segunda-feira, 30 de maio de 2016

4120) O mágico Murilo Rubião (30.5.2016)





“Por muito tempo se prolongou em mim o desequilíbrio entre o mundo exterior e os meus olhos, que não se acomodavam ao colorido das paisagens estendidas na minha frente. (“O Pirotécnico Zacarias”, em O Pirotécnico Zacarias, Ed. Ática, 1986.)

Na próxima quarta-feira, dia 1 de junho, completam-se 100 anos do nascimento do grande Murilo Rubião (1916-1991). Vivo comendo mosca com essa história de datas comemorativas, e confesso que só me liguei nesta graças a um artigo-homenagem de Humberto Werneck no Estado de São Paulo no dia 24 passado (aqui: http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,o-eterno-reescrevedor,10000052999). (Macaco velho, Werneck publicou sua homenagem uma semana antes da data, ajudando com isso a pautar o teclado de focas desligados como eu.)

Em algumas décadas de pesquisa sobre literatura fantástica no Brasil, me acostumei a muitos clichês. Um deles é o de quando alguém perguntar “quem são os principais autores de literatura fantástica no Brasil” responder “José J. Veiga e Murilo Rubião”. Quando houve o chamado boom do Realismo Mágico latino-americano nos anos 1970, começou uma procura febril pelo similar nacional. Entre os autores publicados pelas editoras de prestígio, e com existência reconhecida junto aos críticos de prestígio, só havia estes dois. Viraram parâmetro, marco geodésico. (Havia outros, claro – mas aí já é outra história.)

“Sou um sujeito que acredita no que está além da rotina. Nunca me espanto com o sobrenatural, com o mágico. E isso tudo aliado a uma sedução profunda pelo sonho, pela atmosfera onírica das coisas. Quem não acredita no mistério não faz literatura fantástica.” (entrevista em O Pirotécnico Zacarias, Ed. Ática, 1986)

Murilo teve algumas ocupações passageiras mas basicamente foi funcionário público a vida toda. Pertencia a uma época e uma classe social em que tornar-se funcionário público é algo tão natural quanto deixar crescer um bigode. Seus contos foram criados à sombra desta nobre ocupação, e o adjetivo não é irônico. Quando era Diretor de Publicações e Divulgação da Imprensa Oficial, ele foi o fundador, em 1966, do Suplemento Literário Minas Gerais, um dos melhores que já houve em nosso país (e que continua sendo editado, pelo que sei), responsável por um imenso avanço da prosa, da poesia e da ilustração mineira.

Os contos iam sendo criados devagarinho, nas possíveis horas vagas. Murilo produziu pouco. Suas coletâneas de contos misturam-se umas às outras, com os mesmos contos sendo repetidos (às vezes em versões modificadas, sem que se saiba ao certo qual a mais recente, ou a definitiva). Diz Humberto Werneck:

Murilo menos escreveu do que reescreveu. Quem mais levaria 26 anos ruminando as poucas páginas de “O Convidado”? O verbo era “murilar”, dizia eu da obsessão desse burilador impenitente. Em 75 anos de vida, publicou 51 histórias, das quais descartou 18. Toda a sua obra consiste, pois, em 33 contos, magro volume no entanto capaz de parar de pé com mais aprumo do que muita obra caudalosa. (Estado de São Paulo, 24.5.2016)

Nunca foi um grande divulgador de si próprio. Seu primeiro livro passou quase em branco: O Ex-Mágico, publicado em 1947 (por influência de Marques Rebelo) pela Editora Universal, que entrou assim para a História como lançadora de pelo menos dois marcos da literatura brasileira. (O outro tinha sido um ano antes: Sagarana, de Guimarães Rosa). Seu sucesso popular, que o transformou num nome obrigatório em antologias, vestibulares e verbetes, veio apenas em 1974, quando Jiro Takahashi lançou pela Editora Ática O Pirotécnico Zacarias, com capa e ilustrações de Elifas Andreato, e que não demorou a bater os 100 mil exemplares vendidos.

