quinta-feira, 28 de agosto de 2008

0534) Ao traduzir um poema (4.12.2004)




("Poema", de Joaquim Cardozo)

Traduzir é mais difícil do que escrever. Traduzir uma obra é criar numa língua um equivalente aceitável ao que foi dito em outra, a um texto já existente. Escrever é criar a partir do não-dito, de uma idéia com a qual só o autor tem contato. 

Quando eu traduzo um texto de Shakespeare, estou diante do mesmo problema com que Shakespeare se deparou há 400 anos, o problema de expressar aquelas idéias em palavras. Ele tentava dizer aquilo em inglês, eu estou tentando dizer em português. Ele tinha um pouco mais de liberdade, porque estava produzindo um texto original, fiel apenas à idéia informe e difusa que se agitava em sua mente. Eu, no entanto, tenho que ser fiel a um texto inglês universalmente conhecido. 

É neste sentido que é mais difícil traduzir do que escrever, e um tradutor de Shakespeare enfrenta problemas técnicos que Shakespeare não precisou enfrentar.

Paulo Rónai, um dos nossos maiores tradutores, costumava citar uma frase de Heine, segundo a qual “traduzir poesia é como empalhar raios de sol”. E comentava ele: “Mas, será que escrever poesia também não será a mesma coisa?” 

A tradução poética é a mais difícil de todas, porque lida com a mais conotativa das linguagens. Dêem-me para traduzir um manual técnico da Microsoft ou um guia de trens britânico, mas não me dêem um poema, que é muito mais trabalhoso! (Estou brincando, claro. Mil vezes o poema.)

Ao traduzir poemas de forma fixa, temos que reproduzir uma série de elementos: 

1) a estrofe; 

2) o esquema de rimas; 

3) o ritmo silábico no interior de cada verso; 

4) a sonoridade dos fonemas; 

5) o conteúdo do texto. 

É coisa demais para se transpor, e há de haver uma perda em algum desses departamentos. Um dos nossos melhores tradutores de poesia, Augusto de Campos, se destaca justamente pelo fato de procurar sempre atender a todos estes requisitos ao mesmo tempo, e de geralmente conseguir um nível impressionante de aproximação em todos eles. 

Mas em geral é preciso decidir: reproduzo as idéias do poema original, ou a sua bela alternância de sílabas fortes e fracas, e de palavras que rimam no meio e no fim dos versos?

Parece muito com aquele problema da Física, o de definir uma partícula em função de sua velocidade e de sua posição. Para medir a velocidade, temos que observar seu deslocamento e abrir mão de saber sua posição exata. Se queremos saber sua posição exata num dado momento, é preciso “fechar” a observação nesse momento, mas aí não podemos saber a que velocidade ela estava se deslocando. 

Na tradução de poesia, cada vez que queremos reproduzir o sentido dos versos temos que sacrificar os detalhes rítmicos e melódicos com que o poeta se exprimiu originalmente. E quando ”fechamos” a nossa atenção para reconstruir em português essas minúcias, é possível que o sentido comece a se dissipar. 

Traduzir é perder. A arte consiste em trabalhar simultaneamente em todas essas frentes, e tentar perder o mínimo possível em cada uma delas.





0533) O Iraque é aqui (3.12.2004)



(Faixa de Gaza ou Zé Pinheiro?)

Toda vez que aparecem na TV aqueles carros-bomba de Bagdá, atentados terroristas aos ônibus israelenses, garotos palestinos apedrejando tanques de Israel, é muito fácil para a gente pensar que tudo isso ocorre do outro lado do mundo, não tem nada a ver com a gente. A gente pega o controle remoto, muda de canal, e vai se preocupar com catástrofes mais suportáveis, como a queda do Flamengo para a Segunda Divisão.

Pois eu tenho um método pessoal para ver guerra na televisão. Não sei se vocês já perceberam o quanto o Oriente Médio parece com o Nordeste. Nem me refiro à semelhança étnica que faz esses árabes todos, a começar pelo falecido Yasser Arafat, parecerem dublês de Geraldo Azevedo e Alceu Valença. O que parece é o jeitão das cidades, ou pelo menos da parte moderna delas, com seus caixotes-de-cimento, seus caminhões velhos, seu calçamento irregular, suas lojinhas de dois andares, seus sobrados com um mercadinho no térreo e um apartamento no andar de cima, toda aquela paisagem que encontramos com poucas modificações em qualquer subúrbio de cidade nordestina (ou nos subúrbios das nossas grandes metrópoles, que estão “assim” de nordestinos).

