domingo, 1 de janeiro de 2012

2755) Começos de livros (1.1.2012)




O que faz um bom começo de um livro?

 Um começo tem que ter algo de sólido e bem construído, que faça o leitor sentir firmeza.

Tem que revelar de imediato alguma coisa sobre a história que vai ser contada; e tem que colocar uma interrogação, um mistério, que faça o leitor querer descobrir a resposta.

Tem que parecer uma informação completa em si mesma; e tem que estar ligado ao resto do livro de tal forma que a gente só entenda por completo aquele parágrafo quando tiver lido o livro inteiro.

O romance A Child Across the Sky de Jonathan Carroll (1989) começa assim:

Uma hora antes de se suicidar com um tiro, meu melhor amigo, Philip Strayhorn, me telefonou para falar sobre polegares. 
– Já notou que quando a gente lava as mãos a gente na verdade não lava os polegares?

Tragédia e banalidade surgem juntas nesse trecho, juntamente com a primeira insinuação de um mistério. O telefonema (que se estende por umas duas páginas) já está contaminado por essa notícia do suicídio, que o personagem-narrador sabe que aconteceu, mas o personagem-ator da cena não pode saber, pois o suicídio só acontecerá depois. E o livro inteiro consiste no desvendar dos mistérios (um tanto tenebrosos) da vida de Strayhorn, um diretor de filmes B de terror.

Gertrude Stein começa The Making of Americans (1912) assim:

“Uma vez um homem raivoso arrastou seu pai ao longo do próprio pomar. ‘Pare!’ gritou por fim o velho que gemia. ‘Eu não arrastei meu pai para além dessa árvore”. 

É um começo com algo de brutal e algo de cômico. Tem algo de “conto de exemplo” insinuado pela abertura com “Uma vez...”. E, sendo a saga de duas famílias, sugere o tema da repetição cíclica de tragédias e glórias, típica do gênero.

Uma das vantagens da ficção científica sobre outros tipos de literatura é a possibilidade de dizer coisas de dimensões cósmicas, coisas que se referem à própria natureza do Universo, numa linguagem simples, direta, aparentemente banal.

Robert Charles Wilson começa desta forma seu romance Spin, de 2005 (na verdade este é o início do Capítulo 2, mas o Capítulo 1 é um mero preâmbulo, preparando o flash-back que remonta ao início da história):

“Eu tinha doze anos e os gêmeos tinham treze, na noite em que as estrelas desapareceram do céu”. 

Samuel Delany dizia que na FC podemos interpretar literalmente frases que na literatura comum são meras metáforas. Spin conta exatamente isto: o desaparecimento de todas as estrelas (inclusive o Sol) por uma ação extraterrestre. E este fato avassalador é contado a partir da infância e da vida adulta desses três protagonistas, e de como esse aparente “fim do mundo” determina suas vidas.





2754) Fragmentos de crenças (31.12.2011)



São muitas as metáforas para a fragilidade de nosso conhecimento do Universo, seja ele o conhecimento científico ou o religioso. Só temos acesso a fragmentos, e organizamos esses fragmentos de acordo com sistemas um tanto ou quanto arbitrários. Vêm daí as metáforas tradicionais que ironizam as limitações do nosso saber. Somos a traça que está devorando uma coleção da Enciclopédia Britânica. Somos a formiga que percorre o Louvre e tenta descrever o que está vendo. Somos a mosca do cinema que sai da platéia e vai pousar na tela, na esperança de entender melhor o filme.

Em Um cântico para Leibowitz de Walter M. Miller Jr. (1960), uma guerra atômica no século 20 deixa o planeta em ruínas. Dessas ruínas, penosamente, ergue-se uma nova civilização, não sem que antes o mundo passe por uma idade das trevas em que a ciência, o conhecimento e os livros eram considerados culpados pela desgraça que acontecera. A ordem religiosa de São Leibowitz tenta preservar documentos importantes para que nem tudo da cultura humana seja destruído; mais ou menos como em Fahrenheit 451 as pessoas decoram livros inteiros para evitar que seu texto se perca. Muitos desses documentos são papéis que pertenceram ao fundador da Ordem, um engenheiro elétrico chamado Leibowitz, e vários trechos do livro mostram a discussão dessas relíquias conservadas através dos séculos. Quando o texto das relíquias é reproduzido, vemos que são diagramas de instalações elétricas, listas de supermercado e outras coisas que nós, do século 21, facilmente identificamos, mas que não podem ser compreendidas nessa cultura do século 26, que é meio medieval e mística.

Os papéis de Leibowitz, que afinal não são mais importantes do que qualquer papel das gavetas de nossas escrivaninhas, são tratados com o cuidado que o mundo de hoje dá aos Manuscritos do Mar Morto ou ao Livro Sagrado dos Maias. Quem os estuda acredita existir ali uma sabedoria oculta, mesmo que ninguém consiga chegar a um acordo sobre o seu significado. Uns tentam interpretá-los cientificamente (mas à luz de uma ciência que já não é a mesma nossa) e outros os tratam como objetos sagrados, inspiradores. Miller parece sugerir que o nosso mal-entendido com relação aos nossos textos sagrados (Miller pertencia ao pequeno mas importante grupo de escritores católicos da FC norte-americana) talvez nos conduza ao erro pelo viés da Razão, mas pelo viés da Fé pode servir de inspiração para nos conseguir o acesso a verdades mais profundas. O que importa não são as banalidades escritas nos papéis de Leibowitz, mas as coisas grandiosas que os religiosos do futuro imaginam decifrar neles.