segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

4796) Para que obedecer às regras? (21.2.2022)




O que seria o mundo, sem regras? Um paraíso. O que seria o mundo, sem regras? Um inferno.
 
Estou dizendo “uma regra” no sentido de: “Uma lei, uma ordem, uma determinação estabelecida por uma instância superior, com o objetivo de equilibrar, harmonizar ou padronizar diferentes comportamentos coletivos”.  
 
Regras foram feitas para serem obedecidas, mas sem muito fanatismo. E podem ser desobedecidas, mas nos limites do bom senso.
 
Penso nisso quando lembro uma história que alguém me contou, de quando estava numa cidade da Suíça. Era madrugada. Rua deserta, silêncio total, e um pedestre veio pela calçada, a única pessoa à vista, parou na esquina e ficou esperando durante quase um minuto até o sinal de trânsito ficar verde para o pedestre. Então, atravessou.
 
Isso é certo? É errado?
 
As regras de trânsito me parecem um bom exemplo de regras de comportamento coletivo. Precisamos delas para controlar o caos que é o deslocamento de veículos e de multidões, ao mesmo tempo, em espaços restritos. Quando todo mundo quer passar com o carro ao mesmo tempo e todo pedestre quer atravessar ao mesmo tempo, há mortes, acidentes, tudo que não presta.
 
Alguma regra de trânsito teve que ser inventada, para que as pessoas não fossem mortas por colisões de bigas, charretes, carruagens, tílburis, cabriolés, automóveis.
 
Não é vergonhoso obedecer a uma regra coletiva; isso não faz de nós robôs nem zumbis. Não é vergonhoso desobedecê-la, quando achamos que ela é desnecessária ou insignificante em certo momento.


Por “insignificante” entenda-se a situação do pedestre suíço, citado acima. O semáforo está ali para proteger tanto os pedestres quanto os carros, alternando suas passagens. Já que não vinha carro nenhum, era insignificante o risco, e o cara podia atravessar sem perigo para ninguém.
 
Por que não o fez? Porque é um europeu burro, bitolado, massificado por um Estado totalitário? Não. Talvez fosse apenas um cara com alma de boêmio e olhos de poeta. Estava sem pressa. Parou porque quis. Esperou porque achou bom. E ficou conversando mentalmente com as luzinhas do semáforo, coitadas, que estavam piscando suas cores inúteis na madrugada gelada de Zurique.
 
Eu vejo mais propósito nessa atitude dele do que na minha, quando atravesso correndo a Avenida Presidente Vargas às três da tarde, cruzando seis pistas de carros que passam por mim a toda velocidade, espremendo buzinas e gritando palavrões – simplesmente porque tenho preguiça de ir até a esquina, aguardar um minuto e atravessar na respectiva abbeyroad.
 
Acontece algo parecido – por um exemplo, entre muitos – com as regras do futebol.
 
Existem para definir limites, proibições, obrigatoriedades, e com isso impor uma grade de regularidades e equivalências no interior de uma disputa. “Regularidades” para que os dois adversário saibam que toda vez que acontecer “X”, vai ser marcado “Y”; “equivalências” no sentido de que as regras valem para todo mundo, sem privilégios.
 
O que acontece é que jogadores de futebol passam o jogo inteiro forçando os limites da regra. São como pedestres teimosos, que atravessam a rua dando drible nos carros, ou como motoristas impacientes que furam o sinal vermelho porque têm medo de assalto, ou ciclistas que invadem o espaço dos pedestres para se defender dos carros, ou pais que estacionam em fila dupla diante de uma escola “só por um instantinho, não dá pra descer...”  Enfim, todo mundo que viola a regra tem excelentes motivações pessoais para isso.


Toda esta lenga-lenga é para abordar um assunto bem diferente: as regras literárias. Existem regras na literatura?
 
Em princípio, não. Existem regras na gramática, na ortografia. As regras servem para organizar o uso das conjunções e preposições, da conjugação dos verbos, da grafia das palavras, etc. e tal. Mas isto são regras da linguagem, não da literatura.
 
Na literatura o que temos não são regras – as quais, por definição, são fixadas por grupos de especialistas designados pela sociedade. O que temos na literatura são procedimentos consagrados, habituais, costumeiros. Modos de organizar os textos para que o leitor os leia e os entenda com mais facilidade. Não têm a ver com a arte literária. Servem praticamente para qualquer texto.
 
Em muitos manuscritos antigos não há separação de palavras, por exemplo. Era o modo de escrever daqueles tempos.
 
Aspalavrasapareciamtodasemendadasumasnasoutrasetodomundoliasemdificuldade. Até que alguém teve a brilhante idéia do espaço em branco. (Acho que no tempo do papiro e do pergaminho eles procuravam economizar ao máximo a superfície onde escreviam.)
 
Os sinais de pontuação, a divisão do texto em parágrafos e em capítulos, o uso de letras maiúsculas para indicar palavras especiais (começo de frase, nome próprio, etc.), tudo isso foi se construindo ao longo de séculos, mas não são regras, são costumes. Usa quem quer.
 
Tudo isto, no entanto, não pertence propriamente ao domínio da arte literária, e sim da técnica de publicação de textos. São universos que se interpenetram, se interseccionam, mas cada um tem seu próprio regulamento.


A teoria da literatura é cheia de “regras”, mas essas pseudo-regras são arbitrárias, são consensos estéticos a que alguns grupos de pessoas chegam, combinam entre si, e passam a ensinar às outras. As “regras” narrativas que valiam para os folhetins franceses na época de Alexandre Dumas não são necessariamente as mesmas que valiam para a literatura policial norte-americana no tempo de Dashiell Hammett, nem as que valiam para o romance histórico alemão da época de Thomas Mann, ou a que valia para o conto brasileiro em seu florescimento na década de 1970.
 
São regras? Não: são formas de dizer, de falar, de contar, de exprimir, de sugerir através de palavras. Formas diferentes de construir personagens, de reproduzir o que se passa na mente deles, de narrar acontecimentos, de dialogar com o leitor.
 
Todo mundo conhece aquelas famosas listas: “Doze Conselhos da Escrita por Philip Roth”, ou “Seis Maneiras Infalíveis de Contar uma História, por Barbara Cartland”, ou “Os Dez Mandamentos do Escritor, por Balzac” ou por quem quer que seja. São regras universais? Não, são dicas, são conselhos onde um autor diz: “Olha, isto aqui funciona comigo, talvez funcione com você”.
 
Por outro lado, quando essas “regras” viram modismo, maneirismo, rotina, logo aparece uma nova geração de autores e autoras bradando que “daqui pra frente vai ser diferente” e instituem uma vanguarda, uma renovação, seja lá o que for. O que é ótimo; isto é a respiração normal da literatura. Novas vozes, novos olhares, novas maneiras de pensar e de dizer.
 
Não há regras? Ao contrário: há milhões de regras, propostas por milhões de autores. Você escolhe as regras que quer seguir, deixa as outras de lado. E se quiser, você propõe novas regras que por acaso estejam faltando.