrossim, saúde e fraternidade”, e disse: “Sua irmã é uma pessoa muito formal, hein?!...”  Não sabia que é uma piada-interna nossa, tirada do Tratado Geral dos Chatos de Guilherme de Figueiredo.

Esse uso tongue-in-cheek de qualquer voz narrativa ao alcance da mão é uma coisa que a pessoa faz instintivamente mas às vezes bate na trave de quem lê – e não entra. Paciência. Eu gosto quando vejo Lady Midnight narrando suas aventuras etílicas e notívagas, e sua via-crucis maternal, numa prosa tipo:

Despenco no sofá, atiro longe os sapatos, pés em chama, tudo em brasa, faz calor e esse jeans está tinindo de apertado, engordei. As crianças chegam da escola e me contam as novidades, domingo é dia do papai, a gente faz o cartão pra quem, pra o pai da gente mesmo ou pro Carlos? Quem é o pai de vocês, é o Carlos ou é o outro? É o outro. Então mandem o cartão para o outro e não me falem mais do Carlos, que eu não quero nunca mais ouvir falar no nome desse homem. Mas mamãe, e ele não é seu namorado? Era, era, de hoje em diante não é mais, entenderam, mamãe acabou o namoro, vão tomar banho, dê cá um beijo, vistam um short limpo e vão andar de bicicleta. (p. 110-111)

É prosa falada, mas um falado telegráfico, sob tensão, onde tudo é coloquial, mas não cede à tentação, poderosíssima em nossa pátria, de descambar para a oratória, a peroração, o bem-escrito; nããã, tem que ser assim, cortes telegráficos, o essencial vai sendo dito, e quem não entender uma coisa assim tenha paciência, desista de ser leitor e vá andar de bicicleta.

Ou então Maria Eulina, muito doutoralmente acadêmica, comentando com sobrancelha arqueada o livro da “amiga”:

Esse texto de Aline me traz de volta aquele tempo em que a gente se encontrava tanto, trabalhando juntas e trocando aqui e acolá uma idéia, um segredo, mas eu nunca consegui acompanhar o ritmo daquela doida. A vida era uma festa e o mundo era muito mais animado do que hoje, com essas festas sem graça, sem noção, tudo junto e misturado, ninguém sabe mais quem é homem ou mulher, e se a festa for de gente mais velha é uma pieguice sem tamanho, ainda dá para aguentar Abba, os Carpenters, ou Djavan, ou o Chico dos velhos tempos mas pelo amor de Deus, Emilio Santiago e Guilherme Arantes são demais para mim, (...) Parece que estou com ela de novo. Faz tanto tempo. Lembro dela de microssaia jeans, botinhas, uma camiseta linda, amarela, com a foto da Marilyn, o cigarro sempre aceso, o batom vermelho, o furor. Aline escreve como quem fala, escreve um texto vivo mas escreve mal. Muito advérbio, muito adjetivo, se cada um fosse um tijolo dava para calçar uma cidade inteira de principalmentes, exatamentes, completamentes... (p. 58-59)

Falei em Perpétua de Tieta mas foi mera maldade com a personagem. Maria Eulina, na verdade, ao ler as confissões sexuais da outra, parece mais é com a Rainha Elizabeth II tomando o chá das cinco com Madonna e pensando: “Vejam só, uma moça tão inteligente, tão cheia de energia, desperdiçando a vida dessa forma...”

As duas são parecidas e diferentes, e a curiosa relação entre elas, na narrativa, não é a de uma troca, um confronto, um conflito: é uma espécie de voyeurismo em mão única, porque Aline a Doida em momento nenhum de seus escritos se refere à existência de Maria Eulina a Séria, que podemos supor uma coadjuvante, com poucas falas, em sua vida de Rê Bordosa. O livro é contado do ponto de vista da "séria", é através desta e de seus comentários que acessamos, em mão única, a vida da outra – que está só vivendo, e cagando-e-andando (como ela diria) para quem esteja dando nota em sua vida.

Existem escritores homens capazes de “psicografar” personagens femininos (Machado de Assis, o contista, era um deles), mulheres idem com os masculinos (Ursula LeGuin é um bom exemplo), mas me parece que o segredo é não forçar a barra da caracterização, porque aí se cai no clichê. Pensar numa pessoa, e não num cabide de convenções. Às vezes o cara quer escrever uma cena sobre uma mulher – e bota ela bordando – ou amamentando – e não entende dessas mecânicas. Custava nada botar a moça dirigindo num trânsito ruim, consertando uma prateleira, chegando numa festa sem conhecer ninguém, escolhendo um presente? Mulher também faz isso.

