quinta-feira, 29 de agosto de 2019

4498) O cinema clássico no cordel (29.8.2019)




(Stélio Torquato)


Quando eu era garoto havia duas revista de cinema muito populares. Uma era Cinelândia, com entrevistas e fofocas de atores, atrizes, etc.  Minha preferida era a outra, chamada Filmelândia, que publicava “novelizações” de filmes.


Hoje somos acostumados a novelizações em forma de romances. O filme é lançado, e na mesma época vem às livrarias um romance de 200 ou 300 páginas contando a história do filme – com maior ou menor exatidão. Alguns autores de FC costumam receber um cachê bastante pesado para escrever essas adaptações, feitas a partir do roteiro final do filme.

A Filmelândia transformava o filme num conto, em vez de um romance. A letra da revista era miudinha e o texto era cerrado como nas revistas de pulp fiction, de modo que tinha bastante espaço. Mas continuava sendo um conto. Publicado em livro, aquilo não daria mais do que umas trinta páginas.

A literatura de cordel está entrando um pouco nesse filão, que já faz parte de sua história – adaptar obras audiovisuais de sucesso. Um exemplo clássico é a cordelização da telenovela O Direito de Nascer, grande sucesso da década de 1960, que foi “versada” pelo mestre Manoel d’Almeida Filho num respeitável folheto de 64 páginas em duas colunas.


Por “cordelização” entendo uma transposição fiel do enredo original, uma tentativa de “contar o filme” ao leitor, e não o simples aproveitamento de personagens ou situações de um filme, como ocorre, p. ex., em Capitão Virgulino na Matrix de Astier Basílio.

Quem vem se dedicado a cordelizar filmes nos últimos tempos é o poeta e professor cearense Stelio Torquato, que entre muitas outras obras (um ciclo de folhetos dedicados às peças de Shakespeare, p. ex.) já adaptou pelo menos dois clássicos do cinema norte-americano: ...E o Vento Levou de Victor Fleming e Casablanca de Michael Curtiz.

“Cordel” é um termo elástico. Pode se referir ao folheto de 11 x 16 cm que conhecemos; e pode se referir também a qualquer narrativa em sextilhas tradicionais (rimando AB-CB-DB) ou septilhas (rimando AB-CB-DDB). São as estrofes narrativas mais frequentes no que Ariano Suassuna chamava “o Romanceiro Popular Nordestino”.

Quando a narrativa de estende demais, o folheto fica muito “gordinho” e se torna mais difícil de grampear e colar. Folhetos com 64 páginas ou mais são meio instáveis, depois de algum tempo começam a perder folhas.

Vai daí que alguns poetas escrevem a narrativa em versos e pubicam logo em forma de livro, ou do que chamamos às vezes de “folheto grande”, medindo em torno de 15 x 21 cm.


( folheto pequeno e folheto grande) 

Ou publicam logo em forma de livro, como é o caso do ...E o Vento Levou em Cordel de Stelio Torquato, publicado em 2017 pela Cordelaria Flor da Serra (Fortaleza).  



É um livro de tamanho padrão, com 173 páginas. O poeta afirma na abertura, em sua “Nota Quase Necessária”, que o trabalho lhe consumiu quatro anos, e tem 1.020 septilhas num total de 7.140 versos.

Ele afirma também que se baseou tanto no filme de Victor Fleming quanto no romance original de Margaret Mitchell, daí que certas passagens do folheto tenham sido extraídas ora de um, ora do outro.

Stelio Torquato dá uma atenção especial à pronúncia dos nomes estrangeiros, tanto na sílaba tônica (que nestes exemplos destaca em negrito) quanto na contagem de sílabas de cada nome:

Ashley (2 sílabas), Brent (1 sílaba), Butler (2 sílabas), Carpetbagger (4 sílabas), Carreen (2 sílabas), Gettysburg (3 sílabas)... (...)

Esses cuidados são essenciais, principalmente considerando a possibilidade de leitores pouco familiarizados com a pronúncia inglesa.

Os versos em septilhas (AB-CB-DDB) fluem com naturalidade:

Logo após Abraham Lincoln
Ter vencido a eleição,
Alguns estados do Sul
Tomaram a decisão
De novo país formarem,
Ou seja, de se afastarem
Da grande Federação.

A Jefferson Finis Davis
Tais estados confiaram
O cargo de Presidente
Da nação que eles formaram
O estadista disse “sim”
E ficou até o fim
Quando as lutas se encerraram.



A famosa cena do beijo entre Rhett Butler e Scarlet O’Hara, presente em tantos cartazes do filme, é descrita assim:

Trazendo de encontro a si
A irascível beldade,
O capitão a beijou
Com tamanha intensidade
Que a bela se desarmou
E a paixão a dominou
Com incrível brevidade.

