quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

4675) "Bravo Mundo Novo" (17.2.2021)




 A obra de George Orwell entrou recentemente em domínio público, e está havendo uma enxurrada de reedições de seus livros sempre necessários, sempre atuais.
 
Um caso interessante se deu com Animal Farm (1945), que diferentes editoras têm publicado no Brasil como A Revolução dos Bichos (nas traduções mais antigas) e como A Fazenda dos Animais (na versão mais recente, de Denise Bottmann).
 
Circula uma comprida polêmica, na imprensa e nas redes sociais, a respeito dessas duas opções de tradução. O que nem sempre é bom, porque tem gente que aproveita uma simples discussão de título para sair chamando os outros de idiotas e analfabetos. Mas sempre é bom, porque ao debater toda a rede de significados que se espalha em torno das palavras e das frases que usamos deixamos de obedecer cegamente a elas, e começamos a conversar com elas, e até a comandá-las, lucidamente.

 
O exemplo de Orwell me trouxe à mente o de uma obra que na minha lembrança está sempre pertinho da obra dele, e que é o Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, cujo título faz uma citação de A Tempestade, de Shakespeare:
 
“Ó, maravilha! Que criaturas adoráveis estão aqui! Como é belo o gênero humano! Ó admirável mundo novo que possui gente assim!”
(William Shakespeare, A Tempestade, Ato V)
 
Huxley era um grande escritor também, e estava muito em voga na época de minha adolescência, via Editora Civilização Brasileira. Além do Admirável Mundo Novo, me marcaram muito O Gênio e a Deusa, O Macaco e a Essência e principalmente o díptico As Portas da Percepção / O Céu e o Inferno, livro que me fascinou desde pequeno por causa da ilustração da capa, que acabou me inspirando uma das minhas pragas favoritas quando estou com raiva de alguém: “Quero que ele vá pro inferno de cabeça pra baixo!”.



 
Huxley (nascido em 1894) foi professor de Orwell (nascido em 1903) a certa altura da vida, e os dois se respeitavam. Quando 1984 fez sucesso, o autor mandou enviar ao ex-mestre uma cópia do livro, a que Huxley respondeu com uma carta elogiosa e cordial. Na mesma carta, contudo, ele reafirmava (o ano era 1949) um princípio já declarado em seu próprio livro: que as ditaduras do futuro seriam menos baseadas na repressão policial e na tortura, e mais dependentes da propaganda, das drogas e de outras formas de controle. Ou seja, é mais prático, ao invés de oprimir uma população infeliz, dar a essa população uma ilusão qualquer de felicidade, e fazer com que ela colabore com o regime voluntariamente.
 
Os dois sistemas coexistem no mundo de hoje, onde podemos ver as ditaduras do chicote e as ditaduras do chiclete.
 
Ninguém é dono da verdade; cada um de nós se debate sozinho num nevoeiro, e o máximo que consegue é gritar de longe as experiências que está tendo e escutar de volta os gritos de quem está próximo. Nada mais.
 
Huxley, na carta a Orwell, pensava nas formas de controle mental (que ele considerava uma técnica superior à da “botina-no-rosto”), e dizia:
 
Na próxima geração, acredito que os governantes mundiais irão descobrir que o condicionamento ainda na infância e a narco-hipnose [combinação do uso de drogas e hipnose] são mais eficazes, como instrumento de exercício do poder, do que cassetetes e prisões, e que a cobiça pelo poder pode ser plenamente satisfeita ao se fazer com que as pessoas amem a sua escravidão; é melhor do que chicoteá-las e dar-lhes pontapés para que obedeçam. (trad. BT)




Acho que nesse ponto Huxley foi mais longe que Orwell, embora o método brutal descrito por este tenha sido dolorosamente realista. E o fato é que do ponto de vista da imaginação e do talento literário as duas obras se equivalem, e provavelmente será assim por muito tempo.
 
Voltando à questão da tradução dos títulos, fiquei pensando sobre a forma como algumas traduções de títulos se tornam clássicas, quase obrigatórias, e chegam até a impedir que alguém tente uma tradução alternativa. 

Não me refiro a traduções literais (The Time Machine será sempre A Máquina do Tempo, acho, e The Glass Key será sempre A Chave de Vidro). Mas às fórmulas que, no idioma de chegada, envolvem uma certa maneira criativa de expressão, que acaba se impondo, e eu diria até acabam intimidando um tradutor mais cauteloso.
 
Penso num dos mais célebres entre nós, O Morro dos Ventos Uivantes, que é o nome quase obrigatório de todas as traduções do Wuthering Heights (1847) de Emily Brontë, com variações para o singular, em algumas edições.


 
A expressão foi formulada (no singular) num poema de Tasso da Silveira (1895-1968), e já aparece na primeira tradução do livro entre nós, que Denise Bottmann em seu precioso saite Não Gosto de Plágio, identifica como sendo a de Oscar Mendes para a Ed. Globo de Porto Alegre, em 1938.
 
Não sei se alguém (nem mesmo Denise Bottmann!) teria coragem hoje de propor uma tradução diferente para esse título. O Morro dos Ventos Uivantes corresponde com bastante fidelidade ao original, tem uma cadência sonora impecável, e, mais que tudo, já se entranhou no inconsciente coletivo de nossa memória escrita. Imagino a hesitação de um leitor a quem aconselharam esse romance e ele recebe, no balcão da livraria, um belo volume de aparência gótica mas com o título Cumes Tempestuosos.
 
Não é totalmente absurdo, porque Cumbres Borrascosas é a versão em espanhol da mesma obra, embora a de Tasso da Silveira tenha se aproximado um pouco mais da versão em francês, que é tradicionalmente Les Hauts de Hurle-Vent, usado na tradução de Frédéric Delebecque em 1925 (não sei se tem alguma anterior a esta). O Alto do Uiva-Vento. Alguém se habilita? Quem já morou no Alto Branco não irá estranhar muito. 
 
“Antiguidade é posto,” já diziam os antigos em sua sabedoria, forma de esperteza. As versões mais antigas dos títulos literários acabam se associando à obra, mesmo quando não traduzem de forma precisa o título dado pelo autor, como foi o caso do livro de Orwell citado no início. 

Nos EUA, o clássico de Marcel Proust À La Recherche du Temps Perdu tem duas traduções vigentes: In Search of Lost Time, mais próxima do original, e Remembrance of Things Past, que para muitos leitores de lá ficou indissoluvelmente ligado à experiência da leitura e da lembrança.
 
Todo este cerca-lourenço até aqui é para chegar no título do livro de Huxley, que é Brave New World e no Brasil tornou-se, com toda razão, Admirável Mundo Novo. Em algum ponto do meu percurso eu já quis checar essa correspondência, para saber se uma eventual tradução Bravo Mundo Novo seria correta – porque sempre me acostumei a ver “bravo” como mero sinônimo de “corajoso”, ou, em sua versão paraibana “brabo”, sinônimo de “enraivecido”.
 
Mas de fato, o Dicionário Houaiss assinala que bravo, em sua acepção 11, corresponde a “digno de admiração; notável”.
 
Caso alguém optasse por essa maneira de traduzir, estaria errado? Certo que não. Mas logo a Falange Lacradora se ergueria empunhando chuços e trinchetes, bradando que o tradutor foi preguiçoso e usou um "falso cognato". Estariam errados? Totalmente, não, porque em última análise estariam falando em nome de uma tradução que é consagrada pelo tempo e pela memória, além de ser um octossílabo perfeito e (penso eu) uma expressão mais clara e eloquente do que a nova forma proposta.
 

(Aldous Huxley)