O livro é da Editora M3 (Natal, RN) e maiores informações podem ser obtidas com a preclara escritora: clotilde.sc.tavares@gmail.com   










quarta-feira, 15 de abril de 2020

4570) Rubem Fonseca, 1925-2020 (15.4.2020)



Uma vez me perguntaram numa entrevista: “O que é a cara do Rio, pra você?”. Não respondi "o Corcovado" (apesar de morar pertinho) nem "a praia de Ipanema" (apesar de ter frequentado muitos anos). Respondi: a avenida Rio Branco e suas transversais.

Era (para mim) o Rio de Rubem Fonseca, o Rio dos escritórios, dos advogados, dos funcionários públicos, dos flanelinhas, das galerias comerciais, dos pequenos hotéis para encontros furtivos, dos puteiros caros, dos camelôs, dos contrabandos, das casas de câmbio, dos apontadores do bicho, dos apartamentos das garotas de programa, das uisquerias, dos sebos, das repartições. O Rio dos restaurantes fervilhantes, na hora do almoço, de homens de paletó aberto e olho lúbrico, e de mulheres com roupa arrochada e planos para o futuro.

Meu primeiro livro de Rubem foi um pocket da Artenova que li e reli até desmanchar (está aqui do meu lado agora): O Homem de Fevereiro ou Março, comprado na Bahia em setembro de 1973. Mistura contos de seus livros anteriores, de modo que até hoje não consigo lembrar de que livro é este ou aquele conto, originalmente. Depois achei num sebo de Campina O Caso Morel, seu primeiro romance, que passou meio em brancas-nuvens, até o estouro de vez com A Grande Arte e Bufo & Spallanzani, até hoje os meus preferidos.

A ficção de Rubem era uma ficção masculina, áspera, urbana, sem mi-mi-mi. Às vezes cruel, e às vezes impassível, como um médico que olha nos olhos da gente e diz: “As notícias não são boas”. Não era bom o Rio de Janeiro que ele revelava, por trás das praias e dos cartões postais. Era (é) um Rio onde se mata por dinheiro, onde se trai por poder, onde se faz sexo por vingança, onde se faz justiça por desafio, onde se esquece de qualquer coisa por simples conveniência.

Sua fauna era geralmente de advogados, policiais, pés rapados que tratam por “doutor", milionários medianos, barnabés empobrecidos querendo manter uma fachada mais cara do que o que a fachada protege, playboys de consumo conspícuo, comerciários, malandros saltando nos trapézios dos pequenos golpes de cada dia, mulheres calejadas arriscando tudo em cada aposta.

Não era o Rio do caderno turístico nem o da coluna social: era o Rio da página policial e do noticiário político-econômico, o Rio do trambique na Bolsa e do trocado no bolso, o Rio invisível que faz o dinheiro circular na direção certa e elimina, com zelo profissional, quem se atravessa no meio desse fluxo.

Com um passado de executivo em grande empresa e de ex-delegado de polícia que subia morro de arma em punho, ele fincou seu castelo literário nesse Rio sórdido e humano que também pertenceu a Nelson Rodrigues e suas paixões por-baixo-do-pano, a João Antonio e seus pirangueiros de esquina, a José Louzeiro e suas reportagens que não podiam ser escritas.

O Rio real onde cabiam as coberturas do Leblon e o Balança-Mas-Não-Cai da Central, o Rio onde valia e ainda vale a lei do “manda quem pode, obedece quem tem juízo”.

A prosa de Rubem era uma prosa que acredito sem similar antes dele, personagens de uma secura extrema de sentimentos admitindo arroubos de lirismo, um lirismo talvez usado como isca pela testosterona de quem se sabe implacável. A posse sexual como metáfora da existência social. O crime como afirmação de poder, de quem se distrai eliminando um obstáculo sem se desviar um milímetro do seu trajeto. O Rio impiedoso da bandidagem que em poucas décadas encurralou votos, vestiu paletó, aprendeu a dar carteirada e dobrou as apostas.

Era uma prosa coloquial ao extremo – Rubem Fonseca, como Nelson Rodrigues, sabia ouvir as pessoas, sabia como as pessoas falavam. É a fala das ruas, mas não o que geralmente indicamos com este termo, ou seja, a fala de pessoas de pé no chão e pouca leitura. É a "fala das ruas" de gente bem vestida que se exprime com a espontaneidade verbal de quem não tem contas a prestar a ninguém.

