terça-feira, 15 de março de 2022

4803) Entrevistas Transcendentais: André Breton (15.3.2022)



(André Breton, por Victor Brauner, 1934) 
 
Uma neve fina e constante cobre as calçadas, e se deposita sobre os bancos de praça no canteiro central do bulevar. Os galhos nus das árvores parecem raios em negativo, congelados no instante em que se projetavam rumo ao céu. Há poucos arbustos da pracinha, encolhidos, tiritantes, como vultos escuros e indistintos, e só então percebo que tudo à minha volta é preto e branco: as fachadas, os lampiões, alguns trechos de grama visíveis junto aos gradis. O próprio Moulin Rouge, que avisto à distância, ergue uma torre cilíndrica de cor cinza-grafite, de encontro ao céu branco e sem luz. Suas pás imóveis parecem também congeladas.
 
Mais alguns passos e estou diante do Cabaré do Céu e do Inferno. Paro junto ao poste do lampião. Penso que aquela gigantesca carantonha à minha direita, com sua boca hiante e os olhos arregalados (gesso pintado? papel machê?) teria cores vívidas, em seu tempo; aqui e agora tem um contraste brutal de xilogravura, e parece ter sido pintada com a pegajosa tinta negra dos mimeógrafos. Toco a campainha. A concierge me introduz sem me dar muita atenção, acostumada à presença de tipos estranhos.


Subo as escadas. Um resto de latejo adolescente me obriga a pensar que por aqueles degraus já subiu Apollinaire, já subiu Desnos, já subiram Éluard, Max Ernst, Péret. Por esta escadaria terá subido um Luís Buñuel ainda jovem, atlético, truculento?... Nestes degraus já pisaram os pés de Raymond Queneau?...
 
Toco a campainha no quarto andar, a porta se abre, a senhora grisalha e de olhos graves ouve meu nome, assente, convida-me a entrar. Há um corredorzinho estreito e sou conduzido a uma sala espaçosa e atulhada. Sento, olho em redor. O primeiro pensamento é: “O cabaré do andar térreo é uma simples antecâmara disto aqui”.
 
A coleção de Arte. Nas paredes, no mantel da lareira, nas bancadas, nos aparadores, nos nichos, nas prateleiras, contempla-me uma galeria de duendes de cornos retorcidos, plantas carnívoras pintadas de batom, colares de olhos de vidro, guerreiros em ébano incrustados de balas de fuzil, buquês de espuma cadavérica, seios de odalisca virgem, absinto sólido esculpido em cacho de uvas, senadores cinocéfalos, fogueira de lâminas tetânicas, tigresas obesas expelindo letras em itálico, moedas triangulares de madeira com um prego cravado no centro, arlequins sem dentes agitando chicotes, baú transbordando de sereias xifópagas...
 
Ele entra devagar. É o ancião que vi nos obituários, e se aproxima vagaroso, meticuloso, com olhos que procuram, mãos trêmulas que experimentam os objetos antes de manuseá-los. Traja camisa e calças de flanela, em diferentes tons de azul, e um casaco de seda em cores vivas, que lhe desce até os joelhos. Aperta minhas mãos com gentileza, perscrutando meu rosto; tenho certeza de que não percebeu meus próprios trajes. Pede-me desculpas pela demora (que foi nenhuma), pergunta se quero algo: “Du thé?... Du vin?...” 
 
Ora que diabo, estou a trabalho mas estou em Paris, estou diante do homem que escreveu Os Campos Magnéticos. “Duvã !...”
 

 
BT – Monsieur Breton, estão se completando cem anos da explosão surrealista, ou da revolução surrealista, ou da revelação surrealista... Algum desses termos o satisfaz, levando em conta tudo que aconteceu?
 