Eu fico tentando me identificar com os dramas alheios que vejo na TV, e não é difícil perceber o quanto essas cidades parecem com as nossas. Quando penduraram os americanos nas vigas de aço da ponte, em Fallujah, eu não pude deixar de pensar: “Eita, isso foi no Recife: olha só, a Ponte da Boa Vista!” Dias atrás vi um atentado a bomba em Bagdá que me deu um aperto no coração, porque aconteceu numa daquelas ruas do São José que levam ao campo do Treze. Todos aqueles enterros de militantes palestinos, com o caixão coberto pela bandeira, e o pessoal gritando e erguendo fuzis no ar, acontecem em Zé Pinheiro. É impressionante como a Faixa de Gaza ou a Cisjordânia parecem com o Zepa. E houve um atentado a um ônibus israelense, ano passado, que era num lugar igualzinho à Avenida Canal, ali perto do Ipiranga.

Fallujah, Mossul, Tikrit, Nablus, Jerusalém, Tel-Aviv: não precisa muita imaginação para reconhecer como nossa aquela paisagem de sol impiedoso, horizontes empoeirados, rodovias precárias onde se cruzam ônibus, jegues, carroças e veículos militares. Alguns especiais da TV esquecem um pouco a guerra e se detêm sobre as pessoas, seu dia-a-dia, seus medos e suas esperanças. Eles têm rostos morenos de meninos e meninas na nossa zona-da-mata ou do nosso cariri. Falam uma língua incompreensível, mas não precisamos entender o que falam para saber o que estão dizendo. Todas as vezes que um carro-bomba faz essas pessoas em pedaços, fico pensando que isso aconteceu ali no Ponto Cem Réis, na subida do Alto Branco; ou que aconteceu na pista que leva para o Campestre; ou que aconteceu em qualquer um desses lugares comuns e sagrados de Campina, que é sempre meu ponto de referência para checar se uma coisa existe de verdade, se uma coisa é real.


0532) A Ciência e a Fé (2.12.2004)




(casa dos índios Pueblo)

Um dos maiores equívocos das discussões filosóficas de mesa-de-bar é imaginar que a ciência se baseia apenas na Lógica e a religião apenas na Fé. 

Concordo quanto a esta última: todas as religiões procuram desdobrar-se em argumentações para mostrar que estão certas, mas a essência da atitude religiosa é a Fé, a certeza de algo inexplicável, a crença em algo transcendente e impossível de codificar.

O problema é que a ciência procede de um modo muito parecido. A ciência se baseia na Razão, mas um grande problema da Razão é que ela é incapaz de se sustentar por si mesma; ela sempre precisa se apoiar em algum tipo de Fé. 

Suas premissas podem se basear no empirismo mais pragmático, ou nas deduções mais impecavelmente lógicas: mas sempre precisam da Fé.

A primeira Fé de um cientista é: “O Universo faz sentido”

Ele pode achar que não existe um mundo espiritual, pode achar que não há Deus, e que o Universo inteiro é um simples agregado de átomos que se organizam em estruturas de matéria e energia. Mas ele acredita que tudo isto faz sentido, obedece a leis – ou, para ser mais científico, “organiza-se em padrões de regularidade que é possível medir e prever.” 

Quando está diante de algo caótico, contraditório, absurdo, o cientista balança a cabeça, teimoso, e continua insistindo em busca de uma lei, uma ordem, um sentido. E geralmente encontra.

Uma outra Fé, ou uma variação da anterior, é: “O Universo é sempre o mesmo.” 

O cientista tem uma crença religiosa na continuidade dos fenômenos. Ele acredita piamente que o sol vai nascer amanhã de manhã, e tem mais: vai nascer no Leste, e nunca no Oeste. Quem garante? Para ele, quem garante esta regularidade é justamente o fato de não existir um Deus sujeito a venetas e caprichos, como o Deus bíblico que mandou o sol se deter no céu durante três dias para que Josué pudesse invadir Jericó. 

Os cientistas têm uma fé absoluta na inexistência de venetas desse tipo. Pergunte a qualquer um, e ele vai confirmar que sim, o sol vai nascer amanhã, nem que a vaca tussa; e ele dirá isto com uma Fé tão sólida quanto a fé do Papa.