Uma literatura cruel, já se disse – e talvez tenha deixado essa triste lição, de que para fazer literatura é preciso assumir a crueldade, de que só através da crueldade o Brasil pode ser descrito e ganhar vida na página. Como acontece com tantos autores de peso, sua originalidade esmagava a de quem se aproximasse muito dele.

Personalista ao extremo, não dava entrevistas, não gostava de fotos. Marcava os diálogos de seus livros com aspas, à maneira inglesa, e não com travessões, como se costuma fazer aqui.

O mundo de Rubem era o mundo seco e de valores cambiantes do romance policial noir, onde, como na política, as lealdades e os compromissos têm validade apenas enquanto não surge uma oportunidade mais lucrativa.

Philip Marlowe, o detetive-cavaleiro-andante de Raymond Chandler, tinha o desafio de ser um homem pobre que tenta se manter honesto no interior de um projeto coletivo de desonestidade. Os personagens de Rubem Fonseca, quando têm esse impulso, ficam em confronto permanente com o impulso de ascensão social através de um jeitinho brasileiro qualquer: uma parada que fica-aqui-entre-nós, um aperto de mãos de personagens tipo Tarantino ou Scorsese, onde a traição já começa antes que as mãos se separem.

Leitor e conhecedor de ficção científica, teve infelizmente poucas incursões no gênero: incluí na minha antologia Páginas do Futuro (Casa da Palavra, 2011) seu conto O Quarto Selo (Fragmento), sobre um Exterminador que recebe a ordem de abater um figurão, num Rio futuro, tomado por depredações, atentados terroristas, incêndios e milhares de mortes por dia. Um Rio que ele já não verá, mas que talvez venha.












segunda-feira, 13 de abril de 2020

4569) Moraes Moreira, 1947-2020 (13.4.2020)




(Moraes Moreira, por Romero Cavalcanti)


Todo mundo tem um show inesquecível de Moraes Moreira. Eu lembrei do meu agora. (Em tempo: a expressão retórica “todo mundo” não inclui quem não está incluído; em termos dialéticos, é um sub-total homogêneo que ajuda a formar um total heterogêneo.)

Foi numa noite de verão em João Pessoa, na Praia do Jacaré – que pra quem não sabe é uma praia de rio, fica nos fundos da Capital, sem nada a ver com o Oceano Atlântico. Entramos pela noite (era um show de fim-de-tarde, num sábado ou domingo), ouvindo quando era pra ouvir, pulando quando era pra pular.

Saímos quase por último. Todo mundo pegando seus carros pra voltar pra cidade. Noite fechada cheia de estrelas, e a gente de calção, as esposas de canga, “à milanesa” de tanto punhado de areia jogado pra cima. Quando chegamos no matagal onde tinha ficado o carro (éramos umas seis pessoas), cadê que o carro saía? Acelerava, subia a poeira de areia branca, e o carro se enterrava mais ainda.

Nisso passa, a dez metros dali, no asfalto, uma camionete com uns dez maloqueiros em pé na carroceria. “Eeeei!  Ajuda aquiiii!”. Camionete pára, manobra, aponta os faróis. Descem correndo os maloqueiros, uns caras troncudos, bermuda, camisa amarrada na cabeça. Pega daqui, pega dali, um, dois, agooora!  Vrrruuuum!... O carro joga uma nuvem de areia e sai, fica esquentando motor. Os caras sobem na camionete, ninguém enxergou o rosto de ninguém. “Valeeeeu!...”

Pensei depois: pois é. Se fosse um show de Leonard Cohen, a gente ainda estava lá, no escuro, dentro do carro, chorando a morte da bezerra.

Música não é somente a arte de combinar notas musicais, é um indutor de frequências vibratórias que vão além das cordas do violão. Em lugares mais civilizados pode até ser outra coisa, mas no mundo onde eu cresci sempre funcionou como uma argamassa psicológica, um catalisador emocional, um agregador de momentos. Uma coisa secundária sem a qual a coisa-primeira não existiria.

Moraes teve três momentos na carreira, bem diferentes uns dos outros. Minha visão é incompleta, porque houve um período, nos últimos 20 anos, em que deixei de acompanhar, ou seja, deixei de comprar (ou pelo menos ouvir de A a Z) o “disco novo”. Não só dele.

