terça-feira, 6 de julho de 2010

2238) A nuvem do vulcão (11.5.2010)



A explosão do vulcão na Islândia foi mais um indício da fragilidade do nosso estilo de civilização. Isto poderia ser evitado? A erupção propriamente dita, não, porque a Humanidade não tem condições científicas e tecnológicas de intervir num processo de tal natureza e tais proporções. É mais fácil levar um homem à Lua e trazê-lo de volta do que evitar que um vulcão exploda. Vivemos na Terra como um jangadeiro vive no mar. Sabemos que não temos controle sobre ela. Só nos resta prestar atenção, e nos adaptarmos.

O que se questiona é como evitar as consequências. Criamos uma rede de transporte aéreo (principalmente no Hemisfério Norte) eficiente, veloz, utilíssima e frágil. Como em qualquer mecanismo de alta precisão, basta um grão de areia para impedir que funcione. A Europa, ao contrário do Brasil, tem excelentes estradas e excelentes transportes ferroviários, que bem ou mal conseguiram durante esses dias escoar parte do tráfego. Mas o episódio todo deixa um gosto amargo de incompetência científica. Talvez até tenhamos condições de produzir instrumentos caoazes de enfrentar esse tipo de situação, mas não sabemos criá-los.

O físico Haim Harari declarou à revista “Edge”: “A crise das cinzas e a crise financeira têm muito em comum. Ambas resultam do fato de que as pessoas que tomam as grandes decisões não entendem de Matemática nem de Ciência, mesmo num nível rudimentar, enquanto que a maior parte dos matemáticos e cientistas não têm sensibilidade para com as implicações que seus cálculos podem ter sobre a vida real. Os engenheiros de finanças criam complexos instrumentais matemáticos, evitando chamar a atenção para as premissas que estão propondo, enquanto que os banqueiros e as agências reguladoras não admitem que não têm a menor idéia do que esses documentos significam, e nunca fazem perguntas sobre os parâmetros ocultos por trás dessas novas estratégias do lucro fácil. Modelos teóricos provam às autoridades que a nuvem de cinzas está aqui ou ali, sem se dar o trabalho de medir coisa alguma, e ninguém pergunta se os modelos estão baseados em dados realistas.

“Os que tomam decisões, se tivessem preparo científico, perceberiam imediatamente o problema, mesmo que não entendessem nada de finanças ou vulcões. Quando alguém propõe um esquema onde é possível ganhar sempre, não é difícil enxergar as pegadas de um “esquema pirâmide”, e a existência de uma nuvem mortífera que afeta um continente inteiro mas ninguém pode ver, e que não se baseia em nenhuma medição real, devia fazer as pessoas inteligentes erguerem as sobrancelhas. O mundo está descobrindo a profissão que lhe falta: pessoas cientificamente preparadas para tomar decisões. Bons cientistas sem experiência administrativa, ou políticos espertos sem conhecimentos de ciência, não são capazes de detectar esses problemas. Precisamos de pessoas que tenham ambas essas qualidades”.

2237) O Woodstock do futebol (9.5.2010)



Faltam não sei quantos dias para a Copa do Mundo! É a contagem regressiva do Globo Esporte, programa com o qual tenho uma relação parecida com a que certos débeis mentais têm com o “Big Brother Brasil”. Fazer o quê? O futebol nivela todo mundo a um nível meio primata de ser, o que é uma boa coisa, pelo menos para gente que vive lendo livros de metafísica e semiótica. Não custa nada lembrar de vez em quando que os nossos antepassados viviam brigando por causa de um coco. Correr atrás de uma bola nos leva de volta à infância da espécie.