Há uma tribo, acho que são os índios Pueblo, do México, que toda madrugada acorda cedinho e entoa cânticos “chamando” o sol. Eles crêem que o sol só nasce devido a esse seu chamado, e que é responsabilidade deles fazer com que o sol nasça todos os dias, ilumine o mundo, aqueça os corpos, estimule as colheitas. 

Os cientistas têm uma fé igualmente sólida no fato de que a matéria-em-movimento se comporta hoje como se comportou sempre, e se comportará amanhã como se comporta hoje. 

Daí a enorme crise dos cientistas quando alguém lhes provou que não existe o tempo absoluto, ou que o sol não gira em torno da Terra, ou que era possível desintegrar a matéria e transformá-la em energia. Nada disso era possível antes, mas todas as suas crenças tiveram que ser reformuladas para incluir estes fatos novos, para que estes milagres impossíveis não desmentissem sua fé.






0531) A máquina pensante (1.12.2004)


(do saite "Thinking Machine")

Uma das características mais interessantes do jogo de xadrez (como da maioria dos jogos, mas, concentremo-nos num só) é o fato de existir uma hierarquia estratégica que se sobrepõe à mera probabilidade matemática dos movimentos. Essa hierarquia se refere aos movimentos que deixam o jogador mais próximo de derrotar o oponente. Antes de cada movimento, existe um número gigantesco (embora finito) de possibilidades, em função do movimento de cada peça e das casas disponíveis para ela. Matematicamente, todos estes movimentos se equivalem. Estrategicamente, uns são mais relevantes do que outros.

Podemos então dizer que há três tipos de jogadas. Primeiro, a jogada possível: qualquer movimento para a frente, para trás ou para o lado, que seja permitido pelas regras, independentemente de sua utilidade. Segundo, a jogada obviamente útil: a jogada que tem mais probabilidade de ameaçar o oponente ou de conquistar para o jogador uma posição vantajosa. E terceiro, a jogada surpreendente: uma jogada pouco óbvia, que à primeira vista parece totalmente absurda, mas que pode desencadear uma combinação improvável de movimentos e dar a vitória ao jogador.

Quando um computador é programado para jogar xadrez, os movimentos do primeiro tipo são facilmente programáveis: o bispo pode ir para estas e estas casas, mas não pode ir para aquelas. Os movimentos do segundo tipo também podem ser programados, desde que se possa prever, para cada situação possível no tabuleiro, quais os caminhos mais rápidos para obter a vitória. Os movimentos de terceiro tipo são os mais difíceis. Eles são mais elegantes, mais ricos, mais surpreendentes, e possuem não apenas um valor estratégico, mas um valor estético. São o pulo-do-gato.

O saite “Thinking Machine 4” (em: http://turbulence.org/spotlight/thinking/chess.html) oferece um interessante recurso para ilustrar o modo como uma máquina pensa o xadrez. A cada jogada, linhas coloridas vão surgindo na tela indicando os movimentos mais prováveis para responder à jogada feita pelo adversário. À medida que a máquina “pensa”, algumas linhas vão ficando mais encorpadas, mais nítidas, porque um número maior de manobras passa por ali, até chegar o momento em que a máquina responde à jogada que fizemos.

Assim como no campo verbal podemos distinguir uma linguagem mais previsível e mais “pobre” (a linguagem normal do dia-a-dia) e uma linguagem menos previsível e mais “rica” (a linguagem poética), os movimentos no xadrez podem ser classificados em graus de previsibilidade e riqueza. Os melhores movimentos são os que cumprem uma função estratégica, possuem uma simplicidade estética (como a “elegância” das fórmulas matemáticas) e guardam um grau maior de imprevisibilidade. Escrevem por linhas tortas. Criam um atalho imprevisto. São inexplicáveis à primeira vista, mas na seqüência das jogadas o adversário percebe qual era a armadilha – quando já é tarde demais.

0530) A lei de Zezim Torneira (30.11.2004)


(vítima civil em Fallujah)

Zezim Torneira era um garoto que tinha lá no Alto Branco, nos velhos tempos. Segundo a lenda, um belo dia ele estava sentado em cima de um muro, aí escorregou e caiu lá de cima. Por azar, caiu sentado em cima de uma torneira que tinha no pé do muro, uma dessas torneiras baixas onde as pessoas lavam os pés antes de entrar em casa pela porta dos fundos. Zezim caiu sentado em cima da torneira, que não era uma dessas torneiras modernas, redondas, mas daquelas que têm uma haste horizontal, do tipo “borboleta”. A borboleta entrou com tudo no fedesqüepe de Zezim, que sofreu cirurgia, pontos, convalescença, e teve que passar o resto da adolescência ouvindo a toda hora um pirangueiro gritar: “Zezim!... Pega aqui na minha torneira!”

