quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

4439) "Roma" de Alfonso Cuarón (27.2.2019)




Vi o filme de Alfonso Cuarón em streaming pelo Netflix. Meus amigos diziam que só presta ver no cinema, na tela grande, e eu concordo, porque a tela grande é um dos principais elementos da concepção estética do filme. (Vi no computador, mas meu monitor é muito grande.)

O filme conta o dia-a-dia de uma empregada índia na casa de uma família de classe média mexicana, em 1970. Diz-se que é a memória autobiográfica do diretor Cuarón, que na história seria representado pelo garoto Paco. O filme é fotografado num preto-e-branco excepcional.

Por mais que eu admire fotografia a cores, sempre acho que o preto-e-branco nos dá uma versão mais direta da realidade. As cores, no cinema, são como os adjetivos na escrita. O P&B nos dá a imagem substantiva da vida, sem enfeite, sem comentário, sem ketchup.

A protagonista, Cléo (Yaritza Aparício), é uma daquelas índias silenciosas que parecem ter sido arrancadas de uma pirâmide mexicana na selva. Poucas cenas do filme não a têm como foco. É silenciosa, diligente, observa tudo.

Na cena em que vai para o quarto com o namorado (e engravida), ela o observa encantada enquanto ele, nu, faz proezas de artes marciais. Depois, ela vai procurá-lo no subúrbio, onde ele se exercita. Vê que ele é apenas mais um no meio de tantos. Que é tão machista e bitolado quanto os outros. E não percebe que ela mesma é a única que consegue praticar a pequena façanha de equilíbrio proposta pelo instrutor. Como diria algum espectador brasileiro, Cléo é ninja e não sabe.


A família é mais uma família na perpétua crise que é a subida de status das classes médias, onde todo sacrifício tem que ser feito trincando o dente e sem bater a pestana. Tem um Fusca guardado nos fundos, mas o dono da casa desembarca (numa cena memorável) num Ford Galaxie que mal cabe na garagem.

Uma família que me lembrou a canção de Caetano Veloso e Torquato Neto, “Ai de mim, Copacabana”, contemporânea (1968) da família de Cuarón:

Um dia depois do outro
talvez no ano passado, é indiferente,
minha vida, tua vida,
meu sonho desesperado,
nossos filhos, nosso Fusca,
nossa boutique na Augusta,
um Ford Galaxie,
o medo de não ter um Ford Galaxie...


Quando o marido arranja uma aventura e vai embora, o Ford Galaxie vira um trambolho, engaveta-se nos caminhões, esboroa as colunas da garagem, até que a esposa tem um momento de lucidez, “desapega”, e o troca por algo mais realista.

A imagem cinematográfica de Cuarón é enorme, um retângulo desmedido, maior do que um Galaxie. Daí o olhar vagaroso da câmara, como uma jibóia despertando, aquela profundidade de campo e amplitude de visão que faz de cada plano uma composição complexa de coisas que se aproximam e se afastam, se deslocam.

Muita gente por aí chamando o filme de lento, porque hoje em dia ninguém parece estar acostumado a planos de um minuto. Ou é no ritmo de comercial de cerveja, ou "é arrastado, dá sono”.

A estética adotada pelo diretor é correta, e fazer montagem rápida, de planos picotados, com uma imagem daquelas dimensões é como tentar jogar ping-pong usando uma bola de basquete.

A câmera se liberta, e de maneira magnífica, naqueles longos travellings laterais nas avenidas da Cidade do México, reconstruída com aparente perfeição (que sei eu da Cidade do México em 1970!). Há um momento de rara descontração das duas empregadas, apostando corrida até a lanchonete; e depois (no mesmo sentido, da direita para a esquerda), o trajeto angustiado de Cléo tentando alcançar os garotos que correm à frente, de noite, rumo ao cinema.



Cléo é sempre a responsável por tudo, por crianças que são crianças e desobedecem o tempo todo.

Um cinema onde o garoto Paco vê o pai (que deveria estar no Canadá!) correndo às gargalhadas ao lado de uma mulher jovem. E corta para a cena de Marooned, o astronauta solto, perdido, vagando no espaço.

Esses deslocamentos de câmera prenunciam uma das cenas mais marcantes, o movimento (desta vez da esquerda para a direita) acompanhando a entrada de Cléo no oceano, sem saber nadar, para resgatar as duas crianças que estão sendo puxadas pelas ondas. Pelo que se diz, uma sequência cheia de cortes, edições, superposição de imagens, mas tudo em benefício de uma aparente continuidade de tempo e espaço, uma brilhante construção de suspense e angústia.


Cléo é inescrutável. Já disse alguém que “todo chinês tem mil anos”. A gente “lê” nessa índia maia ou asteca como lê aqueles planos intermináveis de Greta Garbo. O que conta naquele silêncio é o que ele consegue despertar dentro de quem o observa.

Mais uma vez Caetano & Torquato:

Você olha nos meus olhos e não vê nada...
Assim mesmo é que eu quero ser olhado.


Como efeito de contraste, a patroa é inquieta, cheia de tiques, transparece a todo instante o caos interior que a faz tremer. A situação a transformou numa “síndica do naufrágio”, e ela tenta se sair como pode.

Dizem (no Internet Movie Data Base) que Cuarón, na sua obsessão de reconstituir a própria infância, mandou trazer de várias partes do México, da casa de parentes seus, móveis iguais aos que havia na casa de seus pais, e os utilizou na cenografia. O filme é dedicado a “Libo”, Libória, a babá que cuidou dele e dos irmãos na infância.


(Libória Rodríguez e Alfonso Cuarón)

É um mundo cruel e carinhoso, o das babás, porque a única maneira de aguentar aquilo e não endoidecer é amando aquelas crianças alheias, que muitas vezes acabam sendo as únicas crianças que terão na vida.  Como no verso do repentista Canhotinho, de Taperoá, cantando com Lourival Batista:

Quando era injusto o Brasil,
os pretos se cativaram;
o choro dos filhos brancos
as mães pretas consolaram,
e o leite dos filhos pretos,
os filhos brancos mamaram. 





(Elísio Félix, "Canhotinho", 1913-1965)