domingo, 9 de outubro de 2022

4871) Jacques, o Fatalista: um romance moderno (9.10.2022)


 
Tenho observado ao longo dos últimos cinquenta anos uma guinada muito forte no mundo literário em benefício daquilo que chamamos, de modo desajeitado, de “romances de enredo”. Que são contrapostos, meio absurdamente, aos chamados “romances de estilo”, como se fossem duas coisas opostas e como se um escritor qualquer, ao optar por uma, perdesse necessariamente a outra. Meu Deus!
 
De qualquer maneira, multiplicam-se as Oficinas Literárias, os Manuais de Roteiro, os vídeos “Eu Vou Te Ensinar”, e todos repisam: é preciso contar uma história com começo, meio e fim. É preciso preparar narrativas como se fossem um mecanismo, com todas as peças bem encaixadas, nada gratuito, cada frase cumprindo uma função necessária, como um parafuso em um transatlântico.
 
Todos citam (eu cito muito) “a espingarda de Tchecov”: se você mostra uma espingarda no Ato 1, ela tem que ser disparada por alguém no Ato 3.  Tudo existe com uma finalidade.
 
Do famoso prefácio de Jorge Luís Borges para La Invención de Morel (1940, Adolfo Bioy Casares) até os manuais de roteiro de Syd Field e Robert McKee, adotados em qualquer oficina do ramo, todos batem furiosamente esse martelo: é preciso contar uma história com arco dramático, com preparação, desenvolvimento e clímax, ao longo da qual o(s) protagonista(s) tenha(m) um objetivo, enfrentem obstáculos, vençam adversários... “História é conflito”, dizem todos.
 
Estão errados? Não. Mas estão descrevendo a orelha do elefante, e ele é maior e mais variado do que isso.
 
Escrevi algum tempo atrás sobre um tipo de romance que é meio a antítese disto, certos romances do século 18 que não se assemelhavam a uma maratona e sim a um passeio. Maratona é um percurso focado, de trajetória única, com uma resposta na chegada. Esse é o romance-de-enredo contemporâneo, esse é o roteiro de cinema industrial.
 
O romance do século 18 era um passeio. Ele se assemelha àqueles feriados em que o sujeito não tem nada pra fazer e sai vagando pela cidade, tipo flâneur, entrando numa rua, saindo em outra, parando numa vitrina, pegando um bonde, sentando numa praça, conversando com um pipoqueiro ou um flanelinha, entrando numa galeria, saindo do lado oposto...
 
Um caminho sem objetivo final, uma travessia que se justifica a si mesma, onde não se busca “chegar a outro lugar”, um passeio cuja frase definidora é: “Eu já estou onde queria estar”.
 
Citei alguns exemplos no meu artigo:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/06/4587-uma-literatura-ao-res-do-chao.html
 
Terminei agora a leitura de Jacques Le Fataliste et son Maître (1771-1786) de Denis Diderot, o grande enciclopedista. É um desses “romances ao rés-do-chão”. Não se propõe a criar um grande edifício dramatúrgico, e sim uma série de paradas ao longo de um caminho que não tem fim. É uma road novel, tal como nos referimos a road movies, histórias onde as coisas se sucedem, sem necessariamente terem algo a ver com o que aconteceu no capítulo anterior e o que acontecerá no próximo.
 
Diderot escreve numa época do romance pré-psicologismo, sem aquelas extensas descrições do mundo social e das idéias íntimas do personagem. Isso viria depois, visando justamente aprofundar o modelo que Diderot usava.
 
Thomas Mann, em Morte em Veneza (1912) gasta um capítulo inteiro (o segundo) explicando quem é o personagem, o que pensa, o que sente, por que é assim, de onde veio, para onde pretende ir, o que acha do mundo, o que o mundo acha dele... Balzac é capaz de levar três páginas descrevendo a mobília de um salão.
 
