segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

4917) O que existe por trás do Sol (27.2.2023)




(Sol Armorial) 
 
Quando mais jovem, em Campina Grande, trabalhei durante quase dois anos, como datilógrafo, na Reitoria da FURNe, a Fundação Universidade Regional do Nordeste (atual UEPB). Ficava em frente à Catedral, naquele prédio onde hoje funciona o Instituto Histórico.
 
Um dia eu estava indo à Faculdade de Filosofia (que ficava atrás da Catedral, a poucos metros dali) em companhia de Leopoldo, considerado o melhor datilógrafo da universidade. Era um cara mais velho do que eu, moreno, cabelo curto, não era de muita conversa mas tinha um senso de humor apurado.
 
Nesse dia a gente ia andando quando ele parou de repente.
 
– Espera um instante.
 
Voltou alguns passos e ficou examinando o chão de terra. Via-se ali um salto de sapato, salto preto, de sapato tipo Vulcabrás. O chão estava um pouco úmido e mole; Leopoldo escavou um pouco com a quina do pé, expôs o salto, deu um “bico” com um pouco de força e o salto de borracha saltou lá para a frente, deixando apenas o buraco na terra. 
 
– Tudo bem – disse Leopoldo, quando retomamos a caminhada. – É porque toda vez que eu passava aqui eu ficava pensando que tinha um cara enterrado de cabeça pra baixo, e só o salto do sapato aparecendo. 


(a antiga Reitoria da FURNe)
 
Essa imagem nunca saiu da minha cabeça (olha que já lá se vão 55 anos), porque nesse tempo eu vivia com o juízo cheio de surrealismo e de Luís Buñuel.  Fiquei fascinado com a possibilidade de você enxergar um pequeno objeto e ser capaz de visualizar, a partir dele, algo muito maior e totalmente absurdo. Como o galo de metal no campo nevado, onde o Barão de Münchausen amarra seu cavalo antes de dormir. Ao acordar, o Barão percebe que a neve derreteu e ele está numa pracinha, em frente à igreja, e o cavalo está esperneando lá no alto, preso ao galo do campanário. 
 
Corta para o Rio de Janeiro, éons depois.  Eu morava em Laranjeiras, e pegava com frequência o ônibus da linha 184 para ir ao Largo do Machado, onde tem metrô, comércio, lanchonetes, etc.  E um dia vejo pichado na parede de um prédio baixinho de apartamentos, já perto do Largo: 
 
O SOL É A BRASA DO BASEADO DE DEUS
 
Peço desculpas às pessoas religiosas que talvez se sintam ofendidas. Meu intuito aqui é apenas semiótico, porque essa frase, digna de um cartum de Moebius & Jodorowsky, tem uma construção muito semelhante à idéia de Leopoldo com o salto de sapato. É uma excelente fanopéia – na linguagem de Ezra Pound, a imagem visual vívida e instantânea, produzida por meras palavras.
 
Olhar para o sol, imaginá-lo como a brasa de um cigarro, visualizar um ser gigantesco por trás... A imagem era um tanto blasfema (Buñuel teria gostado). Mesmo assim, me lembrou outra imagem da infância, colhida talvez em Monteiro Lobato: a sugestão de que o céu da noite era uma vasta redoma de cristal escuro, e as estrelas eram buracos que os anjinhos faziam para espiar as travessuras das crianças da Terra. (Acho que isto está em Viagem ao Céu.)


O interessante dessa imagem não era nem mesmo a curiosidade dos anjinhos, mas o fato de que -- por trás dessa redoma escura e protetora existia o que? Existia uma luminosidade cegante, equivalente à do Sol, que se filtrava pelos buraquinhos. 
 
A materialidade da abóbada celeste é um tema antigo. Vivemos (dizia a imaginação medieval) no centro de uma esfera, que ora era transparente, ora opaca, ora azul, ora escura e pontilhada de brilharecos. 

Existe até a famosa gravura (que nem é medieval, é do século 19) em que um homem rompe o “vidro” dessa abóbada e enxerga por trás dela mecanismos gigantescos, engrenagens incompreensíveis.


(em L’Atmosphère: météorologie populaire, Camille Flammarion, 1888)

 
A curiosidade de saber o que existe por trás do céu vem dessa visão medieval que colocava a Terra como o centro do Universo, e este seria uma série de esferas sucessivamente maiores, como camadas-de-cebola superpostas. Um universo imóvel onde as esferas (onde estavam “pregados” o Sol a Lua, as estrelas) meramente giravam em torno do seu centro, a Terra, mas a estrutura básica era fixa.
 