AB – São palavras apenas, palavras que não eletrocutam mais ninguém. Toda nossa busca foi pelas palavras energizantes, as que inflamam e destroem, as palavras radioativas, tanto as que abrem a gruta de Sésamo quanto as que fazem a terra fender-se e engolir o arauto antes que ele chegue à última sílaba. Fomos esses arautos. Nossos versos eram granadas ativadas pelos olhos de quem sabia lê-los. E todos nós sucumbimos, não é verdade? Mergulhamos as mãos na lava borbulhante do inconsciente para esculpi-la, para dar-lhe formas de náiades, para fazer a lava arquejar de gozo. E descobrimos que a lava não se dobrava aos nossos desejos. Talvez tenhamos somente esculpido réplicas de nossas próprias mãos. (sorri, ergue a mão direita à luz que vem da janela) Mãos são aranhas que tecem livros.O senhor já esteve na guerra? Uma guerra não ensina coisa alguma, eis a nossa desgraça. Saímos da guerra e da vida sabendo tão pouco como quando entramos.
 
O vinho é servido; brindamos.
 
BT – A experiência da Primeira Guerra marcou sua geração. O surrealismo foi uma reação contra esse horror?...
 
AB – Não!  Jamais!  O surrealismo, no que para ele sonhávamos, seria sempre ação, nunca reação. Nunca uma resposta; nunca uma consequência. Queríamos, como tantos outros poetas, desvirginar o labirinto do velho e metafísico mistério. O dédalo sem saída das palavras formulaicas, que mascaram a realidade, produz um véu de tule que nos permite divisar silhuetas e tomá-las pelas coisas-em-si. Nosso gesto foi um gesto de ação; de agressão, se quiser, mas sempre um gesto de enfrentar a realidade. Precipitamo-nos sobre ela com a ousadia com que um suicida se precipita contra o pavimento. A guerra serviu para nos mostrar que a vida não tinha limites. Acreditávamos (me refiro aos homens, a nossa espécie como um todo) acreditávamos na paz, na natureza; mas se aquele horror era possível, então tudo que houvesse entre esses dois extremos tinha que ser levado em conta. Inclusive o crime sem motivo, a blasfêmia sem perdão, o irracional sem beleza, o martírio sem explicações, a depravação sem prazer, a loucura sem libertação... Os descarrilamentos do espírito. A guerra me apresentou à loucura, em Nantes, onde fui enfermeiro. E aqueles homens que babavam e balbuciavam sílabas sem sentido, queixas fantasiosas, que improvisavam palavras híbridas para vomitar o indizível... aqueles homens estavam sintonizados com o tempo em que viviam. Nós, os lúcidos, fomos os perdedores daquele conflito. O surrealismo foi a convulsão de um corpo que precisava descobrir se estava vivo ainda.
 
BT – Fala-se que o Surrealismo nasceu de uma visão pessimista do mundo, mas depois adotou o mais improvável dos otimismos, que foi o comunismo marxista. O senhor certamente vê essa questão num nível maior de complexidade.
 
AB – É preciso ter em mente que a cidade onde circulávamos era uma galeria de monstruosidades, de deformações em cera e arame, de batráquios galvanizados candidatando-se a cargos eletivos, de contrabandistas de estrume eleitos para as academias. Não há como descrever, para um sobrevivente dos séculos, a espantosa fermentação nauseabunda de ideologias bastardas em que se refocilava a Paris daquele tempo, a Paris dos andaimes sanguinolentos, das cadeiras de tribunal forradas de couro cabeludo, dos cartórios onde as penas dos necromantes eram molhadas em tinteiros de pus, das repartições públicas onde era preciso mastigar os pés de uma múmia para ter o direito de praticar felação num fuzil. Esse era o mundo normal que os Surrealistas escandalizaram, e que depois os comunistas ameaçaram dinamitar, e que os editorialistas de L’Humanité proclamaram morto um século após seu apodrecimento. Sim, nosso impulso era o de espezinhar os arquiduques, e de dirigir mangueiras de incêndio contra esses Panteões feitos de açúcar.



BT – Em suma, era muito mais um movimento de negação do que uma nova proposta de organização social...
 