Co’a a habitual arrogância,
O capitão lhe falou:
“Confesse, minha tola Scarlett,
Que ninguém nunca a beijou
Como agora eu a beijei,
E de novo a beijarei,
Pois sei que você gostou.”

O verso final captura o espírito do filme/livro:

“Tara... meu eterno abrigo,
Minha doce moradia!
Ali voltando, o trarei
Para minha companhia.
Serei feliz ao final.
Isso sei, porque, afinal,
Amanhã é outro dia...”


Outra adaptação do autor é a do filme Casablanca, desta vez num texto mais curto, em forma de “folheto grande” (15 x 21 cm) e 40 páginas.

No litoral marroquino
É que está localizada
A cidade que dá título
À película citada.
Essa urbe de requinte
No início do século vinte
Foi pela França tomada.

O lugar desempenhou
Um papel fundamental
Quando ocorreu a Segunda
Grande Guerra Mundial:
Uma via era o lugar
Para na América chegar,
Passando por Portugal.

O autor tem o cuidado de reproduzir as cenas famosas do filme, inclusive os diálogos, editados para se ajustarem às exigências da métrica e da rima:

Sentando-se junto a Sam,
Ilse pede com afeição:
“Sam, toque As time goes by,
a bela e antiga canção…”
Ele mentiu para ela:
“Eu não me lembro mais dela...”
“Eu lhe cantarolo, então...”

Com minúcias de cinéfilo, o cordelista se esforça para captar, do filme, os trechos memoráveis, os diálogos marcantes – ou seja, trazer para o papel um texto que em forma de verso resgate não só a informação mas a emoção cinematográfica.

E o Casablanca de Stélio Torquato se encerra nesse clima de intertextualidade e nostalgia:

Diz Renault, notando isso:
“Para você, é melhor
Sair da cidade até
Que esqueçam do major.
Claro, irei lhe ajudar:
Num forte vou lhe instalar
Para escapar do pior...”

“Boa dica. Mas não muda
Os dez mil francos que deve...”
“Cobrirá nossa despesas.
Eu lhe informarei em breve.
Esconder num forte alguém
Custa caro, veja bem...
O bolso fica mais leve.”

“Nossas despesas, Louis?
Que grande sagacidade!
Acho que esse é o início
Duma incrível amizade...”
E os dois foram seguindo
No nevoeiro sumindo,
Virando mito e saudade...

Stelio Torquato é doutor em Letras pela Universidade Federal da Paraíba e coordena o Grupo de Estudos Literatura Popular (GELP) na Universidade Federal do Ceará.














segunda-feira, 26 de agosto de 2019

4497) Julio Cortázar, 105 anos (26.8.2019)





Vivo fosse, o autor de O Jogo da Amarelinha estaria completando 105 anos neste 26 de agosto. 

Nascido em Bruxelas de pais argentinos, e depois radicado na França, Cortázar foi um daqueles escritores argentinos com profunda influência européia. Não apenas literária; uma influência existencial, com um lado intelectualmente aristocrático que os distanciava do populismo plebeu dos peronistas, mas por outro lado com um lado lúdico, irreverente, que os indispunha com uma certa elite cultural portenha, cheia de pompa vazia e de feroz politicagem.

Sua obra literária, felizmente, continua a ser traduzida e reeditada no Brasil. 

Muitos textos novos têm aparecido, com destaque para os Papéis Inesperados (Rio: Civilização Brasileira, 2010, trad. Ari Roitman e Paulina Wacht), uma compilação feita por sua viúva Aurora Bernárdez e por Carles Álvarez Garriga, reunindo contos, artigos, fragmentos cronopianos e uma interessante miscelânea.



Obras críticas e biográficas também têm saído, como Cortázar – Notas Para Uma Biografia de Mario Goloboff (São Paulo: Editora DSOP, 2014, trad. José Rubens Siqueira).



Nesta veia, encontrei recentemente um volume pequeno e curioso, Cortázar, Profesor Universitario – Su paso por la Universidad de Cuyo en los inicios del peronismo, de Jaime Correas (Buenos Aires: Aguilar, Altea, Taurus, Alfaguara, 2004). É o relato de uma fase pouco conhecida na vida do autor, quando durante um ano e meio (entre 1944 e 45) ele ensinou nessa universidade, na cidade de Mendoza, onde fez amizades que duraram pelo resto da vida, como o artista plástico Sérgio Sergi e a crítica literária Lida Aronne de Amestoy.