A Copa é uma espécie de Woodstock no futebol. Woodstock foi o primeiro festival onde amanhecia, anoitecia, era um show atrás do outro, o sujeito adormecia durante um show de Santana e acordava num show de Jimi Hendrix, adormecia de novo num show de Joe Cocker e acordava num do Ten Years After... Copa do Mundo é tipo isso, são três jogos por dia e mesmo quando jogam times menores sempre existe a expectativa de um grande gol, uma grande jogada, que ganham dimensão ainda maior quando pensamos nos bilhões de pessoas que estão vendo aquilo. E quando pensamos que os jogadores sabem disso. Para eles, é sempre um tudo ou nada, e há casos incontáveis de jogadores de países obscuros que se consagraram porque fizeram numa Copa um grande gol, uma grande defesa, e entraram para a História. Pelo fato de ser vista por bilhões de pessoas e reproduzida pela imprensa de centenas de países, a Copa não registra somente o craque, mas todo aquele que consegue ter ali um momento de craque.

Não sei se alguém aí fora ainda lembra dos nomes de Boniek, Schilacci, Butragueño, Petras, Kempes, Masopust, Lato, Torres... São jogadores que tiveram seus 15 minutos de Pelé, coisa que qualquer um tem. Até eu já devo ter tido, quando jogava no “campinho das barreiras”. Até Maradona já teve 15 minutos de Pelé; o difícil é continuar sendo Pelé a vida toda. A Copa do Mundo pega os 15 minutos desses Zés-das-Couves e os amplifica, repercute, desenvolve, faz o mundo inteiro sentir-se aos pés do sujeito (ou melhor, faz o sujeito sentir-se como se o mundo estivesse aos pés dele). Depois, fumaça.

Mas onde há fumaça é porque já houve fogo, e quem viveu um momento de glória verdadeira tem o que guardar pro resto da vida. Os colecionadores de Copas, como eu, guardam momentos mágicos de cidadãos que nem sei se ainda estão vivos. De quatro em quatro anos o futebol promove um festival gigantesco em que depois do show da superbanda com centenas de milhões de discos vendidos vai subir ao palco um cabeludo sozinho com voz roufenha e violão de aço, e vai arrebatar a multidão. É aquele momento em que a energia da platéia parece passar através daquele filamento de gente que brilha no palco, tornando-o incandescente e imortal. Assim é o futebol na Copa, quando até um menino negro de 17 anos pode revelar que já é o Maior Jogador do Mundo.

2236) Maiakóvski e o Futuro (8.5.2010)



Vladimir Maiakóvski era obcecado com o futuro, e não só por fazer parte dos futuristas russos. Os futuristas eram poetas anárquicos, irreverentes, meio plebeus, que usavam linguagem das ruas, e se contrapunham ao simbolismo russo, feito de poetas intelectualizados, sofisticados, um tanto elitistas. O futurismo era uma coisa meio hip-hop para a época – a Rússia dos anos 1920. O maior poema de Maiakóvski nunca foi (penso eu) inteiramente traduzido em português. Seu título russo é “Pro eto” – nas variadas traduções, “Sobre isto”, “A respeito disto”, “About that”, etc. É um poema-livro em várias partes. A última parte, chamada “O Amor”, foi traduzida para o português por Ney Costa Santos, musicada por Caetano Veloso, e gravada por Gal Costa sob o título “O amor – sobre o poema de Vladimir Maiakóvski”, em seu álbum Fantasia, de 1981.

Neste trecho do poema, Maiakóvski se dirige aos cientistas do século XXX, porque prevê que sua amada será ressuscitada por eles no futuro: “Talvez quem sabe um dia / por uma alameda do zoológico / ela também chegará / ela que também amava os animais / entrará sorridente assim como está / na foto sobre a mesa / ela é tão bonita / que na certa / eles a resssuscitarão”.

Maiakóvski tinha duas idéias fixas: a do suicídio e a da ressurreição. Como se ele confiasse tanto no futuro que dissesse a si mesmo que podia meter uma bala na cabeça toda vez que tivesse uma desilusão amorosa: a Ciência o traria de volta. Ele diz: “O Século Trinta vencerá / o coração destroçado já / pelas mesquinharias / agora vamos alcançar / tudo o que não podemos amar na vida / com o estrelar das noites inumeráveis”.