Dá para imaginar o choque na cabeça dos cientistas quando tiveram que admitir por aproximações sucessivas (via Kepler, Galileu, Copérnico, Newton, Einstein) o atual formato do Universo.
 
Restou aos poetas imaginar outras alternativas, no plano simbólico. Guimarães Rosa, que era meio chegado a um cigarro convencional, projeta suas fantasias no inventivo Lalino Salãthiel de “A Volta do Marido Pródigo” (em Sagarana, 1946):
 
“Magina só: eu agora estava com vontade de cigarrar... Sem aluir daqui, sem nem abrir os olhos direito, eu esticava o braço, acendia o meu cigarro lá no sol... e depois ainda virava o sol de trás p’ra diante, p’ra fazer de-noite e a gente poder dormir...”
 
É o caso também de Ariano Suassuna e sua forma peculiar de tratar os temas religiosos e sertanejos.  Não por acaso, um dos seus personagens mais famosos, Dom Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, foi expulso do seminário da capital da Parahyba por causa de sua teoria do “Catolicismo Sertanejo”, no qual “a Santíssima Trindade tem cinco membros: o Pai, o Filho, o Espírito Santo, o Diabo e Nossa Senhora”.



(Irandhir Santos, como Quaderna)
 
A mitologia solar tem uma importância muito grande nessa visão-do-mundo que Quaderna expõe de maneira tão vigorosa e poética no Romance da Pedra do Reino (1971). Pudera. Todo esse romance é uma tentativa pessoal, por parte de Ariano, de equacionar o feixe de contradições e de confirmações em torno da tentativa de situar Deus e o Diabo na terra do sol. 
 
Em seu livro póstumo Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores, que é uma espécie de coral de muitas vozes e muitas “personas”, Ariano atribui a Dom Pantero um longo monólogo em tom apocalíptico (passagens inteiras do Apocalipse são citadas no livro) e a certa altura ele exclama: 
 
– O Sol é o girassol do sol de Deus!
 
A imagem do girassol é frequente na literatura mística, para indicar a alma sempre voltada na direção da Divindade. Para onde Deus vai, a alma do crente gira de mansinho, para nunca perder Deus de vista, para estar sempre inundada de sua luz.



Não sei se a frase de Dom Pantero é uma formulação de Ariano ou se ele está citando alguém (o livro é repleto de citações disfarçadas – é o “Estilo Régio” de Quaderna falando no centro), mas em todo caso é uma imagem de grande beleza. Uma fanopéia notável.
 
A idéia é que assim como o girassol volta-se para o sol o tempo inteiro, para embeber-se de sua luz, assim o Sol, por sua vez, volta-se o tempo inteiro para se embeber do “sol de Deus”, que neste caso deve ser algo de brilho incomensurável, inconcebível.
 
Reencontrei há pouco essa mitologia solar na leitura do volume 3 da série “The Sandman”, de Neil Gaiman, Dream Country (1991). 
 
Na quarta história deste volume, “Façade”, aparece a super-heroína Element Girl, a mulher indestrutível, capaz de manipular à vontade qualquer elemento da matéria. Ela é Rainie Blackwell, uma agente secreta que foi transformada em Element Girl após entrar em contato com uma divindade egípcia. Agora, está decadente, infeliz, incapaz de viver uma vida normal, e tendo que criar máscaras orgânicas para esconder seu rosto verdadeiro, cuja visão é insuportável às outras pessoas.
 
No fim, ela deseja morrer, e é visitada pela Morte, que faz parte do grupo dos Perpétuos. A Morte lhe aconselha que peça ao deus egípcio para reverter o que havia feito. “Mas onde vou encontrar esse deus?”, pergunta Rainie. A Morte diz: “Deixa de ser boba, esse deus é Ra, o sol. Vai na janela e fala com ele.”


(Neil Gaiman + Colleen Doran, Malcolm Jones III, Steve Ollif, Todd Klein)
 
Ela o faz e diz:
 
-- O sol... eu não tinha percebido antes... O Sol, também, é apenas uma máscara... E o rosto por trás dele é tão belo... é...
 
Element Girl usava dezenas de máscaras para poder ser vista pelos humanos (sua casa é repleta delas), e desse modo não lhe é difícil entender que o Sol é apenas uma máscara cegante destinada a afastar a curiosidade daqueles que desejam ver “a verdadeira face de um Deus”.