O começo de tudo foram os Novos Baianos, um grupo com quem eu curiosamente impliquei no começo, porque me parecia abrasileirado demais. O Tropicalismo era excitante por ser uma abertura cosmopolita para o rock beatledylaniano, para a música eletrônica, para a poesia de vanguarda, para o mundo do design gráfico moderno, para a ficção científica (Gilberto Gil, principalmente), para a contracultura lisérgico-californiana...

E de repente lá vem aquela porção de paraíbas (ninguém tinha tanta aparência de “banda paraibana” quanto os Novos Baianos), tomando cachaça, tocando samba e jogando futebol! Era um plebeísmo, uma heresia, uma decepção. Um retrocesso, para quem já tinha tirado um visto rumo a Carnaby Street.

A decepção durou até eu começar a ouvir os discos e perceber que aquele era um tipo de música que eu continuava gostando – e que alguns amigos roqueiros, que eram da igrejinha do “Ou Isso Ou Aquilo”, passaram a considerar anátema. As canções de Moraes, Galvão, Pepeu Gomes, eram de um Brasil profundo pré-tropicalista; eram, num sentido adolescente e hedonista, produto da “república invisível” da MPB, como Greil Marcus viu nos Basement Tapes de Bob Dylan a existência de uma Old, Weird America. Só que, no presente caso, uma república descalça, buscando desesperadamente a alegria (como disseram os velhos baianos depois: “O samba é pai do prazer, o samba é filho da dor”).

Foi nessa época que os Novos Baianos produziram um show que tem para mim o melhor título de show de todos os tempos: O Desembarque Dos Bichos Após O Dilúvio. Bastava ver a foto.

(O segundo melhor nome-de-show é um show paraibano capitaneado por Pedro Osmar e o grupo Jaguaribe Carne, nos anos 1970: Músicos Desempregados Exibem Material Liberado Pela Censura.)

A segunda fase de Moraes, pós-NB, foi o sucesso desmedido de suas parcerias com Capinam, Fausto Nilo, Abel Silva, Fred Góes e outros poetas – o Moraes do afoxé, dos frevos eletrizantes, dos anos 1980-90 em que a Música Fonográfica Brasileira construiu uma torre-de-marfim e encheu com ela cantores e músicos e compositores e bandas que nunca tinham visto tanto dinheiro. (E depois nunca mais viram de novo – mas é outra história.)

Moraes foi um dos primeiros (como Caetano Veloso) a promover publicamente uma aliança musical entre o carnaval da Bahia e o carnaval de Pernambuco, mesmo tendo que suportar “as setas e balistas” dos talibãs de ambos os lados.

Nesta fase, aos meus ouvidos, ele  brotou de vez como compositor. Eu vejo nele um desses caras que são melodistas natos, que criam uma melodia como Picasso desenhava num guardanapo de restaurante. O muito reduzido ao essencial, o difícil sem esforço aparente.

Moraes é um melodista de gênio como Paul McCartney, o que é uma forma muito peculiar de ser original, visto que toda melodia vem de outras. “As notas são apenas sete,” como disse certa vez um rabugento Rogério Duprat, cansado de explicar o óbvio.

E alguém pega uns versos manuscritos numa folha de caderno, bota em cima da mesa, pega o violão, bota em cima da coxa, começa a dedilhar, e extrai dali uma melodia que parecia ter existido desde sempre, como uma máscara de ouro egípcia que o arqueólogo revela aos poucos, passando uma vassourinha.

O pop brasileiro, como o pop africano, é uma música para fruição coletiva. Engraçado que o jazz era assim também, cem anos atrás: a gente vê jazz no cinema norte-americano da época e eram uns músicos fazendo improvisos altamente complexos e os casais dançando uma gafieira braba na frente do palco. Só modernamente é que o jazz virou uma coisa para se ouvir na poltrona, de perna cruzada e tomando vinho francês.

A música de Moraes teve a vertente do afoxé baiano, um conjunto de levadas e de cadências primordiais que a indústria traduziu via violão Ovation e teclado Yamaha, que eram naquele tempo o estado-da-arte, sim senhor.

Moraes puxou para si o frevo de guitarra eletrificada. Puxou a vertente do samba carioca, embora os baianos digam que o samba carioca nasceu lá na Bahia, “porque os hospitais públicos do Rio estavam em greve”.

