terça-feira, 16 de março de 2010

1797) Para que serve o Cinema (12.12.2008)




Para que um garoto de dezenove anos pegue o trem para a cidade grande e não desça nem para comprar leite. 

Para que um figurante sertanejo carregue na cabeça uma pedra que não é de papelão.

Para flutuar no céu com uma corda presa ao pé.

Para assistir a sessão das 15:30, ir em casa jantar, e depois assistir a das 19 e a das 21.

Para gostar tanto de trailers que o começo do filme seja visto como um anticlímax.

Para ser barrado num “filme 18 anos” e ficar duas horas na praça esperando que os amigos saiam e digam como foi.

Para a gente ver o quanto a beleza das mulheres independe da época e das roupas.

Para a gente se flagrar torcendo pelo bandido.

Para que duas pessoas passem uma noite inteira tentando lembrar o nome de um filme cujas cenas não esqueceram.

Para que as guerras pareçam um confortável conflito entre heróis indestrutíveis e nítidos vilões.

Para colecionar fotos de diretores e de atrizes, cartazes, canhotos de ingressos, figurinhas, fichas técnicas. 

Para podermos espionar a vida íntima de gigantes por um buraco retangular de fechadura.

Para assobiar pro urubu da Condor.

Para a gente saber que existe uma outra realidade, um mundo mais perfeito, um universo criado por uma inteligência superior, mas que não é este.

Para saber de cor as fotos expostas na sala de espera e ficar contando à medida que surgem durante o filme.

Para que a palavra se faça carne diante dos nossos olhos.

Para alguém ver uma cena como se fosse a câmara, como se fosse o personagem, como se fosse o homem que a escreveu e dirigiu, como se fosse o menino que a viu pela primeira vez.

Para arremessar um osso para o espaço sideral.

Para viajar na máquina do tempo, na máquina do espaço, na máquina da matéria, na máquina do espírito.

Para esperarmos quarenta anos pela chance de ver um filme que todo mundo diz que não presta.

Para sentarmos lá na frente e vermos tudo antes de todos.

Para aprendermos como erguer uma taça, como desmontar e montar um fuzil, como cavar um túnel, como estaquear um vampiro, como roubar um milhão de dólares, como enlaçar uma cintura.

Para pregar um lençol esticado na parede.

Para andar de bicicleta sob a chuva, em volta de uma moça bonita.

Para entregar uma flor ao porteiro e entrar sem pagar ingresso.

Para continuar sentado após o fim do filme e ver de novo o Canal 100 na próxima sessão.

Para ser o único a perceber um erro de continuidade.

Para ver dinossauros dançando a sagração da primavera.

Para que uma Paillard-Bolex e um Nagra imortalizem uma velhinha que não sabe ler.

Para que a nossa mente seja uma cebola que cresce 24 camadas por segundo.

Para aprender a ver um filme búlgaro com legendas em holandês.

Para ver um menino sertanejo imitando o andar do pai.

Para encontrar o homem de areia, a mulher de palha, o coração de vidro, a cruz de ferro, a lua de papel, o mar de rosas, o gosto de mel.

Para que a tela seja janela – seja pintura – seja bola de cristal – e seja espelho.










1796) FC ou Fantasia (11.12.2008)



(A Sombra do Torturador, de Gene Wolfe)

A diferença entre ficção científica e fantasia, dois gêneros tão próximos, não é tão evidente quanto imaginamos à primeira vista. Nosso primeiro impulso é defini-los a partir do “mobiliário”, por assim dizer. A Ficção Científica é mobiliada com espaçonaves, robôs, alienígenas, máquinas futuristas. A Fantasia é mobiliada com dragões, encantamentos, feiticeiros, castelos, elfos, unicórnios e assim por diante. Dito assim, parece muito simples, mas um dos principais impulsos que movem a imaginação dos escritores é justamente “desobedecer” a esses cardápios, misturar uma coisa com a outra. Um dragão pode ser uma criatura extraterrestre, como em algumas obras de Anne MacCaffrey; uma torre “medieval” pode se revelar, como num livro de Gene Wolfe, um foguete espacial, estacionado verticalmente há tantos séculos que ninguém se lembra mais de sua função antiga.