O mais interessante do episódio é que Zezim tomou-se (compreensivelmente) de um verdadeiro ódio ao apelido, e à simples menção da palavra torneira. Ficou como aquele doido chamado Garapa, que quando surgia um cara gritava de um lado: “Água!...” e outro respondia lá adiante: “Açúcar!...” e ele ficava esbravejando no meio da rua: “Se misturar eu mato um!” Pois Zezim era a mesma coisa. Ele vinha pelo Ponto Cem Réis, chegava ali à altura do canal, tinha três ou quatro garotos sentados na ponte, conversando futebol. Quando Zezim se aproximava, havia um certo silêncio... e aí ele enchia a mão de pedras e saía correndo, furioso, cobrindo todo mundo na pedrada. A galera gritava: “Mas ninguém disse nada!” E Zezim Torneira: “Mas pensou!”

Parece familiar, caro leitor? É o conceito georgebushiano de “pre-emptive war”: defender-se antes mesmo do ataque acontecer. Como toda deformação bárbara de conceitos, este se baseia numa verdade indiscutível. No caso, um princípio básico da Medicina (“é melhor evitar a doença do que tentar curá-la depois que acontece”), o qual passou para a sabedoria do povo na forma enxuta e lapidada de “É melhor prevenir do que remediar”.

Transposto para o mundo militar, esse conceito se transforma no que um oficial dos Marines americanos aconselhou aos seus comandados, antes da invasão de Fallujah, dias atrás: “O inimigo pode vir vestido de mulher, pode estar se fingindo de morto. Atirem em tudo que se mexer, e em tudo que não se mexer.” O massacre americano no Iraque não é monstruoso pela quantidade de mortos, mas pela gratuidade da guerra, pela absoluta desnecessidade de uma invasão como esta, e pelo fato de que está se criando naquele país um celeiro de terroristas muito mais perigoso do que o que poderia crescer embaixo da asa de Saddam Hussein.
Atirar primeiro e perguntar depois é uma atitude de quem está desesperado. Não importa se quem está desesperado é justamente o exército mais forte, mais numeroso e mais bem equipado. O desespero deles reside justamente em saber que não têm outro exército pela frente, têm uma população violentada e ressentida, onde é preciso atirar até nos cadáveres. Sabe-se lá no que um iraquiano morto pode estar pensando!

0529) A importância das gárgulas (28.11.2004)




(Catedral de Sevilha)

George Orwell, comentando os romances de Charles Dickens, os definiu assim: “Uma arquitetura horrível, mas com gárgulas maravilhosas”. 

A fórmula se aplica a muita coisa na literatura. Se entendi bem, Orwell queria dizer que os livros de Dickens têm defeitos de estrutura, são mal planejados, não têm unidade, mas estão repletos de passagens brilhantes, descrições vívidas, personagens inesquecíveis. 

É uma tendência do romance em estilo folhetinesco, aquele texto que vai sendo planejado à medida que vai sendo escrito. Não se pode exigir dele a clareza apolínea de um romance de Osman Lins, de Georges Perec ou de Autran Dourado, esses planejadores contumazes. 

O escritor folhetinesco não planeja: escreve aos arrancos. Assim era Alexandre Dumas, assim era Henry Miller, e assim era Jorge Amado. Nenhum destes jamais teve vocação arquitetônica.

Alguns colegas mais sofisticados hão de torcer o nariz diante destes exemplos (nenhum destes três é considerado um “grande escritor”), portanto deixem-me recorrer a outros: Dostoiévski, Balzac. Estes, se minha bolsa-de-valores não está desatualizada, são considerados escritores de primeira linha, mas não pela sua arquitetura, e sim pelas suas gárgulas. 

Eu diria que o gênero “romance” é por natureza mais propício às gárgulas do que ao planejamento arquitetônico. O romance, pelas suas dimensões, parece ser uma obra de engenharia; mas a sua tendência mais natural é para ser uma obra múltipla de escultura.

Pego como exemplos o Romance da Pedra do Reino de Ariano Suassuna e Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa. São dois livros imensos, desconjuntados, excessivos. 