E teve esta fase mais recente dele, a fase cordelesca, uma coisa que para mim foi, como alguma melodia dele, surpreendente de início e inevitável depois de bem observada. A poética das canções de Moraes, graças aos seus parceiros mais constantes, era uma poética de redondilha maior e menor, do verso de sete e de cinco sílabas que tanta gente já definiu como sendo a respiração natural da fala brasileira.

Quando ele me pediu um texto para acompanhar seu álbum mais recente, Ser Tão (2018), escrevi a certa altura: “Ser Tão não chega a ser uma novidade na obra desse compositor tão litorâneo e ensolarado, tão urbano e beira-mar. O sertão que ele busca é como um lençol aquífero acessível a quem se dispõe a ir um pouco mais fundo. Há um subterrâneo de sertão por baixo de toda a cidade-Brasil. Há uma memória de sertão juntando histórias, lendas, melodias, ritmos e personagens.”

Ao ver os primeiros versos cordelescos de Moraes (ilustrados por Romero Cavalcanti) me lembrei que ele também tinha essa vertente de um sertão distante. Um sertão vagaroso, que vem a pé, custa a chegar. Chegou de vez na obra de Moraes depois dos sessenta anos.

Foram na métrica cordelesca os versos recentes que ele deixou, falando cordelescamente do presente, do instante, do tempo fugaz que tudo carrega ao fugir rumo ao passado:

Eu temo o coronavirus
e zelo por minha vida
mas tenho medo de tiros
também de bala perdida,
a nossa fé é vacina
o professor que me ensina
será minha própria lida.

Assombra-me a Pandemia
que agora domina o mundo
mas tenho uma garantia
não sou nenhum vagabundo,
porque todo cidadão
merece mais atenção
o sentimento é profundo.

Os versos completos, aqui:



(foto: Garapa)








sábado, 11 de abril de 2020

4568) A obsessão da limpeza (11.4.2020)




Há um conto policial de Cornell Woolrich, “Uma Gota de Sangue”, publicado no Mistério Magazine de Ellery Queen (# 161, dezembro de 1962), onde o detetive se depara com um problema curioso. Ele sabe que na casa do indivíduo suspeito foi cometido um crime: o suspeito matou ali, em plena sala, uma pessoa. Foi uma morte violenta, com grande derramamento de sangue. Mas ele não pode provar.

Se ele conseguisse provar que o crime foi cometido naquela sala, o caso estaria encerrado. Mas o suspeito, depois de se livrar do corpo (o crime foi cometido durante a noite) passou o dia seguinte pintando o apartamento por completo, principalmente a sala onde o crime foi cometido. Não ficou nenhuma prova.

O detetive comenta com outra pessoas que lhe bastaria descobrir “uma gota de sangue” para mostrar que foi ali o crime, e botar o culpado na cadeia.

No final do conto, ele vai, pela “enésima” vez, ao apartamento do suspeito. Examina tudo. Paredes, piso, teto. Embaixo dos móveis. Embaixo do tapete. Nada.

Aí ele tem o famoso estalo detetivesco, sem o qual a literatura policial não existiria. Ele lembra que, ao que tudo indica, o crime foi cometido durante a noite – mas ele está fazendo a investigação durante o dia. Qual é a única, minúscula, mas essencial diferença daquela sala-durante-a-noite (o horário do crime) para a sala-durante-o-dia?

A diferença é que de noite a luz estava acesa.

E ele vai até a parede onde está o interruptor de luz, que é daquele tipo que abaixa e levanta, ficando em ângulo com a parede. É de dia. O interruptor está abaixado. Ele ergue o interruptor, acendendo a luz - e vê, na parte de baixo dele, uma gota de sangue.



A literatura policial é um corpus de obras consistentemente mal interpretadas por muitos críticos e leitores, que a veem como uma mera ilustração da “luta entre o Bem e o Mal”. A julgar pelo que muita gente escreve, esses milhões de livros têm como única finalidade nos convencer de que o Crime Não Compensa. (É engraçado – basta a leitura de um jornal diário, qualquer jornal, em qualquer dia, para nos mostrar que é o contrário.)

Histórias policiais têm uma variedade imensa de ressonâncias simbólicas, e a que eu vejo neste conto (que entra aqui como representante de outras centenas) é: Não adianta destruir o que não desejamos, porque não é possível destruir tudo, ficará uma célula que seja, e esse átomo botará tudo a perder.  Mais ou menos isto.