Podemos também esquecer o mobiliário, os elementos visíveis, e pensarmos na mecânica interna de cada gênero. Existe uma ficção baseada na lógica, no rigor, nas relações de causa e efeito, no encadeamento racional dos fatos, não importa o quanto eles sejam fantásticos; e existe ficção movida por associações de idéias, justaposição de imagens, criação de situações que são logicamente improváveis ou são construídas sem obedecer a uma lógica interna, mesmo que sua aparência exterior recorra à ciência e à técnica.

No primeiro destes casos, temos narrativas que de imediato identificamos como Fantasia, mas é uma fantasia rigorosa, lógica, tratada como se fosse Ciência. Não há arbitrariedade, mas regras que, mesmo fantásticas, são seguidas à risca pelo autor e pelos personagens. Isto ocorre muitas vezes com histórias que lançam mão da Magia, mas uma Magia que tem regras, onde as coisas funcionam sempre da mesma maneira, e onde tudo está vinculado a causas e efeitos. Não importa se o ambiente consiste em castelos, se as armas são espadas, se os inimigos são feiticeiros ou dragões: esta é uma literatura inspirada pela Ciência e pelo rigor de idéias que a Ciência impõe. Isto acontece com certas obras de Ursula LeGuin, como a “Trilogia de Terramar”.

Por outro lado, há histórias de FC que usam espaçonaves, viagens interplanetárias, raios atômicos, etc., mas que se baseiam em fatos extremamente improváveis do ponto de vista científico (viagens no tempo, p. ex., ou então viagens instantâneas através do espaço), e cuja lógica narrativa nada tem de científica. Entram aqui os filmes do tipo Guerra nas Estrelas, que são crivados de inverossimilhanças científicas, e mesmo obras-primas literárias como As Crônicas Marcianas de Ray Bradbury, onde vemos um planeta Marte coberto de florestas, com atmosfera respirável e canais cheios de água onde flutuam barcos. O mobiliário pode ser importante para definir um gênero, mas sua mecânica profunda e a visão do mundo que ela implica podem fazer com que uma obra vá na direção da Ciência ou na direção da Fantasia.

1795) A nota de mil dólares (10.12.2008)




Terremotos financeiros têm abalado nos últimos meses as Bolsas de Valores do mundo inteiro, e derrubado bancos norte-americanos como se castelos de cartas fôssem. É, segundo dizem, a maior crise internacional do capitalismo desde a quebra da Bolsa de Wall Street em 1929. Isto me lembra. um contozinho obscuro de 1935, “The Thousand Dollar Bill”, de Manuel Komroff, um conto típico desse tempo da Grande Depressão. Já vi o conto em mais de uma antologia, e para mim ele exprime bem o espírito do capitalismo, principalmente do capitalismo norte-americano, no que ele tem de bom e de ruim.

É a história de Henry Armstrong, um rapaz de Fairview, típica cidadezinha do interior. Um belo dia, andando pela rua, ele acha no chão uma nota de mil dólares. Mal pode acreditar no que vê, mas como é um rapaz consciencioso dirige-se ao jornal local e pede para botar um anúncio alertando o dono da nota (parece Machado de Assis, com seus personagens que não param de achar dinheiro na rua). Henry trabalha numa seguradora local, e ao conversar com o redator do jornal diz logo que pretende casar com sua noiva Dolly e cair fora de Fairview, que é uma cidade estagnada e sem futuro.