Em matéria de arquitetura dramática, não têm a elegância de um Niemeyer ou de um Frank Lloyd Wright. Parecem-se mais com a Catedral de Sevilha, uma geringonça de blocos superpostos por cristãos e muçulmanos ao longo de séculos. Uma estrutura produzida por simples acreção, sem planejamento, sem que em momento algum de sua construção alguém tivesse em mente a totalidade do conjunto, ou uma intenção final. 

Grande Sertão é o terror de muitos leitores que recuam diante daquele linguajar bárbaro, e se perdem naquele labirinto de palavras que parece não estar levando a lugar algum. Por sorte, apesar do começo do livro ser totalmente aleatório, por volta da página 150 a narrativa pega um rumo e daí em diante flui toda na mesma direção.

O livro de Ariano também é cheio de idas e vindas, flash-backs longuíssimos, incontáveis episódios interpolados. É quase impossível ler o livro de A a Z e ter uma idéia clara da história que foi contada; é preciso voltar atrás, botar as peças na ordem, esquecer as numerosas e intermináveis citações de livros alheios... 

Mas no meio disso tudo, quantos episódios brilhantes de humor, de visionarismo sertanejo, de erotismo sacrílego e tentador, de sátira política e literária. Com uma gárgula dessas por capítulo, quem liga para a forma da catedral?






0528) O ônibus da Prata (27.11.2004)




(prédio do Correio, foto atual)

O ponto do ônibus da Prata, que nos levava todas as noites para as aulas no “Gigantão” era junto ao prédio do Correio, naquele trecho da calçada hoje cheio de fiteiros e barracas. 

A época a que estou me referindo é 1967, quando comecei o Curso Clássico e entrei para o turno da noite. A aula começava às 19:00, de modo que a partir das 18:30 aquilo já ficava intransitável de tanta gente fardada. 

Me lembro como se fosse hoje da farda das meninas, que era uma blusa branca de manga curtas, com o monograma do colégio bordado em verde, no bolso; as saias eram cáqui, pregueadas, com fitas verdes ao longo da barra, e foi essa a época em que começaram a subir, segundo a lei de Mary Quant, que fez mais pela nossa vida sexual do que Fritz Kahn e o Padre João Mohana juntos.

O ônibus saía do Correio e virava à direita na Getúlio Vargas, descia pela frente do antigo Cine Avenida, virava à esquerda na Nilo Peçanha. O primeiro ponto de descida era na esquina em frente à Igreja do Rosário. Os pontos correspondiam aos três portões de entrada do Colégio, situados ao longo de dois quarteirões inteiros. 

Depois que descarregava os alunos, o ônibus enchia com os que estavam voltando para o centro, e seguia rumo à Rua da Independência, onde virava à esquerda e descia até a Praça do Trabalho, passava em frente ao Cine São José e descia para o balde do Açude Novo. 

Ali, não me lembro se subia a 13 de maio, ou se já virava à esquerda para subir pela Floriano Peixoto até em frente ao Capitólio, onde rodeava a Praça da Bandeira e encerrava a “circular” na calçada do Correio.

O interior do ônibus era uma versão eufórica do caos. A cada curva, todos os corpos masculinos, de acordo com a Lei de Isaac Newton, eram pressionados de encontro aos corpos femininos. Quem estava sentado empilhava no colo bolsas, pastas, pranchetas e livros de quem estava por perto. Descidas e freadas bruscas eram saudadas com gritos de provocação: “Tira o pé do bolso, motorista!” “Motorista, bateram minha carteira!” Havia um motorista chamado Taba Lascada que era alvo permanente de gozação.

Quem sofria muito também era o cobrador. Naquele tempo não havia roleta, o cobrador andava pelo ônibus recebendo o pagamento e dando uma senha como comprovante, senha que ele destacava de um talãozinho que trazia na mão. Era um sistema de controle, convenhamos, fadado a uma rápida extinção, porque ninguém colocava a senha na urnazinha ao sair, e todo mundo brandia uma senha velha: “Oxente, rapaz! Já paguei!” 

O cobrador tinha que se esgueirar entre os corpos de todos, empurrar, meter o cotovelo, firmar-se do melhor jeito possível enquanto recebia o dinheiro e passava troco. Ele pegava as notas, dobrava-as ao meio do sentido do comprimento, e as prendia entre os dedos. Jean-Luc Godard, em viagem ao Rio nos anos 1950, encantou-se com este detalhe nos ônibus cariocas. 

Eu olhava para aquilo sem prestar atenção, achando que ia durar para sempre.