sábado, 16 de março de 2013

3135) A carta misteriosa (16.3.2013)






O carteiro enfiou a correspondência por baixo da porta da rua. Quando a recolhi, lá estava o pequeno envelope branco. O endereço era o meu, mas tinha como destinatária uma mulher cujo nome não reconheci. Olhei o remetente: outro nome feminino, num endereço do interior da Bahia. Devia ser uma carta para alguma ex-inquilina da casa, onde eu morava há pouco tempo. 

Fazer o quê? Perguntar por ela à proprietária da casa, que morava na mesma rua, uns 50 metros mais acima? Colocar num envelope maior e devolver à remetente? Meu pequeno minuto de hesitação foi neutralizado pela fórmula mágica: “Depois eu resolvo”. Havia coisas mais urgentes para responder entre as cartas recolhidas embaixo da porta.

Anos depois, andei lendo um dos meus “coffee-table books”, aquele livros grandes, de capa dura e papel “couché”, que a gente bota na mesa da sala para que algum visitante chique sinta alívio, percebendo que também ali, e não só na casa dele, os livros são usados como adereços de decoração. 

Ao folhear (era um álbum de fotos do Rio de Janeiro), cai-me aos pés um envelope branco, pequeno, fechado. Examinei-o com estranheza. Era uma caligrafia feminina (era mulher, a remetente), aparentemente alguém que se alfabetizou às custas de esforço e determinação. A caligrafia era cursiva, mas cada letra surgia solta das demais, cada letra era mais desenhada do que escrita, marcando fundo o papel. 

Uma carta de uma desconhecida para outra desconhecida. Vaga lembrança. O que diabo esta carta está fazendo aqui? Como veio parar aqui? Fiquei desconcertado, larguei a carta e o livro sobre a mesa. Depois eu resolvo.

Hoje, aqui está ela pela terceira vez. Numa pasta de arquivo-morto, onde acumulo rascunhos, manuscritos, fragmentos, versões datilografadas de poemas, contos e canções que nunca chegaram a lugar nenhum. E que espero ter tempo de queimar antes de morrer, para que a posteridade não mangue de mim. 

Que diabo quer essa mulher, que não me deixa em paz? A carta continua intacta, fechada em si mesma. Seu mistério permanece virgem; o respeito (ou a indiferença) foi maior que a curiosidade. Vinte anos se passaram, já saí daquela casa, mas carrego comigo esse pequeno erro que herdei. 

Quem sabe se Dona Fulana, até hoje, espera o carteiro com a resposta. Não, Dona Fulana, sua resposta não chega. Nem mesmo a pergunta chegou. Está no cemitério das canções que não levantaram voo, dos poemas que foram interrompidos pelo mero constrangimento de estar escrevendo besteira. Se a senhora fosse escritora profissional saberia que mandar uma única carta não adianta. É preciso escrever uma carta por dia, uma carta por hora, uma carta por minuto.