quarta-feira, 13 de abril de 2011

2529) Drummond: Nota social (13.4.2011)



Alguns dos poemas mais interessantes do primeiro livro de Carlos Drummond de Andrade, Alguma Poesia (1930) são aqueles em que ele passa um detergente por cima da imagem do poeta, limpando-a do acúmulo de fuligem romântica depositada há séculos. O Modernismo, que se pretendia irônico e desmistificador com tudo e com todos (não o foi totalmente; tinha também seus ídolos, suas ilusões, suas fantasias tão ingênuas quanto as dos Parnasianos e Simbolistas) tirou o poeta do pedestal e o enfiou no bonde, entalado por entre operários, donas de casa e meninos com o nariz escorrendo. O poeta foi abduzido do Olimpo e trazido à Rua da Quitanda.

“Nota Social” é um desses poemas desmistificadores, e curiosamente não o faz utilizando o humor, e sim a melancolia. Ele dá logo o tom nas primeiras frases, empregando a mecânica árida e reiterativa do famoso poema da pedra: “O poeta chega na estação. / O poeta desembarca. / O poeta toma um auto. / O poeta vai para o hotel.”

Quem é esse poeta? Talvez Drummond veja aí um pouco das honrarias com que os poetas jovens de Belo Horizonte receberam Mário de Andrade e sua célebre comitiva (com Blaise Cendrars, Oswald e Tarsila) que visitou Minas em 1924: “E enquanto ele faz isso / como qualquer homem da terra, / uma ovação o persegue / feito vaia. / Bandeirolas / abrem alas. / Bandas de música. Foguetes. / Discursos. Povo de chapéu de palha. / Máquinas fotográficas assestadas. / Automóveis imóveis. / Bravos... / O poeta está melancólico.”

Certamente a visita não foi tão badalada assim, mas Drummond traduz em imagens o estado de espírito daquela provável dúzia de rapazes tímidos que foi ao hotel paparicar os visitantes ilustres. As bandeirolas e os foguetões estavam todos nos olhos dos poetas mineiros. Sabe-se que começou ali a amizade pessoal e os longos anos de correspondência entre Mário e Drummond (que nessa época tinham, respectivamente, 31 e 22 anos). E pode ser que Drummond visse em Mário não somente o modernista famoso mas um sujeito como ele, tímido, meio introvertido mas cheio de afetividade, retraído mas generoso... Aliás, o único adjetivo que o poeta recebe no poema é “melancólico”.

Longe da badalação, ele enxerga outra coisa: “Numa árvore do passeio público / (melhoramento da atual administração) / árvore gorda, prisioneira / de anúncios coloridos, / árvore banal, árvore que ninguém vê / canta uma cigarra. / Canta uma cigarra que ninguém ouve / um hino que ninguém aplaude. / Canta, no sol danado. / O poeta entra no elevador / o poeta sobe / o poeta fecha-se no quarto. / O poeta está melancólico.” Drummond, já escolado, já funcionário público, já conhecedor das badalações literárias, vê o poeta recebendo rapapés sem perder a melancolia; e vê uma cigarra cantando, anônima e invisível. Pode estar pensando que aquele primeiro encontro no Grande Hotel de BH não foi o encontro entre dois poetas, mas entre duas cigarras.