Diderot escrevia numa época mais leve. O primeiro parágrafo de Jacques já dá o tom de desimportância quanto a esse retratismo.
 
Como foi que eles se encontraram? Por acaso, como todo mundo. Como se chamavam? Ora, o que lhe interessa isso? De onde eles vinham? Do lugar mais próximo. Iam para onde? Mas será que alguém sabe para onde vai? Diziam o quê? O amo não dizia nada: e Jacques dizia que seu capitão dizia que tudo que nos acontece de bom e de ruim está escrito nas alturas. (trad. BT)


Este parágrafo é uma espécie de “carta de intenções”. Diderot escreve numa época de fermentação do gênero. O “romance” ainda não tinha a independência formal que ganharia nos anos 1800. Isso lhe dá a liberdade de tratar de maneira desabusada as expectativas do leitor. O romance moderno estava se auto-inventando. Era como o futebol antes das regras: em cada bairro se jogava de um jeito diferente.
 
E uma das regras propostas por ele é esse diálogo com o Leitor que ele já anuncia nas primeiras linhas. Veja-se que nessa abertura do livro as perguntas sucessivas formam um diálogo. O Leitor pergunta (“Como se chamavam?”) e o Autor responde, irreverente (“Ora, o que lhe interessa isso?”).
 
Esse diálogo de perguntas-respondidas-com-perguntas vai se manter ao longo do livro. O Autor assume o papel de contador de histórias e se dá o luxo de interromper uma narrativa na parte mais interessante, dizendo que talvez o leitor não esteja muito interessado naquilo... pula para outra parte... depois volta... e em momento algum afrouxa as rédeas da narrativa.
 
O aspecto visual que mais chama a atenção nesse livro é que ele é escrito como uma peça de teatro, não como um romance, com os diálogos sendo rubricados com os nomes dos personagens:



Isso reforça o caráter híbrido do livro, uma mistura de gêneros. Deixa-o próximo da peça de teatro – mas ao mesmo tempo há longos textos narrativos ou explicativos, sem diálogo nenhum. E deixa-o perto de algo que no século de Diderot era tão comum quanto o teatro, o chamado “Diálogo Filosófico”, em que um autor imagina dois ou três personagens trocando idéias sobre um princípio filosófico qualquer. Um formato que vem desde a Grécia antiga, e resgatado no Renascimento, vindo desde Galileu Galilei até chegar aos modernos como Edgar Allan Poe.
 
Os dois personagens, Jacques (o criado) e seu Amo, estão viajando a cavalo por uma estrada, encontram pessoas, hospedam-se em estalagens, se relacionam com outros hóspedes e com empregados, e volta e meia o Amo pede a Jacques que conte a história de seus namoros. Eles viajam sem pressa. Jacques foi ferido na guerra e conta extensamente sua dolorida recuperação. O Amo tem um pretexto de visitar um parente distante, mas é só pretexto mesmo.
 
As histórias são interrompidas o tempo todo por algo que acontece em volta deles. Em alguns casos, são finalizadas mais adiante; em outros, não. Assim, dentro do livro há uma dúzia de histórias curtas que acabam tendo certo grau de independência. Uma delas, aliás, serviu de base para o filme de Robert Bresson As Damas do Bois de Boulogne (1945).


Isso dá a Jacques algo de Dom Quixote (um amo e seu criado percorrendo estradas, conhecendo gente, tendo aventuras, contando histórias) e algo de Grande Sertão: Veredas (porque esse Autor, que dialoga conosco o tempo todo, e prevê nossas perguntas, antecipa nossas críticas, desarma nossas impaciências, parece Riobaldo, que fala sozinho por si e pelo seu interlocutor mudo, que é a um só tempo o Dr. Rosa e nós mesmos).
 