AB – Mas meu caro senhor, como concebe uma “nova proposta de organização social”? O entendimento que nos inquietava, que nos bouleversava, era o entendimento de que a sociedade é ao mesmo tempo um desabrochar e um desmoronar sobre si mesma, um gêiser pagão, um jato dágua que se ergue vertical e depois desaba de volta em circunvoluções semelhantes ao deste cérebro onde nada existe em linha reta, onde dois mais dois não perfazem quatro porque se trata de duas calçadas e duas moscas... Mas ainda assim é notável o esforço da humanidade em tentar produzir ritos, formalidades que deem a impressão de mundo normal. A civilização é a tentativa de reger as chamas de um incêndio. Minha ironia final é constatar que a lógica, a cultura, a ordem social, são as proposições mais absurdas, mais bizarras, mais  insanas – mais Surrealistas, portanto – a que a Humanidade jamais se dedicou. Oh, sim, a última palavra é uma gargalhada. A História é escrita pelos vencedores, mas a última piada é sempre dos vencidos.

 
BT – Não sei se foi o seu caso. Talvez a última fala tenha sido de Salvador Dali, não? No mundo de hoje, a palavra surrealismo leva mais gente a pensar nele do que no senhor. Ou em Aragon, Péret, Desnos, Éluard...
 
AB – Ah, Dali, aquele manequim anguloso funcionando à bateria... Sim, sei muito bem a celebridade em que se tornou, ele e seu realejo de prodígios pré-fabricados... Suas bisnagas palpitantes de esperma, seus tigres feitos de tapete, seus espectros de veludo e fumaça... Dali (como outros, aliás) é a melhor comprovação da tese surrealista de que a libertação do espírito e o contato com o plasma ardente da poesia estão ao alcance de qualquer um. Quando dizíamos que a poesia deve ser feita por todos, é porque incluíamos nessa lista os canalhas, os traidores, os mercenários, os pavões cravejados de medalhas comemorativas, os gigolôs da fortuna alheia, os estripadores, os estupradores, os enfermeiros que injetam soporíferos na língua dos pacientes... Se o Surrealismo prevalecer um dia, meu caro senhor, todos esses indivíduos serão capazes de produzir poesia de alta qualidade, porque o Espírito (que é algo muito distinto da “alma” dos cristãos), se manifesta em todas as mentes humanas. Esse é o deslumbramento e a tragédia da condição humana: que as piores pessoas que temos sejam também capazes de produzir o que temos de mais elevado, porque – esta é uma das palavras de ordem do Surrealismo – em qualquer ser humano insignificante é possível fazer desencadear os poderes originais do Espírito.
 
BT – Que, como o senhor mesmo acabou de dizer, nada tem a ver com a existência de almas humanas imortais ou de um Além sobrenatural.
 
AB – Oh, não certamente. Não precisamos de outro mundo. Este mundo aqui já tem uma quantidade suficiente de ameaças, de recompensas, de prazeres, de deslumbramentos, de tragédias... O mundo é um oceano desmedido. Se mal raspamos a sua superfície, se mal tocamos a espuma de suas ondas, por que deixaríamos de mergulhar nele para tentar imaginar outro mundo, outro mar? Não, nosso mar é o mar do inconsciente humano compartilhado, temos que afundar nele de olhos escancarados para sua escuridão, temos que nos amarrar a bolas de ferro, às bolas e correntes da poesia convulsiva, do estranho, do bizarro, do inesperado. Temos que afundar no Real, quando mais não seja porque todas as pessoas que desprezamos e que nos desprezam nos dizem para fazer o contrário.
 
BT – Monsieur Breton, sempre tive uma curiosidade a respeito de Paris, é algo que se refere aos 365 apartamentos que estão interligados por passagens secretas... Essa descoberta se deve, na verdade, ao seu amigo Louis Aragon?
 
AB – Aragon era um visionário com senso de humor. Nossos caminhos divergiram, infelizmente, mas nossos corações, por assim dizer, continuam a flutuar próximos, neste oceano da impermanência. Aragon sugeriu essa idéia a Jules Romains, que a incluiu num romance. Verdade? Invenção? Eu não sei. Na época, era intensa a minha repulsa pela literatura, pela prosa de situações banais do cotidiano, pelas marquesas que saíam às cinco horas... Parecia-me uma arte inferior, comparável à do desenho de cartões de namorados ou decoração de bolos. Meus amigos viam uma perturbadora beleza nessa idéia de um fio de corredores secretos estendendo-se através de Paris – ou de qualquer outra cidade, à sua imaginação – por onde é possível caminhar sem ser visto, fugir sem ser apanhado, espionar sem ser pressentido, deslocar-se no espaço sem sofrer rastreamento...