Até aqui, a canção de Caetano tem uma melodia discreta, intimista. Mas quando começa o refrão, a música começa a galgar patamares sucessivos de modulação, de subida de tom, de um grito que parece querer alcançar cada vez mais longe, mais perto do Século Trinta: “Ressuscita-me! / Ainda que mais não seja / porque sou poeta / e ansiava o futuro. / Ressuscita-me! / Lutando contra as misérias / do cotidiano, / ressuscita-me por isso. / Ressuscita-me! / Quero acabar de viver o que me cabe / minha vida / para que não mais existam / amores servis...”

Como diz Fernando Peixoto, é “um poema sobre um amor trágico e desesperado... num clima quase permanente de alta tensão”. Maiakóvski não pensa em renascer por um milagre. Dizem que ele acreditava sinceramente que no futuro seria possível ressuscitar alguém. Para quê? O poema finaliza: “Ressuscita-me / para que a partir de hoje / a família se transforme / e o pai seja pelo menos o Universo / e a mãe seja no mínimo a Terra”. O que ecoa, invertidamente, no grito igualmente desesperado de Lennon em “Yer Blues”: “My father was of the sky / my mother was of the Earth / but I’m from the Universe / and you know what it’s worth”. Poetas de uma época em que o Futuro e o Universo estão mesmo no cerne de cada tragédia e de cada paixão.

2235) Atentado em Nova York (7.5.2010)



Vejam que coisa insólita esse episódio do quase-atentado ocorrido dias atrás em Nova York. No sábado à noite, camelôs avistam um carro estacionado junto à calçada, perto de Times Square, soltando uma fumaça suspeita, e avisam a polícia, que descobre lá dentro bujões de gás, explosivos, etc. Rastreando a origem do carro, descobrem que ele havia sido vendido uma semana antes para um paquistanês. Saem à sua caça, e na 2a.feira à noite o descobrem num avião prestes a decolar rumo a Dubai. O paquistanês é preso e confessa tudo.

Beleza não é mesmo? O dr. Watson, por exemplo, fechou o jornal e exclamou: “Maravilha, Holmes! A rapidez dedutiva e a pronta ação da polícia estadunidense são de entusiasmar qualquer um! Telegrafarei hoje mesmo ao presidente Obama, e...” Sherlock Holmes interrompeu seu solo de violino e disse: “Meu caro Watson... Você não acha que essa história está mais mal-contada do que um capítulo de Viver a Vida ou Tempos Modernos? Reflita, meu caro doutor. Que terrorista é esse que não sabe preparar um detonador decente, um que realmente explôda e mande pelos ares, se não um quarteirão inteiro, pelo menos as lojas e os transeuntes num raio de cinquenta metros?” Watson cofiou o bigode nervosamente: “Ora, Holmes, a bomba era potente. Segundo o NY Times, consistia de três latas de propano, duas de gasolina, oito sacos de fertilizante, fogos de artifício e dois relógios.”

Holmes soltou uma risada escarninha e começou a caminhar pela sala: “Excelente descrição, Watson! Parece um carro-bomba preparado por uma comissão multi-partidária, onde cada qual conseguiu enfiar o que mais lhe interessava. Não me admiraria se, procurando melhor, a polícia encontrasse seis garrafas de champanhe, um tubo de oxigênio e 500 caixas de fósforos com a data de validade vencida. Quem preparou essa bomba não foi a Al-Qaeda, foram dois casais de meia-idade, bêbados, durante um churrasco”.

