quinta-feira, 4 de agosto de 2016

4143) Importe-se com o personagem (4.8.2016)



(ilustração: Neurocomic)

Os norte-americanos são imprescindíveis ao mundo pela sua capacidade de encontrar formas simples para dizer verdades elementares. Os teóricos da complexidade podem dizer o que quiserem sobre os fenômenos psicológicos que ocorrem na mente durante a leitura de um texto de ficção, ou a visão de um filme, mas eles matam a charada numa formulazinha deste tamanho.

A mecânica básica disso, para o pessoal dos EUA, é: “Faça com que o leitor (o espectador) se preocupe com o personagem, se importe com seu destino, se envolva com o que lhe acontece”. É mais ou menos esse o sentido da expressão “to care about the character”. É essa “com + paixão” que a arte quer, esse compartilhamento de paixão com um mero agregado de letras.

O que é uma grande injustiça com o conceito de personagens, o conceito de história de ficção, porque eles não são meros agregados de letras. Os textos, como dizia Damon Knight, são conjuntos de sinais onde deciframos as instruções. As palavras impressas no livro são instruções. A história é o que acontece em nosssa mente durante a leitura delas.

Quem quiser estudar a arte da narrativa (livro, cinema, teatro, HQ, etc.) tem que prestar atenção ao modo como os norte-americanos a praticam. Não é o único modelo, mas é um modelo importante, e é o modelo prevalente em nossa cultura, queiramos ou não.

O modelo de narrativa que os ianques cultivam teve força bastante para botar de pé Hollywood inteira, indústria de quadrinhos e games, vários mercados editoriais, o escambau. A arte popular norte-americana foi e é capaz de criar inumeráveis modelos, reflexos, cenários hipotéticos das relações humanas. Vemos uma porção de manchas pretas sobre superfície branca e aquilo nos evoca memórias que até então talvez nem existissem.

O que faz a gente se importar com um personagem? Talvez esse tipo de empatia precise ser cultivado desde muito cedo, ou seja, o livro ou o filme devem se tornar desde cedo uma parte importante do crescimento imaginativo, fabulatório, do jovem futuro consumidor. Algumas pessoas têm mais empatia do que outras, se envolvem mais, é como se acreditassem de fato que aquelas pessoas existem. São os espectadores que choram nos filmes, etc. A reprodução das imagens foi capaz de, com sua concretude, fazê-los suspender temporariamente não só a descrença, mas a distância.

Podemos dizer que para bem apreciar por dentro, intimamente, o Fantástico, é preciso ter uma suspensão voluntária da descrença; e para apreciar nessa mesma medida o Realismo é necessária uma suspensão voluntária da distância.

É preciso acreditar no personagem. Quanto mais acreditamos, mais essa hipotética “glândula da empatia” nos deixa aparelhados para fabular o outro. Para dialogarmos com o outro – para convivermos na vida real. Mais preparados para imaginar situações vividas pelo outro, para nos colocarmos no lugar do outro. Nem todo mundo é capaz disso. Vemos por aí, o tempo inteiro, pessoas que só pensam no seu próprio umbigo, que não arredam pé do seu centro nem por um segundo, talvez por acharem que fazendo assim desaparecerão como bolha de sabão.

Preocupar-se com um personagem é preocupar-se, em última análise, com alguém que não tem como nos devolver esse favor; é de certa forma o mais altruísta dos sofrimentos.

Em seu livro Sherlock Holmes Was Wrong (2008) o autor e psicanalista Pierre Bayard analisa o movimento generalizado de tristeza e revolta dos leitores das aventuras do detetive quando Conan Doyle contou sua morte em “O Problema Final” (1893). Diz ele:

O que acontece neste caso o faz parecer como se os leitores tivessem estabelecido residência no mundo da ficção e não pudessem ser arrancados de lá senão com um sofrimento insuportável. (...) Existe entre o mundo da ficção e o mundo “real” um mundo intermediário que é único para cada pessoa. (...) O desaparecimento [de Holmes] não apenas privou esses leitores do prazer da leitura. Ele constituiu uma intrusão violenta no seu mundo intermediário, num espaço íntimo onde eles habitam e que faz parte deles. Assim, o que esses leitores experimentam é um sofrimento psíquico autêntico, tornado ainda maior por ser compartilhado com outros leitores.

Um personagem de filme está ali, como no alto de uma tela de drive-in, inexistente mas gigantesco, imaterial mas resplandescente, sem cordas vocais mas tonitruante. É a tela, é a bola de cristal retangular e luminosa onde se lê o passado, o presente e o futuro das classes médias do mundo inteiro. São os fantasmas de Hollywood, do Monte Olimpo eletrônico-digital, o panteão de heróis, semideuses e titãs, só que agora produzidos em escala industrial por equipes de roteiristas assalariados.

Nas oficinas literárias, nos cursos de escrita criativa, nas guidelines fornecidas pelas revistas de FC aos candidatos a autor, nos manuais, nos guias, nos passo-a-passos de auto-ajuda profissional, esse mantra sempre retorna: “Faça o leitor se preocupar com o que acontece com seus personagens”. E funciona. Mesmo eu, que imagino ler mais por prazeres estilísticos ou para comparações teóricas, de vez em quando sou agarrado por um conto, uma série de TV, um quadrinho, um curta no YouTube, um romance antiquado – simplesmente porque acreditei nos personagens e agora vou ter que ver até o fim, porque estou angustiado ou curioso, e não quero ir embora sem saber se A conseguiu tirar o marido da cadeia, se B deu um jeito de escapar daquele acidente, se C estava mesmo dizendo a verdade a D, se E vai descobrir o criminoso...

Em alguns casos existe um envolvimento simbólico. Digamos que eu sou nordestino, então o personagem nordestino X ou Y “me representaria”. Mas nem é isso. É antes o poder da narração em si, do momento vivido pelo leitor. Esse momento é mais poderoso até do que conceitos de classe, de simbolismo social, etc., a não ser naquelas pessoas que fazem disso uma prioridade absoluta.

Numa pessoa comum, é aquilo que Hitchcock sabia usar como ninguém, e que nos fazia torcer pelo vilão no momento de maior suspense. É aquilo a que Raymond Chandler se referia ao dizer que a visão da imaginação emotiva é curta mas é intensa. Essa intensidade faz com que o parágrafo que estamos lendo seja mais real do que o resto do livro. Se ele nos arrebata, não adianta a Voz da Razão ficar lá atrás dizendo: “Isso é mentira, viu? Não aconteceu não...”

A narrativa é sempre uma experiência vicária, é algo que estamos conhecendo apenas com a mente, que depende de nossa imaginação visual, de nossa capacidade de engendrar ambientes e situações.

Imaginação, memória e emoção são vasos comunicantes. Se somos capazes de sentir uma breve emoção humana por um personagem, isso quer dizer que não somos totalmente insensíveis. Já ouvi pessoas dizendo que se emocionavam com livros porque no livro ele tinha certeza que o personagem estava dizendo a verdade, e isso na vida real é geralmente impossível, em se tratando de sentimentos íntimos, inacessíveis, pessoais. Fantasiar emoções por meio dos personagens, numa história que nos explica com clareza os fatos, nos ajuda a projetar sentido na vida real, que nada nos explica. Nem explicará.