 
BT – Eu pagaria por esse direito uma polpuda mensalidade, Monsieur Breton, mas a esta altura parece que tudo se circunscreve aos domínios do feuilleton, da pulp fiction...
 
AB – Ah, meu caro senhor, não menospreze o poder revelador, o poder encantatório das cerimônias profanas da ficção popular, da cultura das calçadas. É ali que vemos o desabrochar orgulhoso do Espírito coletivo, que, não se engane, não desce do Céu sobre nós para nos trazer lições de moral, mas emerge do asfalto, dos paralelepípedos, dos tijolos, da alvenaria, para nos trazer lições de sobrevida e transcendência. Pense em Rimbaud e seu fascínio pelo teatro de mamulengos, pense na brutalidade plebéia de Lautréamont, pense em Jarry e sua tradução da ciência para o idioma da sarjeta... Todos estes poetas acharam, cada um ao seu modo, um canal de comunicação permanente com essa correnteza obscura, maníaca, com o estado de furor, com o acaso objetivo, com as imagens convulsivas e fulgurantes, as truculências simbólicas.
 
Eu estava de olhos baixos, avaliando meio distraído os dragões laqueados do tampo da mesa. Ergo o rosto para encará-lo. Ele é agora o jovem altivo, leonino, imponente, que atraía olhares e provocava frêmitos à sua passagem. Em poucos minutos remoçou quarenta anos. É como se eu tivesse vindo até ali para trazer-lhe algo de que necessitava. Um olhar, uma reativação que talvez lhe proporcione mais cem anos de sobrevida. Quem pode saber?
 
Antes de nos despedirmos, ele me leva até a janela. Lá embaixo, vemos o mundo alvinegro, as calçadas, os pedestres, vemos aquele filme granulado e trêmulo do passado; e uma cidade de caligaris, uma cidade de zumbis, de pequenos burgueses em seus bigodões e seus capotes, que podem morrer carbonizados à simples visão de uma camisa amarela, uma bandeira vermelha, um par de sapatos azuis. 

Breton faz um gesto largo abarcando aquela avenida inteira, aquele século.
 
AB – Eles nos odeiam, caro senhor, mas não há propósito em odiá-los. Sabem que um mundo onde possamos viver é um mundo que os ameaça. Não é a nossa vontade que determina isto, é a natureza da coisas. Até hoje o mundo foi deles. Changer la vie! – foi o brado de Rimbaud. E o faremos. Temos quanto tempo pela frente? Uns diriam mil anos; outros diriam: a eternidade.
 
BT – Uma última provocação. Seu amigo Luís Buñuel reconheceu certa vez que, visto em retrospecto, o Surrealismo fracassou no essencial e triunfou no que era supérfluo e secundário. O que me diz?...
 
AB (pondo a mão no meu ombro, num gesto paternal) – Ah, Luís?... Luís é um garanhão coroado de papoulas.
 
Despeço-me e volto à calçada, ao mundo colorido de moças com cabelos roxos e piercings, de buttons fosforecentes, de bancas de revistas apregoando super-heróis e pilotos de Fórmula 1, de outdoors, de blusões de couro marrom, de óculos espelhados, de cabelinho verde espetado em gel, de boné revirado, de cavanhaque insolente. Em cada um deles, caminhando na direção do portal art-nouveau da estação do metrô, imagino rever aqueles olhos de um fogo feito de ferro, um ferro feito de céu.


(foto: Sergio Cohn)


(Nota necessária: esta série de "Entrevistas Transcendentais" é composta por textos imaginários. Eu não entrevistei essas pessoas.) 

Augusto dos Anjos:

Julio Cortázar:

Philip K. Dick:

Agatha Christie: