quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

3103) O troco do diabo (7.2.2013)






Era um mau costume que Dr. Domiciano tinha, esse costume de tudo no mundo ele botar o Diabo no meio.  Chega parecia que tudo que ele abria a boca e falava tinha que pedir a bênção ao Diabo, nem que fosse pra dizer que “ele”, o Tal, era o culpado de tudo que acontecia no mundo. “Porque do jeito que o mundo anda...” – era como finalizava, com desgosto, o doutor. O mundo parecia abandonado por Deus, daí a necessidade de uma virada feroz na manivela – pra ver se o motor arrefecido da fé cristã pegava no tranco, no trompaço, na sacudida.

Tá tudo como o Diabo gosta, invocava ele em qualquer lugar onde houvesse pessoas se divertindo, ou pelo menos fingindo obedientemente que se divertiam, como em certas matinais carnavalescas. Sai daqui, Diabo, era como ele saudava as filhas jovens que os outros sócios do Iate Clube lhe apresentavam, mesmo que se seguisse um brevíssimo segundo de hesitação e depois risadas em uníssono, e vozes meio desconcertadas comentando seu senso de humor.

E se algo se perdia, ele dizia: “É o troco do Diabo. O Diabo criou o mundo, uma produção hollywoodiana, faraônica, digna de um Joãosinho Trinta bancado por um Luís Quinze. O Diabo precisa de energia de volta. Por isso a gente desperdiça tanta coisa. Você pega uma bolacha, um pedacinho cai no chão. Uma casquinha de sorvete, já reparou? Espuma de chope, champanhe espoucado... É o troco do Diabo. A gente tem que pagar de volta, nem que seja uma pichilinga de nada. Por isso os negros, que vivem bebendo cachaça, inventaram essa besteira de: ‘derramar o do santo...’ O do santo nada. O santo deles é o diabo”.

O satanismo era o elemento químico fundamental do universo de Dr. Domiciano, que enxergava o Mal em tudo, jogava pôquer com os amigos brigando com o gelo do uísque e a cinza do charuto, parecia sempre a ponto de explodir miolos pelo ambiente, tinha pavio curto com gente da conversa comprida.

Um dia o Dr. Domiciano sentiu um incômodo e pediu para ir ao médico, que ao fazer o exame empalideceu, perguntou por que não o tinham procurado mais cedo, e passou o resto da tarde dando ordens nervosas a uma equipe. A cirurgia foi bem sucedida, e dias depois a esposa do doutor foi admitida na UTI. Ela pegou na mão dele, e ele pareceu reconhecê-la. Ela disse: Quem sou eu? E ele, mais com os lábios do que com a voz: “Minha Lady”. Ela chorou de alívio. Era ele, sim, mas um ele enfraquecido pelo terrível assalto a um corpo que viveu com força. O fígado estava um farrapo, o pulmão um problema, a pressão um alarme, a bexiga uma ruína. Morreu na manhã seguinte. Dizendo, adivinha o quê? “—O troco do diabo”.