sábado, 12 de setembro de 2009

1261) Manuscritos desaparecidos (29.3.2007)




(Samuel R. Delany)
Por alguma razão que os psicólogos talvez expliquem, a crítica literária tem um fascínio inesgotável pela Lenda dos Manuscritos Desaparecidos. Os exemplos são inúmeros. São livros escritos por autores de renome, que por uma razão ou outra se perderam e ninguém leu. Volta a meia um deles está sendo desenterrado. 

Recentemente os jornais noticiaram que uma autora holandesa, Hella Haasse, localizou em casa os recortes de um folhetim que publicou num jornal há 57 anos, e cujos originais se perderam. A autora não lembrava de ter recortado os capítulos, que só foram encontrados agora. 

A história é interessante, mas não se compara à valise cheia de manuscritos sem cópia que a esposa de Hemingway perdeu numa estação de trem de Paris. Ou à minha história preferida do gênero: Voyage, Orestes, romance de Samuel Delany, um dos grandes autores de ficção científica dos EUA.

Em 1963, Delany enviou este livro (cujo manuscrito datilografado tinha 1.056 páginas) para várias editoras, que o recusaram: o narrador era negro, o protagonista era gay... Delany, que na vida real é as duas coisas, viu que não era a hora de falar em tais assuntos. Anos depois ele ficou famoso com Dhalgren, outro romance de mil páginas, que vendeu um milhão de exemplares. 

Um dos editores de antes lembrou-se de Voyage, Orestes e ligou para o autor.Em 1963, um escritor de 22 anos não tinha dinheiro para fazer fotocópias de um livro. Não existiam, então, as hoje onipresentes máquinas xerox. Delany tinha apenas uma cópia datilografada. Seu agente literário precisou mudar de escritório, com dezenas de caixas de papelão com manuscritos. Uma dessas caixas, onde tinha ficado Voyage, Orestes após sua derradeira recusa, perdeu-se. 

Depois de algumas semanas de buscas, ele desistiu, e avisou ao autor. ”Não faz mal,” pensou Delany. Porque havia a cópia-carbono da versão datilografada, numa casa onde ele havia morado por alguns anos, na Rua 6, em Nova York. Estava num armário, em segurança, no porão da casa. 

Delany pegou o metrô e foi até lá, para descobrir que a casa tinha sido vendida há poucos meses, tinha sido demolida, e ali em cima ia ser construída outra coisa. Ele contactou os donos da casa, que lhe disseram: “Ficou tudo lá no porão.. só tinha uns trastes velhos... você falou que eram papéis sem importância...” E de fato eram, até o momento em que a primeira via se perdeu.

Um livro de mil páginas escrito ao longo de três anos merecia ter um melhor destino. Mas, como dizia o poeta, o Passado não está morto, ele nem sequer terminou de passar ainda. Eu não duvido que a próxima manchete “Autor encontra manuscrito desaparecido há meio século” se refira a Voyage, Orestes, quando uma caixa de papelão cheia de pastas amareladas pelo tempo aparecer num depósito em Coney Island, ou quando um comando da Guerrilha Literária Futurista abrir um túnel até o porão da casa da Rua 6.









1260) A diluição dionisíaca (28.3.2007)




(Dionisos)

Os filósofos descreveram estes dois aspectos do ser humano. 

O lado apolíneo, que vem do deus Apolo, é o lado do equilíbrio, da harmonia, das proporções corretas, da beleza obtida através da razão, do auto-domínio. 

O lado dionisíaco vem de Dionisos, ou Baco, que é o deus da farra. É o nosso lado exagerado, sensual, contraditório, voltado para a satisfação dos sentidos, das emoções, das paixões primitivas e corporais. 

O lado apolíneo nos conduz para as regiões mais elevadas da arte, da ciência e da filosofia; o lado dionisíaco nos conduz ao sexo, às drogas e ao rock-and-roll. 

Todo mundo tem algo de ambos, todo mundo oscila entre o predomínio de um ou do outro. Em alguns tipos humanos um deles prevalece; os nossos clichês e preconceitos nacionais se cristalizam muitas vezes em torno desses aspectos. Aos nossos olhos, um sueco ou um alemão são invariavelmente apolíneos; um jamaicano ou um camaronês têm que ser dionisíacos.

O Brasil é um quebra-cabeças em forma de colcha-de-retalhos, mas quem nos vê de longe, da Europa, digamos, tende a nos achar dionisíacos. Para eles, somos um povo eternamente voltado para a festa, a comemoração ruidosa, o prazer, a sensualidade, o hedonismo. E de fato, basta olhar em volta para ver o quanto isto está presente em nossa vida. E o quanto é justamente este aspecto que irrita e impacienta muitos dos nossos intelectuais, que vêem o povo pulando carnaval ou dançando axé-music na praça e dizem: “Por isso que o Brasil não vai pra frente!”