Quando a matéria sai no jornal, a cidade entra em polvorosa. De uma hora para outra, Henry, que era um rapaz tímido, enche-se de confiança pela posse da nota, e praticamente “toca fogo” na cidade, despertando uma polêmica sobre trabalho, emprego, futuro, oportunidades, etc. O Conselho Municipal envia um protesto contra Henry. O patrão dele manda chamá-lo para repreendê-lo, mas Henry se demite no ato. Enquanto isto, o editor do jornal simpatiza com ele e contrata um seguro para o jornal (coisa que a companhia tinha tentado negociar há anos). A população, vendo o debate, se divide, uns apoiando Henry, outros discordando dele.

Em uma semana, tudo muda em Fairview. O patrão de Henry não aceita seu pedido de demissão e dá-lhe uma promoção com ordenado maior e comissões. O Conselho Municipal reconhece a importância de suas críticas e o nomeia como membro. E uma tarde, quando ele e a noiva estão conversando, examinam melhor a nota de mil dólares e percebem que ela é falsa.

A nota era falsa, mas o acesso de auto-estima que ela despertou era verdadeiro. Graças à auto-confiança de quem julga ter mil dólares no bolso, Henry não apenas deu uma sacudida em sua própria vida, mas na de toda a cidade, que despertou de sua letargia. Assim é o capitalismo financeiro. É dinheiro de mentira, e a maioria dos que o cultivam sabe disso. O sujeito clica num link e vê um saldo que é mentiroso, mas, enquanto isso gerar mais atividade econômica, é tão bom acreditar! O problema é quando a quantidade de dinheiro falso gerada por este processo supera em muito a quantidade de riquezas reais que lhe dão lastro. As notas de mil dólares da prosperidade neo-liberal estão pipocando e sumindo aos milhões a cada segundo que passa, e desta vez deixarão mais prejuízo do que lucro.

1794) Paraíso Decorado (9.12.2008)



(John Basinger)

O único poema épico clássico que já li do começo ao fim foi Os Lusíadas. Estou em dívida com Homero, Dante, Virgílio e muitos outros, entre eles o grande John Milton, autor do Paraíso Perdido (“Paradise Lost”), um clássico da literatura inglesa que para mim irá melancolicamente justificar seu título, pois nunca o lerei. Minhas prioridades são outras, não sei se há traduções confiáveis, e não me atrevo a enfrentá-lo no original. O poema se divide em doze partes, ou doze “Livros”. Não consegui saber sua extensão total, mas a Wikipedia afirma que o Livro mais longo é o IX, com 1.189 linhas, e o mais curto é o VII, com 640.

Pois há um herói chamado John Basinger que está anunciando uma performance do texto completo do poema de Milton. Não uma simples leitura, mas um recital de cor. Ele memorizou o texto integral do poema, e pretende recitá-lo numa única sessão neste mês de dezembro, que marca o 400o. aniversário do nascimento de Milton. (Mais informações, inclusive clips dos ensaios de Basinger, podem ser obtidas em: www.paradiselostperformances.com).

O recital de um poema longo é sempre uma façanha. Aqui no Rio de Janeiro, há cerca de vinte anos, o poeta Tite de Lemos costumava fazer recitais da “Tabacaria” de Fernando Pessoa. Segundo os que os assistiram, eram uma experiência notável, pela intensidade da interpretação. Mas a “Tabacaria” é – comparado ao “Paradise Lost” – um poema relativamente curto. Como ter na mente milhares de versos, e, pior ainda, como ser capaz de dar a cada um deles o peso, a força, a emoção, as nuances que um recital de um texto clássico exige?

Milton compôs seu poema depois dos cinquenta anos, quando já estava completamente cego. Concebia os versos mentalmente e depois os ditava a um escriba, método que outros poetas cegos (como Jorge Luís Borges e Glauco Mattoso) também utilizaram, por ser o mais prático. Mas mesmo Milton certamente não sabia o poema de cor. Memorizá-lo é uma façanha e uma prova de amor à literatura, ou pelo menos àquela obra literária específica. Ao que se diz (em: http://www.hartfordadvocate.com/article.cfm?aid=10298) Basinger vem decorando o poema há quinze anos, e nos últimos tempos tem repassado um “Livro” de cada vez, todos os domingos, diante de uma platéia, preparando-se para o recital da obra inteira, que ele espera começar às 9 da manhã e terminar às três da madrugada seguinte.

Aos 74 anos, Basinger insiste em que existe uma grande diferença entre ler um poema e recitá-lo de memória, e eu concordo. Pegar um livro e ler significa que você tem admiração por aquele texto. Mas sabê-lo de cor, dedicar a ele semanas, meses e anos de vida, até martelá-lo para dentro da memória, linha por linha, estrofe por estrofe, é uma prova de amor e de devoção que se encontra muitas vezes no teatro, mas nem sempre na literatura. Eu aguentaria assistir as 18 horas de um recital assim? Não sei. Será que eu não amo tanto assim a literatura?

1793) “Foi nada!” “Foi não.” (7.12.2008)





(Machado, por Toni d'Agostinho)

Uma piada meio boba que ouvi na adolescência falava de dois amigos que se reencontram depois de vinte anos de ausência. Trocam abraços, felizes da vida. Um deles diz: “Mas você está com ótimo aspecto! Saudável, bem disposto... O que aconteceu? Dieta, exercícios, o quê?!” O outro responde: “Nada disso. Apenas deixei de discutir por qualquer bobagem”. O primeiro diz, incrédulo: “Foi nada!” E ele: “Foi não”.

Esta é uma das minhas piadas formadoras, pequeno fragmento oral a que sempre recorri para consolidar um aspecto do meu caráter. Toda vez que alguém diz: “Ora, duvido que seja assim”, eu respondo: “Tudo bem, então não foi”. 

Ora, quem diria, séculos depois reencontro minha piada, intacta e diferentíssima, nos parágrafos iniciais de “O Espelho” de Machado de Assis, que aqui reproduzo, para deleite dos “connoisseurs” e edificação dos pósteros:

“Havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um ou outro resmungo de aprovação. Esse homem tinha a mesma idade dos companheiros, entre quarenta e cinquenta anos, era provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico. Não discutia nunca; e defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo que a discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial; e acrescentava que os serafins e os querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição espiritual e eterna. Como desse esta mesma resposta naquela noite, contestou-lha um dos presentes, e desafiou-o a demonstrar o que dizia, se era capaz. Jacobina (assim se chamava ele) refletiu um instante e respondeu: -- Pensando bem, talvez o senhor tenha razão.”

Grande Machado! Eis aqui um parágrafo com o peso de várias Bíblias. Há toda uma Ética, muito de uma Estética e pinceladas de uma Cosmogonia neste pequenino trecho. Nunca li uma biografia do autor de Dom Casmurro, mas a imagem que tenho dele bate em muitos aspectos com a do seu meditativo Jacobina. 

Sabemos que muita gente meteu-se a polemizar com Machado, sem sucesso algum. O principal talvez tenha sido o grande Sílvio Romero, que através da imprensa alfinetava, provocava, cutucava, soltava cascavéis e calangos no caminho do nobre romancista. Este desviava-se dos répteis e seguia em frente, sem dar-lhe o braço a torcer.

A recusa de um intelectual de peso à discussão com um polemista profissional equivale, no mundo das idéias, ao que no mundo dos amores figura como a resistência de uma mulher belíssima à corte de um sedutor. O sedutor, habituado a ver vítimas tombando aos seus encantos, manda-lhe dezenas de iscas, e a beldade não morde nenhuma delas. 

Sílvio Romero puxava Machado pela mão: “Vem, vamos ali naquele recanto escuro”, e Machado dizia: “Não, fiquemos aqui, à vista de todos”. A analogia é fraca, porque a polêmica só tem brilho justamente sob luzes e atenções; mas o leitor há de captar o sentido.