O autor informa que era leitor da obra de Julio e só depois de muito tempo descobriu que ele tinha sido professor na universidade onde ele próprio estudava agora, e que muitos dos professores que agora tinha eram ex-alunos do autor de Os Prêmios. A pesquisa se impôs, e ele faz uma curiosa confissão (trad. minha):

Com esse material em mãos, escrevi em 1996 um romance fracassado, que os piedosos editores puseram na estante dos definitivamente inéditos, e do qual resgatei apenas o final, dando-lhe a forma de um conto que ganhou um vago concurso.

Em 1995 apareceu o “Diário de Andrés Fava” [fragmento narrativo até então inédito, de Cortázar], em que Mendoza e os amigos de Cortázar estão presentes. Para quem estava investigando este tema, havia uma frase inquietante: “Se eu convivesse com escritores, anotaria toda ocorrência que me parecesse significativa – não a mera troca de espertezas – e faria um grande favor aos biógrafos de 1995”. O título daquele conto premiado que eu havia escrito era “Pobres Biógrafos”. Fiquei, desde então, com o sentimento de que esses indícios que estava recolhendo tinham algum sentido. Havia neles uma história, um homem que deixava as marcas dos seus passos para que alguém o seguisse.  (p. 14-15)

Jaime Correas comprova o fato bem sabido de que ler muito um autor é aprender a pensar como ele pensa. Cortázar cultivava um Realismo Mágico que não tinha muito a ver com o mágico mundo rural de um Astúrias ou um Juan Rulfo. Seu comércio com o elemento mágico dependia da percepção de simetrias, de paralelismos inesperados.

Ernesto González Bermejo (em Conversas com Cortázar, Jorge Zahar Editor, 2002, trad. Luís Carlos Cabral) mostra como o escritor tenta exprimir essa percepção:

Acredito que quando uma pessoa é porosa nesse plano, tudo o que chamamos “casualidades” ou “coincidências” se multiplica. Mais: acredito que você acaba atraindo essas casualidades. (p. 38)


Cortázar usa repetidamente o termo “constelações” para descrever essa percepção, que é individual e única. As estrelas de uma constelação no céu não tem necessariamente nenhuma relação entre si, mas vistas daqui da Terra parecem formar uma figura. Cortázar compara isso às intuições súbitas que o acometem e que muita vezes resultam em contos:

Eu tenho sido invadido por concatenações instantâneas, vertiginosas, entre coisas heterogêneas que entram no campo dos meus sentidos. E isso acontece sempre em momentos de distração. (p. 73)

Pense em Lautréamont. Quando ele amontoou, metaforicamente, uma máquina de costurar, um guarda-chuva e uma mesa de operação e sentiu que desse “encontro fortuito” surgia um sentimento de beleza inexplicável, não fez mais do que expressar uma abertura para uma coisa que, à primeira vista, não era possível justificar pela mera presença de componentes tão prosaicamente selecionados.

Mas se o sujeito é sensível a tais demonstrações parapsicológicas, se não as descarta como meras fantasias da distração, o acatamento desse clima receptivo facilita cada vez mais a sua repetição sob circunstâncias e com elementos diferentes. Produz-se algo assim como um ciclo em que essas bruscas coagulações, que a razão é incapaz de entender, passam a se repetir com frequência crescente. (p. 74)

O que existe de “mágico” na literatura de Cortázar bebe na mesma fonte intuitiva e pré-consciente do jogo aleatório das moedas do I-Ching oriental ou dos búzios africanos – a consciência de que em certos momentos uma mente aguda e um olhar alerta podem captar certas constantes do mundo, fazer relações instantâneas entre fatos, coisas e fluxos aparentemente não-relacionados.

Para isso é preciso limpar a mente, esquecer não só os preconceitos como os conceitos também, deixar-se alvejar pelos fatos, pelo contato da realidade em-bruto.


Numa carta de 1957 a seu grande amigo Eduardo Jonquières, Julio ironizava os “Lineus”, os classificadores, os taxonomistas, que colecionam conceitos e rótulos a tal ponto que não enxergam mais a realidade:

Em Paris acontece quase sempre a mesma coisa: a necessidade de classificar das pessoas é um triste resultado (entre outros menos tristes, por sorte) de nossa cultura ocidental. Em cada um de nós dorme um Lineu, com os bolsos cheios de etiquetas. Você já notou a inquietação das pessoas, num concerto, quando o pianista toca um bis sem anunciar do que se trata? Todo o prazer se perde devido à irritante busca mental do autor dessa peça. Será Scarlatti? Não, deve ser Vivaldi. E se fosse Bach?

(Cartas a los Jonquières, Buenos Aires: Aguilar, Altea, Taurus, Alfaguara, 2010, p. 378-379, trad. minha).

Uma das curiosidades do livro de Jaime Correas citado acima são os apêndices com os programas e bibliografia sugeridos pelo Prof. Cortázar para seus cursos: “Literatura Francesa I Poesia Francesa no Século XIX – Baudelaire, Verlaine, Mallarmé”, “Literatura Francesa II – A poesia francesa de Rimbaud aos nossos dias”, “Literatura da Europa Setentrional – Poesia inglesa no início dos século XIX: John Keats”, “Poesia romântica no começo do século XIX”, “A novela romântica”.

Aqui, no YouTube, um documentário sobre a passagem de Cortázar por Mendoza e a Universidade de Cuyo: 








sexta-feira, 23 de agosto de 2019

4496) Em defesa da poesia menor (23.8.2019)




A grande maioria das pessoas que escrevem poesia não está se preocupando muito com a criação de grandes obras de arte.

As pessoas escrevem poesia para desabafar. Para tentar interpretar os próprios sentimentos. Para captar o sentido de algo que acontece nas suas vidas. Para experimentar novas formas de dizer. Pelo prazer de criar diferentes estruturas verbais. Para dizer coisas que serão necessariamente lidas com atenção por outras pessoas de seu círculo social.

Somente um número reduzido de pessoas-que-escrevem-poesia pensam em seguir uma carreira poética formal: publicar livros, ganhar prêmios, dar entrevistas, fazer parte de academias, etc.

A poesia lírica (porque é a ela que me refiro, por ser muito mais cultivada entre nós do que a épica ou dramática) é uma atividade paraliterária, entre nós. Faz parte da Cultura Informal, e só uma pequena parte dela passa a fazer parte da Cultura Formal: livros publicados por editoras profissionais, poemas estudados em escolas, matérias na imprensa, participação em eventos (palestras, oficinas, feiras do livro, etc.).

Vivemos numa sociedade tão obcecada pelos conceitos de “sucesso”, “profissionalismo”, “mercado”, “fama”, “reconhecimento público”, que temos dificuldade em ver na poesia o que ela sempre foi em todos os tempos: um meio de expressão essencialmente pessoal, individual, destinado a círculos concêntricos de expansão, que muitas vezes não atingem mais do que algumas centenas de pessoas.

É para isso que a poesia existe, e não para as listas de best-sellers, a consagração das teses acadêmicas ou a honraria dos prêmios literários.

Rainer Maria Rilke, em suas Cartas a um Jovem Poeta (1929) deu alguns dos conselhos mais elementares e mais importantes que se pode dar a quem escreve poesia. Toda vez que alguém me pede conselhos, indico esse livro. Não porque exprima exatamente o que eu próprio penso, mas porque pode servir a quem quer levar a poesia a sério. Um desses conselhos era algo como: só escreva se sentir uma necessidade íntima muito forte, se não puder deixar de escrever. 

Não estou falando em publicar livros, nem em ganhar dinheiro, nem em sair no jornal. Estou falando em ter uma forma criativa de expressão pessoal. Uns têm na música, outros têm no esporte, outros têm no romance, outros têm no desenho ou na pintura...

Isso abre caminho também para o que a gente considera “a Poesia Menor”. É a poesia feita por poetas modestos, que jamais ganharão prêmios ou aparecerão em antologias, e que às vezes serão lidos com desdém pelos críticos mais exigentes.

Não há vergonha nenhuma em seu um Poeta Menor num país onde os Poetas Maiores são pessoas como Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Ferreira Gullar...

O próprio Manuel Bandeira, considerado Poeta Maior por tantos (por mim, inclusive), dizia, num acesso de melancolia: “Sou Poeta Menor, perdoai!...”

Comentando as sucessivas e incontroláveis safras de poetas menores que brotam (felizmente) em nosso país, dizia Wilson Martins (História da Inteligência Brasileira, vol. VII, p. 422):

Entre os demais, nem todos haviam lido as Cartas a um Jovem Poeta, e aqueles que o fizeram parecem havê-las rapidamente esquecido: contudo, correspondendo à necessidade vital de escrever, no plano restrito de cada um (claramente inexistente na origem de numerosos volumes de poesia), há uma circunstância de ordem coletiva, geralmente e erroneamente menosprezada: esses poetas que escrevem sem necessidade criam o ambiente que determina a necessidade de escrever para os verdadeiros poetas e a necessidade de ler para os leitores de poesia.  (...)

Existe sem dúvida, nisso que chamamos de ambiente literário, aquele velho princípio de que a quantidade gera qualidade. Não gera espontaneamente, claro: mas uma certa quantidade de pessoas lendo e escrevendo poesia conduz sem dúvida a uma troca de idéias mais intensa, um compartilhamento de leituras, de opiniões, aquelas conversas intermináveis onde se forma a intuição poética: “isso é bom, isso é ruim, isso está mal/bem escrito, isto é melhor do que aquilo, olha isto aqui como é diferente de tudo...”.

[A] história literária não seria diferente se muitos livros de poesia tampouco houvessem aparecido. A vida literária, entretanto, seria diversa, talvez menos rica e, com certeza, menos exigente, porque são as obras inferiores que nos permitem reconhecer as outras e aspirar por elas.

Ler os grandes poetas ajuda a elevar o nível de pensamento, de sensibilidade e de execução de todo mundo, inclusive dos poetas menores.

E ao mesmo tempo não existe livro de poeta menor que não contenha um grande poema. Não existe poema fraco que não contenha pelo menos um verso memorável. Não existe obra cuja leitura seja totalmente desperdiçada.

Wilson Martins vai ainda mais adiante, e lembra que os próprios conceitos de Poesia Maior e Poesia Menor são fluidos e jamais definitivos:

[A] dialética da criação é mais complexa e, certamente, mais contraditória do que pensaríamos à primeira vista, se é certo, por outro lado, que os julgamentos de valor também têm muito de histórico e conjuntural, o que significa terem muito de conjetural.

O fato é que Olavo Bilac desdenhou com sarcasmo dos poemas de Augusto dos Anjos; que modernistas como Drummond ou os Andrade foram sistematicamente ridicularizados por anos a fio; que ninguém hoje em dia (a não ser eu) lê Olavo Bilac a sério; que ainda há quem pense que escrever sonetos é indício de debilidade mental; e quem pense que o soneto é o único tipo elevado de poesia. Há quem ache a poesia concreta uma palhaçada, e há quem ache que palhaçada é todo o restante.

Não importa. Quem faz poesia como um meio de expressão pessoal lê muito, pensa muito, conversa muito, escreve muito e publica pouco.












domingo, 18 de agosto de 2019

4495) As amizades invisíveis (18.8.2019)




Existem muitos capítulos da História sobre as amizades e as parcerias entre grandes artistas. A amizade de Gauguin e Van Gogh, por exemplo, uma amizade mixada com competição e irritabilidade de parte a parte. Ou a relação parecida entre os poetas Rimbaud e Verlaine, neste caso misturada a uma paixão homossexual.

O que a gente muitas vezes não fica sabendo são aqueles episódios meio obscuros em que um artista famoso foi ajudado por outro sem que isso, de certa forma, tivesse muita repercussão. Ou então dois amigos de infância ou juventude que no futuro viriam a seguir caminhos opostos e se tornarem famosos em universos quase incompatíveis entre si.

Por exemplo: li certa vez no Facebook um depoimento do músico Ivan Conti, do célebre grupo Azymuth, dizendo:

Nunca falei sobre isso! Fazendo uma entrevista agora para a DownBeat, lembrei me de algo muito importante, ao meu ver, na carreira do AZYMA!!
E não éramos ainda AZYMA!!
Com isso trazíamos novidades em instrumentos e corríamos para ensaiar logo e usar tudo aquilo, pois era uma festa!!. Imagina bateria, baixo e teclados novos? Sempre!!
Valeu Ivon!

Nós tivemos um grande aliado e gostaria de agradecer, porque o cantor/artista Ivon Cúri nos levava para tocar em suas viagens patrocinadas pela VARIG, e íamos para para USA e Canadá.

Gostei desse depoimento porque se você perguntar a 50 críticos ou músicos qual a relação entre a música do Azymuth e a música de Ivon Cúri, provavelmente todos vão dizer que nenhuma.


(Ivon Cúri)

Existe uma lenda de que roqueiro só ajuda roqueiro, cineasta só ajuda cineasta. De que as simpatias artísticas prevalecem 100% sobre a possibilidade de simpatias pessoais, ou de mera atividade conjunta e harmoniosa entre pessoas que pertencem a universos culturais diferentes.

Pesquisando meu livro sobre Luís Buñuel (O Anjo Exterminador, Rocco, 2002) fiquei sabendo de uma amizade improvável entre o cineasta espanhol e o artista plástico Alexander Calder, o famoso inventor dos “mobiles”.

Parece que quando Buñuel fugiu da Europa durante a guerra e foi para Nova York, Calder e sua família o hospedaram no amplo apartamento onde moravam. Os dois foram apresentados por Iris Barry, diretora da cinemateca do MoMa e fã do surrealismo. Buñuel se mudou para o apartamento do escultor com a esposa Jeanne e o filho pequeno Jean Luis; foi ali que nasceu o segundo filho, Rafael, em maio de 1940.

Jean-Luis Buñuel lembra de quando era pequeno e Calder conversava com seus pais enquanto fazia para ele brinquedos de cortiça e arame. O próprio Jean Luis acabou se tornando escultor depois de adulto.


(postal de Calder e Jean-Luis Buñuel para Jeanne)

Todo mundo pensa que os dois reis do romance policial hardboiled, Dashiell Hammett e Raymond Chandler, ou eram grandes rivais ou grandes amigos. Nem uma coisa nem outra. Na verdade, os dois se encontraram pessoalmente apenas uma vez na vida, numa reunião dos escritores que colaboravam com a revista Black Mask (há uma foto famosa). Nunca foram próximos, e ao que consta nunca sequer se escreveram cartas. Não conheço nenhum depoimento de Hammett sobre Chandler, mas este último escreveu numa carta, a respeito do mestre, que era aliás seis anos mais novo do que ele (embora começasse a publicar mais cedo), que o admirava muito como escritor e como bebedor de uísque.

Amizade meio improvável foi a que Chandler acabou tendo com Ian Fleming, o criador de James Bond, com repercussão na Inglaterra, onde Chandler era considerado um escritor de primeira linha (muito mais do que nos EUA) e Fleming um mero autor de best-sellers. Os dois acabaram se dando bem, Chandler elogiava o domínio de Fleming sobre o idioma norte-americano, e há uma gravação famosa dos dois num programa de rádio, que pode ser ouvida no YouTube.

Amizade improvável mesmo é a que descobri num artigo de Ruy Castro. Em meados dos anos 1960 o poeta João Cabral de Melo Neto, que na época era cônsul brasileiro em Barcelona, estava jantando com amigos na cantina Fiorentina, no Leme, quando se ouviu um zum-zum-zum lá fora, com a chegada de um grupo. Os amigos disseram que era Chacrinha, e Cabral perguntou quem era. “Um apresentador de TV, bem popularesco,” responderam, “e que está no auge do sucesso”.

Nesse instante Chacrinha entrou no restaurante, olhou para a mesa deles e abriu os braços gritando: “Cabral!”. E o cônsul ergueu-se, abrindo os braços e gritando: “Abelardo!”. Os dois se abraçaram aos soluços. Tinham estudado juntos quando eram meninos, no Recife, e não se viam há mais de trinta anos. E Ruy Castro encerra dizendo: “É o Brasil.”











quinta-feira, 15 de agosto de 2019

4494) A síndrome do artista ruim (15.8.2019)




Nossa cultura parece partir de um pressuposto ingênuo, ao avaliar os artistas. Ela considera que um artista é sempre uma pessoa boa, uma pessoa do bem, uma pessoa que cultiva os valores mais nobres da humanidade. E a arte superior que pratica (na pintura, na música, na literatura, no cinema, etc.) é um reflexo dessa personlidade privilegiada.

Esse é um conceito bonito, um conceito cheio de vernizes aristocráticos, mas que infelizmente não se sustenta de pé. Ou felizmente: é sempre melhor ver as coisas como são do que como a gente gostaria que fossem.

Eu afirmo que um(a) artista, mesmo os(as) maiores que a humanidade já viu, é uma pessoa moralmente equivalente às pessoas de qualquer outra profissão: os sapateiros, as enfermeiras, os motoristas, as médicas, os políticos, as funcionárias públicas, os encanadores, as professoras, e assim por diante.

O que não falta na História da Arte (qualquer arte) são indivíduos machistas, ou desonestos, ou cruéis, ou trambiqueiros, ou reacionários, ou insensíveis, ou egocêntricos, ou ditatoriais, ou exploradores dos mais fracos... e que nem por isso deixaram de produzir grandes obras.

A arte não corrige os nossos defeitos. Na melhor das hipóteses, serve de compensação para eles. Resgata uma vida que, se não tivesse produzido aquela arte, seria apenas uma vida-desperdiçada a mais.

Alguém questiona: “Ah, mas um artista é uma pessoa mais sensível que as outras, mais esclarecida, mais criativa, mais sensível à beleza e à verdade, pela própria atividade que exerce...” 

Eu até concordo, mas lembro que o mesmo poderia ser dito dos professores, dos filósofos, dos padres, dos religiosos em geral. E quando a gente vai ver, “é tudo uma canalha só”, como dizia Carlos Drummond num momento bem-humorado.

O que acontece é que os artistas nos conquistam com sua arte (estou falando daqueles artistas que nos tocam, que são importantes para nós – o que varia de pessoa para pessoa) e devido a isto somos tentados a “passar pano” nos seus malfeitos. O que também é compreensível. A gente não pode passar a vida inteira somente sendo juiz da vida alheia.

Artistas devem ser cobrados por suas posições morais? Sim, tanto quanto os eletricistas, as advogadas, os jogadores de futebol e as bordadeiras. Posição moral é dever de todos.

Não devemos confundir isto, porém, com uma outra atividade, essa sim condenável: a indústria de fofocas, das reportagens e das biografias escandalosas que ficam inventando ou ampliando aspectos negativos da vida de gente famosa. Isto existe para satisfazer o voyeurismo de um público que compensa a monotonia de suas vidas fantasiando os excessos dos famosos. Imaginando que os famosos fazem aquilo que elas próprias fariam, se estivessem no seu lugar.

Essa indústria da fofoca, do boato e da maledicência é mais comum no cinema de Hollywood e na música pop do que em artes mais discretas, como a poesia e a música clássica, mas não se enganem, está presente em todo canto.

Na juventude eu fui uma espécie de adorador de ídolos e muito me entristeceu, na vida adulta, descobrir que meus ídolos eram capazes de ações que me envergonhavam, de ações que eu condenava sempre nos que estavam “do outro lado do muro”.

Luís Buñuel era apaixonado pela esposa Jeanne, mas era ciumentíssimo, não queria nem que ela tocasse piano (que ela adorava) porque... sei lá por que. Talvez porque tocando ela chamasse muito a atenção sobre si mesma. Quando ele morreu, ela (que também o adorava) publicou um livro de memórias chamado “Uma Mulher Sem Piano”.

Alfred Hitchcock, um marido fidelíssimo e leal, costumava se apaixonar pelas atrizes louras que selecionava para seus filmes (Eve Marie Saint, Grace Kelly, Tippi Hedren, Kim Novak) e as martirizava no set de filmagem. Era um monstro? Não, era um cara solitário e meio cruel.

Tive um choque quando descobri que Carlos Drummond manteve uma amante durante a vida inteira, mas não se separou da esposa. Não pelo fato de ter uma amante, em si – isso acontece; mas porque esse arranjo me parecia (na época) cruel demais com as duas. Apaixonou-se? Faz como Vinícius: bota a escova de dentes no bolso e vai morar com a outra. Mas quem sou eu para achar que um deles estava certo e o outro errado?

Mais fácil era lidar com o fato de que Benvenuto Cellini e François Villon eram bandidos mesmo, dos que matam gente e vão pra cadeia. Eram outros tempos. O mesmo com Leadbelly ou Chuck Berry. Era fácil atribuir os malfeitos deles à condição de negros numa sociedade racista e injusta.

O problema era quando alguém me perguntava qual artista tinha uma vida exemplar, uma vida que a gente pudesse “assinar embaixo” sem remorsos. Sempre que um candidato era apresentado na conversa, alguém tirava da algibeira três ou quatro fatos espantosos a seu respeito. Eu ficava um ano sem nem chegar perto de um livro do sujeito, pra não me contaminar.

Essa ingenuidade é compreensível. Não que a gente deva se achar moralmente superior a quem quer que seja. Mas é preciso afirmar que existe um ideal moral, superior a todos nós, que está lá longe, lá no alto, distante mas visível. E que tanto eu, quanto você, quanto Pablo Picasso ou William Shakespeare ou Orson Welles deveríamos ter em mente esse ideal, e tentar agir de acordo com ele.

Temos uma certa dificuldade em reconhecer que o Bem e o Mal, sejam lá o que forem, fazem parte da vida real. Lemos um número excessivo de biografias laudatórias de santos, de heróis, de mártires, de gênios. Ficamos achando que algumas pessoas são imunes às pequenas e grandes sacanagens da nossa vida diária, às pequenas e grandes covardias, às pequenas e grandes brutalidades que cometemos sem remorsos porque sabemos que ninguém vai nos punir, ou, melhor ainda, que ninguém vai ficar sabendo.

“Quem sabe o Mal que se esconde nos corações humanos? O Sombra sabe!”, dizia Walter Gibson. Ele sabia que o Bem também se esconde no mesmo lugar. Um artista tem a mesma quantidade de Bem e de Mal que qualquer outra pessoa. A única diferença talvez seja que ele tem acesso direto ao filão disso tudo, e isso torna sua responsabilidade (e sua eventual tragédia) maior do que a nossa.












segunda-feira, 12 de agosto de 2019

4493) A arte e o ruído (12.8.2019)




Uma definição possível (e incompleta) de arte seria: a reunião de um número reduzido de elementos capazes de fornecer a maior quantidade possível de informação. Um mínimo capaz de sugerir um máximo.

Lenore Coffe, uma roteirista de Hollywood dos anos 1920-30, dizia que um escrever era apenas colocar as palavras certas na ordem certa.

O que me lembra a “boutade” de Glauco Mattoso ao afirmar que todas as palavras da Ilíada e da Odisséia estavam no dicionário, só que em outra ordem.

Qualquer tentativa de descrição do que seja uma forma de arte nos conduz nessa direção de algo que, dos zilhões de estímulos com que o mundo nos bombardeia, escolhe um número mínimo deles, e com isso é capaz de produzir uma ressonância muito maior do que essa tempestade zilionária.