São reflexões que me vêm incessantemente ao juízo agoniado, tenso, atarefado, enquanto em plena Quarentena fico pra cima e pra baixo, enchendo baldes e baldes de solução com água sanitária onde dou banho em latas de cerveja, frascos de suco, garrafas de Coca-Cola, tudo que possa ser energicamente esfregado com água e detergente – para exterminar O Vírus. Pacotes de café, de açúcar. Latas de conserva.

Penso nisso ao borrifar álcool-gel-70 diariamente em cima das mesas e lustrá-las com um perfex até deixá-las mais reluzentes do que o espelho de Narciso. Para não deixar UM VÍRUS vivo naquele tampo de pedra, de fórmica.

Perfex em punho, saio eu polindo maçanetas e interruptores. Não adianta. Passo álcool gel nos braços da cadeira giratória onde passo de 14 a 16 horas por dia. No teclado. No mouse. Não adianta. Deixo o chaveiro (pra quê chaveiro, se meu trajeto mais longo é até a portaria do térreo para recolher o jornal?!) de molho na água sanitária. E depois lavo as mãos por 20 segundos – para exterminar os vírus que pudessem subsistir na água sanitária.

Me vem à memória outro conto policial.

“As Frutas de Cera”, de Ray Bradbury, que li também no EQMM. O título original é “The Fruit at the Bottom of the Bowl” (Detective Book Magazine, Winter 1948; recolhido depois em The Golden Apples of the Sun, 1953).


Um sujeito visita um desafeto, que mora sozinho, numa casa distante, meio afastada de todo movimento. Os dois discutem, e o visitante mata o dono da casa.

Ninguém viu o crime! Ele prepara-se para fugir. Mas lembra-se que antes da briga e do assassinato os dois conversaram longamente... caminharam pela sala, pegaram em copos, garrafas... E as impressões digitais?!

Ele pega um pano e limpa todos os copos e garrafas. Limpa a bandeja. Limpa os braços de madeira da poltrona. Limpa o tampo da mesa. Lembra que foi ao banheiro. Vai lá, e esfrega tudo. Andaram pela casa, o anfitrião exibindo objetos de arte – “segure isso... pegue aquilo...”  Ele sai limpando onde quer que pudesse ter deixado uma impressão digital.

Limpa o corrimão da escada que subiram e depois desceram. Limpa as paredes. Limpa o lustre do teto.

O conto termina assim:

Encontraram-no às seis e meia da manhã.
No sótão.
A casa inteira estava polida e cintilante. Os vasos brilhavam como estrelas. As cadeiras estavam lustrosas. Bronze, latão e cobre faiscavam por toda parte. Os pisos coruscavam. Os corrimões resplendiam.
Tudo brilhava, tudo refletia as luzes, tudo estava luminoso.
Encontraram-no no sótão, polindo os velhos baús e as velhas molduras e as velhas cadeiras e os velhos carrinhos-de-bebê e os brinquedos e as caixinhas de música e os vasos e os talheres e os cavalinhos e as moedas antigas do tempo da Guerra Civil. Ele já ia na metade do sótão quando um policial aproximou-se às suas costas, de arma em punho.
– Pronto!
Na saída da casa, ele poliu a maçaneta da porta da frente com o lenço, e bateu a porta, triunfante.
               
Sigmund Freud tem a famosa teoria do “Retorno do Reprimido”, que não perderei tempo resumindo aqui, porque o que me interessa agora é produzir minha própria teoria, novinha em folha, que é “A Impossibilidade de Reprimir o Retornante”.

Precisamos ter cuidado? Precisamos, sim. Lavar as mãos, 20 segundos, blá blá blá? Sem dúvida – voltei a fazê-lo, dez minutos atrás. Perfex, gel, sanitária? Tudo. Mas temos que confiar também na escuridão, no acaso, na incerteza. É impossível exterminar todos os vírus, é impossível apagar todas as impressões digitais que deixamos neste planeta.

A limpeza total é tão impossível quanto a Perfeição. O corpo humano lida com a imperfeição desde o momento em que é concebido, desde o momento em que nasce. Nascemos por entre vírus e bactérias. Não podemos destruí-los. O peso da massa orgânica combinada de bactérias que existe no planeta é maior que o peso da massa orgânica dos sete bilhões de seres humanos.

Não podemos eliminar tudo, destruir tudo, limpar tudo. A Perfeição é impossível – e é desnecessária – porque somos imperfeitos e, se a Perfeição que imaginamos existisse, não haveria lugar para nós em seus domínios. A Perfeição é um vírus mental, uma doença. Contra ela não temos anticorpos.