sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

2435) Por que escrevemos (24.12.2010)




Escrevemos por dinheiro. Somos mercenários? Não vejo por quê. Um bancário iria passar oito horas no caixa, diariamente, só por idealismo ou para dar sua contribuição ao sistema financeiro? Um político se daria a todo aquele nhém-nhém-nhém somente por amor à pátria? 

Todo mundo trabalha por dinheiro: operários, camponeses, professores, balconistas, camelôs, enfermeiros, advogados, taxistas. O X da questão não é “não querer dinheiro”, porque de dinheiro todo mundo precisa. O X é: não fazer nada somente pelo dinheiro, porque isto roça pela prostituição; fazer a mesma coisa em circunstâncias em que não haja dinheiro envolvido; enobrecer e valorizar esse dinheiro. 

Sempre que eu ganho um dinheiro com um texto de cordel, por exemplo, eu me sinto na obrigação de reinvestir um pouco dele (e do meu tempo) no cordel, cuja existência me permitiu ganhá-lo.

Escrevemos por vaidade. Para ver nosso nome no jornal, nossa foto na revista, nossa entrevista na TV. Escrevemos para ser reconhecidos em público; “Olha lá... Aquele é Fulano de Tal. Pense num cara inteligente!”. Quem não gosta disso? Eu gosto, e muito. Não importa o nome que se dê: vaidade, orgulho, amor próprio, auto-estima. Todo mundo precisa, lá num porãozinho bem escuro e íntimo, justificar a própria existência diante de si mesmo. 

Todo mundo precisa dizer: “eu sou o cara que faz tal coisa, e faz bem”. Sem isso ninguém levanta da cama de manhã. Principalmente no inverno, e sabendo que a conta bancária está no vermelho. Escrevemos para podermos dizer: “Ora dane-se, eu sou o Raio da Silibrina, tão pensando o quê?!”

Escrevemos por missão. A missão nos é imposta de fora para dentro ou de cima para baixo, não importa. Nossa missão quem nos dá são os outros, e disso não tem como fugir. A vida é uma combinação de mares e de ventos levando nosso barquinho. Claro que temos velas e temos remos, mas, mandar no vento ou nas ondas? Nem pensar. 

Às vezes pensamos que nossa missão é uma coisa, e a vida nos dá outra, e é nessa outra que descobrimos melhor quem somos. É bom realizar os sonhos, mas é bom também sabermos que podemos realizar coisas com as quais não tínhamos sonhado. Às vezes é até melhor.

Escrevemos por prazer. Nelson Rodrigues dizia que sem sorte ninguém consegue sequer atravessar uma rua. Pois digo eu que sem prazer ninguém sequer conjuga um verbo. O prazer não é constante e contínuo. Escrever é cansativo, desgastante e muitas vezes é como atravessar um deserto. Mas se é o que você gosta de fazer, há sempre a possibilidade de na próxima página ou no próximo parágrafo as coisas se combinarem daquela forma que produz o prazer que buscamos. 

O prazer de fazer bem feito e de acreditar (pelo menos) que nunca na História do mundo alguém pensou a frase brilhante que a gente acabou de digitar. O prazer é sempre possível; basta apenas a gente esquecer o dinheiro, a vaidade, a missão, e não parar de escrever.





2434) O código de Kryptos (23.12.2010)



Já comentei aqui na coluna (“O mistério de Kryptos”, 24.6.2005 - http://tinyurl.com/2924br6) o criptograma esculpido nos jardins do quartel-general da CIA, na Virginia. A Agência encomendou uma obra de arte que “produzisse sentimentos de bem-estar e esperança”, e o vencedor da concorrência foi David Sanborn. A obra contém quatro painéis com textos em código, e desde sua criação, há dez anos, o criptograma virou uma mania entre alguns milhares de malucos no país. Três painéis já foram decifrados e o último, um bloco de 97 caracteres, continua mais impávido do que a Esfinge do Egito.

Um artigo no New York Times (http://tinyurl.com/2bdmx58) comenta este fato, e entrevista Sanborn, o qual começou a dar pequenas dicas para facilitar o esforço de decifração. Ele indicou, por exemplo, que as letras de 64 a 69, que são NYPVTT, significam respectivamente BERLIN. Nada mau para arregaçar as mangas e começar um trabalho! Os três outros textos já decifrados são, respectivamente: 1) um texto dizendo “Entre as sombras sutis e a ausência de luz jazem as nuances da iqlusão” (com este erro de digitação, proposital, para confundir os decifradores; 2) uma brincadeira com a localização geográfica do prédio, dando latitude e longitude; e finalmente 3) um longo trecho do egiptólogo Howard Carter em que ele narra o momento em que abriu a tumba de Tutankhamon.

Os criptogramas têm uma aparência aleatória, mas sabemos com certeza que por trás deles há algo que faz sentido. O primeiro aspecto ecoa nossa perplexidade diante da aleatoriedade do mundo real (desde que estejamos dispostos a vê-lo como ele é). Tudo que existe na Natureza está aqui sem intenção da parte de alguém. O segundo aspecto nos garante a recompensa final de que “isto faz sentido”, e, se não a descoberta desse sentido, pelo menos a convicção de que ele existe.

Nada nos assusta tanto quanto o Acaso em seu estado bruto. Nada nos reconforta tanto quanto a certeza de haver uma resposta. Se alguém me mostra uma sucessão aleatória de letras (JDUEYEEOFUNNDKPAOIGFR) é como se me mostrasse uma foto de Júpiter ou do fundo do mar, ou seja, um lugar que está vedado para mim por toda a eternidade. Mas basta alguém me cochichar: “É uma mensagem cifrada...” e esse pequeno caos se transforma magicamente em algo a um passo de distância. Eu posso. Está ao meu alcance. É só ter as ideias certas e fazer o esforço necessário.

Os cientistas agnósticos se maravilham quando descobrem as regularidades espantosas da Natureza. Na Filosofia da Ciência existe um enorme departamento destinado a mostrar de que maneira a Ordem pode brotar do Caos. Organismos altamente sofisticados podem se desenvolver sem a intervenção de uma Inteligência Superior, apenas com um processo de feedback que incrementa as variações bem sucedidas. É como se jogássemos um bilhão de letras para o alto e ao cair elas formassem sonetos de Camões, romances de Alexandre Dumas, a resposta do Código de Kryptos.