Isso me vem à mente escutando uma coisa indescritível que um internauta, Antoine Souchav, postou no YouTube.


Neste clipe, foram reunidas e superpostas as 555 sonatas para cravo compostas por Domenico Scarlatti. É uma massa sonora única, algo como uma avalanche onde em vez de neve há notas muscais, um paredão gigantesco delas derramando-se lentamente dentro dos nossos ouvidos, submergindo tudo.

É uma experiência semelhante à que vi há algum tempo – a de superpor todos os fotogramas de um filme gerando uma única imagem.

Uma “redução ao absurdo” só possível por se dispor da tecnologia digital, que simplifica, agiliza e barateia qualquer idéia maluca baseada no gigantismo quantitativo.

Juntar 555 sonatas num bloco musical simultâneo significa anular o efeito estético de cada uma, por completo.

Notas musicais só podem se superpor até um determinado ponto. Imagens, idem. Pixels, idem. Superpor esses elementos indefinidamente significa apenas produzir ruído, entropia, indiferenciação.

É uma experiência estética? Sem dúvida. Uma demonstração às avessas. “Agora vou mostrar como a música deixa de existir quando é amontoada sobre si mesma.”

Não é produção de efeito, nem produção de sentido: é potencialização de ruído, como uma microfonia amplificada.

Experiências semelhantes foram feitas com a obra de outros compositores. Aqui estão, por exemplo, postagens feitas por Remo De Vico:

Os 21 noturnos para piano de Chopin, superpostos:

Os 25 Caprichos para Violino Solo, de Paganini:

O resultado desses sons acumulados não nos dá propriamente uma experiência estética. Seu objetivo não é o mesmo objetivo que tinha Scarlatti (ou qualquer outro) ao compor uma peça musical.

Pode ser uma dessas brincadeiras que tantos internautas desocupados fazem por mero desfastio, e pode também ser uma experiência para-científica, uma tentativa de ir até o limite sensorial de uma experiência para ver até que ponto ela mantém seu conteúdo original, e a partir de que ponto começa a se deteriorar em entropia.

Não é a mesma coisa de experimentalismos que visam a produzir efeito estético, como a do sujeito que fez um anagrama de um romance – pegou todas as palavras de um livro (repetições inclusive) e, sem adicionar ou subtrair uma só, rearranjou todas até compor um livro diferente.

Veja aqui:

É nesse momento que alguém diria, coçando a cabeça: “Mas meu ilustre, afinal de contas, qual é o propósito dessa pirotecnia toda?”.

Eu diria que o propósito de toda arte experimental é justamente fazer algo sem saber no que vai dar, sem prever com clareza os resultados, e sem estar buscando consequências. Fazer por fazer, fazer for the sake of it como dizem os ingleses.

Daí que seja tão difícil, para o público e para uma parte da crítica, a convivência com a arte experimental. São pessoas acostumadas a conviver com uma arte de efeitos deliberados e de idéias esboçadas com um mínimo de clareza: a arte que tem um objetivo, um propósito, uma mensagem, um posicionamento no mínimo de natureza apenas estética – como têm a composição de um noturno para piano ou de um punk rock.

Podemos teorizar de maneira um tanto arbitrária que há dois tipos de artista: o que tem uma idéia e em seguida parte para sua realização, e o que começa a realizar sem saber o que vai resultar daquilo, e a idéia, quando existe, é formulada a posteriori.

É este o caso da arte experimental, sempre levando em conta os inúmeros casos em que a experiência não resulta em nada. O que aliás também se dá na arte mais convencional – quantos manuscritos de romances ou poemas, depois de prontos, não são jogados no lixo porque não resultaram em nada?

Mas existe um caminho meio arrepiante nisso tudo. Fico imaginando um futuro em que teremos inteligências artificiais desenvolvidas a ponto de necessitarem de experiências estéticas: computadores que, por um motivo qualquer, precisam ler histórias, ou ouvir música.

O protetor de tela, por exemplo, é uma “pequena arte” desenvolvida para o bem das telas dos nossos monitores. Para que, quando estiverem ociosos, a imagem fixa não acabe desgastando as pequenas células luminosas.

Talvez os computadores de próxima geração sejam tão complexos que não possam se dar o luxo de serem desligados – precisem ficar rodando permanentemente alguns programas, resolvendo problemas, programando efeitos...

Esses computadores podem refinar sua apreciação estética a ponto de considerar uma sofisticada iguaria a superposição de todas as faixas do Metallica ou a anagramatização recursiva, recorrente, de algum clássico como Os Sertões ou A Rosa do Povo. Porque não podem parar de pensar. Porque são inteligências artificiais e desconhecem a morte, a inconsciência.

As possibilidades, como sempre, são infinitas.