Esta é uma questão interessante, porque o dionismo (valha a palavra nova) não é bom nem mau, em si, é apenas uma possibilidade do ser, tanto quanto o seu reverso, o apolismo. 

Se me perguntassem a proporção ideal entre os dois eu diria que precisamos ser 51% apolíneos e 49% dionisíacos. Por que? Porque para mim existe um princípio fundamental na natureza, inclusive a natureza da alma humana, que é o equilíbrio. Sem equilíbrio, a coisa desanda; e o equilíbrio, virtude suprema, é uma característica apolínea.

Para esta questão, vale a lei do mel e da farinha: quando temos muito de um, precisamos equilibrar as coisas adicionando o outro. Quando vivemos num ambiente basicamente apolíneo, a tendência é irmos nos tornando cada vez mais sérios, cada vez mais formais, cada vez mais civilizadamente escandinavos. Aí é preciso que Dionisos entre pela janela para bagunçar as coisas, para instaurar por alguns momentos o Reino da Gréia e da Bagunça. 

Por outro lado, quando o mundo está bagunçado demais, festivo demais, permissivo e hedonista demais, e principalmente quando tem grupos econômicos fortíssimos impondo esta situação porque extraem dela enormes lucros, é preciso a gente chamar Apolo e a voz da razão. Nem a ditadura, nem o caos. Equilíbrio acima de tudo, para que Apolo e Dionisos possam conviver pacificamente. Festa é bom, mas o ano letivo tem que começar em algum momento.






1259) “Doidinho” (27.3.2007)




Continuação de Menino de Engenho, este romance de José Lins do Rego é também uma ruptura. O livro anterior era rural, este é interiorano (chamá-lo de “urbano” seria exagero). O anterior trazia para o leitor dos anos 1930 a novidade de um ambiente exótico, os engenhos de cana-de-açúcar da Zona da Mata paraibana. Este, contando a vida de Carlinhos no internato, perde o exotismo de superfície. Molda-se com mais facilidade à mente do leitor, que já lhe conhece a ambientação através do clássico com que é tantas vezes comparado: O Ateneu de Raul Pompéia. Valeria a pena rastrear na literatura brasileira o sub-gênero “Romance (ou Conto) de Internato”, a que pertencem estes dois títulos. Pela importância que os colégios internos tiveram na formação escolar e literária de tantos brasileiros de famílias abastadas, a lista deve ser longa, embora o único outro título que me ocorra à memória seja o conto “Pirlimpsiquice” de Guimarães Rosa, uma das escassas histórias não-rurais do autor.

A leitura de Doidinho (1933) me traz à mente uma obra com a qual parece não ter nada a ver: Anos de Ternura (“The Green Years”, 1944) de A. J. Cronin. Meu pai tinha as coleções completas de Zé Lins e de Cronin editadas pela José Olympio nos anos 1950, a de Cronin em verde, a de Zé Lins em azul-marinho. Anos de Ternura, posterior a Doidinho, mostra como mais importante do que a influência de um autor sobre outro é a influência de mundos semelhantes sobre mentes parecidas. As angústias e os deslumbramentos do menino irlandês num colégio da Escócia não são muito diferentes do que Carlinhos vem a conhecer no colégio de Itabaiana. Os livros de Cronin e de Zé Lins conheceram o sucesso popular em virtude das mesmas qualidades: uma memória vívida a serviço da imaginação romanesca; estilo claro, mesmo quando o pensamento é tortuoso; senso de humor; senso do melodrama; crítica social por um viés humano, mais do que político.

Doidinho ocorre numa zona intermediária entre o mundo rural e o mundo urbano. No Capítulo 32, Carlinhos descobre a história de Carlos Magno e dos Doze Pares de França, clássico que hoje pertence mais ao sertão nordestino do que à Europa tão globalizada e “high-tech”. Diz Carlinhos, com candura: “Grande livro, que nada tinha que ver com a vida, mas que me veio mostrar que eu era ainda criança, porque acreditei nele, da primeira à última página. (...) Era um livro de capa encarnada, grosso, de páginas encardidas, amarrotadas. Com ele aprendi a temer mais a Deus do que com o catecismo”. No Capítulo 29, ele descobre o Cinema, recém-instalado em Itabaiana, passando seriados, dramalhões, faroestes, comédias do “Bigodinho”. Aquelas projeções artesanais, primitivas, coruscantes, que Carlinhos descreve numa frase exemplar: “O cinema de Chico Sota tremia como um velho”. Um cinema de cordel, de clássicos toscamente adaptados, mas transmitindo a excitação da descoberta de uma maneira nova de enxergar o mundo.