O pessoal compara Murilo Rubião a Kafka, mas ele vai bem além disso. Há contos que têm sem dúvida o que Borges chamava “a idiossincrasia de Kafka” (a sujeição a tarefas infinitas e inexplicáveis), que nos faz ver por toda parte precursores e seguidores do escritor tcheco. Rubião é kafkeano em contos como “O Edifício”, onde descreve um prédio gigantesco, administrado por uma Fundação misteriosa, do qual se dizia que mergulharia no caos quando ultrapassasse o octingentésimo andar. Mas no mesmo conto o segmento “O Baile”, que descreve as comemorações violentas dessa data, me remeteu de imediato ao futurismo brutalista de J. G. Ballard em High Rise (1975), sobre um condomínio da classe alta londrina que reverte à barbárie.

O conto “Os Dragões” mantém uma ambiguidade constante, pois os dragões que aparecem de repente numa cidade (num efeito narrativo semelhante ao de alguns romances de José J. Veiga) nunca são fisicamente descritos, e às vezes são tratados na história como animais (“serviu de pretexto uma sugestão do aproveitamento dos dragões na tração de veículos”), ora como jovens rebeldes (“desastradamente simpático e malicioso, alvoroçava-se todo à presença de saias. Por causa delas, e principalmente por uma vagabundagem inata, fugia às aulas”), ora como índios semi-aculturados (“tinham contraído moléstias desconhecidas e, em consequência, diversos vieram a falecer... fugiam à noite do casarão e iam se embriagar no botequim... Para satisfazerem o vício, viram-se forçados a recorrer a pequenos furtos”).

O autor tinha o hábito de afixar pequenas citações da Bíblia como epígrafes aos seus contos; a presença dessas citações parece revestir de um certo verniz eclesiástico sua visão do mundo, mas se lermos os contos e ignorarmos as epígrafes o absurdo sem centro avulta em cada um deles. Terá o mistério do mundo uma resposta espiritual, ou não passa de um granizo de estilhaços sem sentido, sem Idéia que os unifique e resolva? Murilo dizia:

“Jamais consegui me livrar do problema da eternidade, chegando mesmo, na infância, a ser religioso e um tanto místico. O ateísmo, mais tarde substituído pelo agnosticismo, provocou em mim uma ruptura violenta.” (entrevista em O Pirotécnico Zacarias, Ed. Ática, 1986)

Alguns dos seus melhores contos produzem a sensação do estranho ao descrever algum tipo de processo fantástico fora de controle, aleatório, imprevisível. São assim as metamorfoses de “Teleco, o coelhinho”, criaturinha falante e cheia de vontades capaz de virar uma pulga, um bode, um porco do mato ou um canguru chamado Antonio Barbosa. São assim as mágicas surpreendentes do seu conto talvez mais emblemático, “O ex-mágico da Taberna Minhota”, cujo protagonista tira dos lugares mais inesperados os objetos ou seres mais surpreendentes.

“A platéia, em geral, me recebia com frieza, talvez por não me exibir de casaca e cartola. Mas quando, sem querer, começava a extrair do chapéu coelhos, cobras, lagartos, os assistentes vibravam. Sobretudo no último número em que eu fazia surgir, por entre os dedos, um jacaré. Em seguida, comprimindo o animal pelas extremidades, transformava-o numa sanfona. E encerrava o espetáculo tocando o Hino Nacional da Cochinchina. (em O Pirotécnico Zacarias, Ed. Ática, 1986)

Atribui-se a Picasso a frase “on ne cherche pas, on trouve” (“a gente não procura; a gente acha”). O mágico de Rubião, ao fazer pequenos gestos casuais, achava em si mesmo prodígios, sustos, maravilhas. Torna-se “ex” depois que se emprega numa Secretaria de Estado (“1930, ano amargo... 1931 entrou triste”), se burocratiza, vira um Clark Kent sem super-poderes.

“Hoje, sem os antigos e miraculosos dons de mago, não consigo abandonar a pior das ocupações humanas. Falta-me o amor da companheira de trabalho, a presença dos amigos, o que me obriga a andar por lugares solitários. Sou visto muitas vezes procurando retirar com os dedos, do interior da roupa, qualquer coisa que ninguém enxerga.” (idem)

Com uma obra relativamente pequena, ele criou na literatura brasileira um nicho onde não imagino que caiba muito mais gente. Sua obra tem um pendor para os mistérios inexplicados, os prodígios assimilados pela banalidade cotidiana, um olhar compassivo sobre as pequenas fraquezas das pessoas comuns.