O dr. Watson ainda tartamudeou algumas justificativas, mas Holmes já empunhara o jornal e apontava outra matéria: “E diga-me, Watson, qual o terrorista profissional que, precisando de um carro para um atentado, compraria um, fornecendo na transação o seu próprio número de celular? Foi assim que o rastrearam, não é mesmo? No Rio de Janeiro, muitos bandidos não sabem ler, mas quando querem sequestrar um comerciante roubam o carro de que precisam. E que terrorista é esse que deixa uma bomba para explodir no sábado e só embarca para longe do país 48 horas depois? Ora, ora, Watson. Até mesmo você, cidadão exemplar, tomaria a prudente iniciativa de deixar a bomba ligada e rumar direto dali para o aeroporto, não é mesmo?” “Por Deus, Holmes!”, gritou o doutor. “Quem poderá estar por trás disso, então? Que cérebro diabólico...” Holmes o interrompeu: “Não sei, Watson... Mas depois que o professor Moriarty deixou crescer a barba, converteu-se ao islamismo e adotou o nome de Osama Bin Laden... tudo, tudo é possível”.

2234) Por que usar drogas (6.5.2010)



Para as pessoas que não tomam drogas, a Terra é a única realidade, é o único mundo que elas conhecem. Para os que tomam, existem duas outras realidades: o Paraíso e o Inferno, porque estes dois sempre andam juntos, a existência de um é sempre equilibrada pela existência do outro. 

Existem pessoas para as quais a existência normal, cotidiana, já tem prazeres e problemas de sobra. Existem outras, no entanto, para quem esta existência é banal, comportada, descolorida, muito sem graça. Querem experimentar sensações diferentes, querem prazeres intensos, querem forçar os próprios neurônios a impressões de uma força quase insuportável, querem ir até o limite da própria mente e dos próprios nervos, mesmo sabendo que o preço a pagar pode ser alto demais. É aí que entra a droga.

Para mim, o maior erro na discussão pública sobre as drogas é considerá-las um problema de ordem moral, quando esta é uma questão que só se coloca muito mais adiante.

Muitos dos que são contra as drogas acham que usá-las é um ato de baixeza moral, e as pessoas que as usam são necessariamente más, ou pusilânimes, ou depravadas em algum aspecto.

Segundo esse raciocínio, se uma pessoa usa drogas este é um motivo suficiente para nos afastarmos dela, para evitá-la, proibir que nossos filhos convivam com ela; para nos queixarmos ao síndico, fazermos abaixo-assinados pedindo que essa pessoas seja excluída dos círculos sociais a que pertencemos. Porque uma pessoa que usa drogas é uma pessoa que tem um grave defeito moral.

Isto está errado. Existem milhões de pessoas que usam drogas e que são moralmente questionáveis, mas uma coisa não é a causa da outra. Nem todo mau caráter usa drogas, e nem todos os que usam drogas são maus caráteres (o plural desta palavra é uma questão à parte, que vou deixar para outro artigo).

Não é por canalhice que as pessoas procuram as drogas, é por variados tipos de carência psicológica (uma necessidade de compensações ou de experiências extraordinárias, mesmo que ao risco de sofrimentos extraordinários) que, em si, não constituem um defeito, nem uma baixeza, nem uma calhordice. Procuram algo parecido com o que as pessoas procuram em variadas atividades, quando dizem: “ah, isso aqui é minha terapia...” ou então “gosto de fazer isso por causa da adrenalina”.

Existe gente que encontra essa adrenalina no alpinismo, no videogame, na dança de salão, no skate, no excesso de velocidade ao volante, em práticas sexuais pouco ortodoxas, no paraquedismo, nos jogos de cassino, no esqui, em mil e uma atividades que nos tiram da realidadezinha besta e nos colocam numa situação de concentração total da mente e alta produção das adrenalinas, endorfinas, serotoninas ou sei lá que diabo o organismo segrega durante esses minutos.

Quem recorre às drogas o faz porque elas são hoje muito mais acessíveis do que esses substitutos. Combatê-las (substituí-las por algo mais saudável e igualmente excitante) não é tão difícil assim.