É uma experiência curiosa de histórias-dentro-de-histórias – porque não é apenas Jacques que narra: o Amo conta seus folhetins, a Hoteleira conta os seus, outros personagens assumem também o papel de narradores. Oralidade constante que emana do próprio Autor. Diderot bem que poderia estar contando isso tudo de algum trono olímpico de “Narrador Onisciente Invisível”, mas não, ele puxa conversa, ela puxa o cordão (o cordel) onde estão amarradas as historietas, conversa com a gente o tempo todo.
 
JACQUES
Mas meu senhor, me jogar água! Jogar água benta em Jacques! Era muito melhor que mil legiões de demônios se metessem no meu corpo do que beber uma gota dessa coisa, benta ou não-benta. O senhor não percebeu ainda que eu sou hidrófobo?...
 
Ah! hidrófobo? Jacques disse hidrófobo? Não, leitor, não: confesso que a palavra não pertence a ele. Mas diante de uma crítica tão severa como esta, eu o desafio a ler uma cena de comédia, de tragédia, um único diálogo, por mais bem escrito que seja, sem surpreender ali a palavra do autor na boca do personagem. Jacques disse: “O senhor não percebeu ainda que basta a visão da água para me deixar furioso?” E então? dizendo de outra maneira, fui menos verdadeiro e fui mais breve. (p. 350-351)
 
Esse coloquialismo Autor/Leitor é geralmente colocado na prateleira pomposa de metalinguagem, mas para mim é um simples recuo na direção das origens orais da narrativa. Um recuo de um passo em termos cronológicos que proporciona um avanço de dez em termos estilísticos.
 
A certa altura, quando a Hoteleira, que começara a contar uma de suas historietas, pede licença por um instante, Diderot faz um “Escolha Sua Aventura” com o leitor:
 
E você, leitor, fale sem dissimulação, pois como vê estamos num ótimo clima de franqueza: prefere que deixemos de lado essa Hoteleira tão tagarela, tão elegante e prolixa, e voltemos aos namoros de Jacques? Por mim dá no mesmo. Quando a Hoteleira voltar, Jacques o tagarela não precisa de nada mais para retomar seu papel, batendo-lhe a porta na cara e dizendo pelo buraco da fechadura: “Boa noite, senhora, meu amo já pegou no sono, vou me deitar também.” (pág. 156)
 
Há vários momentos assim, em que o Autor se interrompe e consulta o leitor sobre suas preferências; e o mais engraçado é que eu, Leitor, não tenho voz nem voto. Claro que ele, Autor, conduz a narrativa como lhe dá na telha. Como nesta cena em que o Amo percebe ter esquecido sua bolsa e seu relógio na estalagem onde dormiram, e Jacques se oferece para ir buscá-los:
 
Enquanto isto, o Amo continuava avançando, mas eis agora amo e criado separados, e não sei a qual dos dois dar preferência. Se vocês quiserem seguir Jacques, cuidado: a busca da bolsa e do relógio pode se tornar tão longa e complicada que ele demorará muito a se reunir com seu Amo, o único confidente de seus namoros, e neste caso adeus namoros de Jacques. Se, permitindo que ele vá sozinho à procura da bolsa e do relógio, vocês escolherem a companhia do Amo, estarão sendo corteses, mas logo vão se aborrecer; porque não conhecem esse tipo de gente. Têm poucas idéias na cabeça, e quando acontece de dizerem algo sensato é porque se trata ou de reminiscências ou de inspiração. (pág. 47)
 
Essa voz narrativa é moderna, e é uma das sacudidelas de Modernismo que Machado de Assis (por exemplo) trouxe para a ficção brasileira, restaurando (em Brás Cubas, principalmente) essa oralidade que não é frouxa, é controlada; não é aleatória mas constrói uma impressão de liberdade; não é preguiçosa, e demanda atenção total a cada frase.
 
Essa voz acaba sendo a estrada horizontal por onde esses dois indivíduos cavalgam tagarelando, sem objetivo algum. Não é um romance que persegue um objetivo, é um romance da vida em movimento. Numa oficina literária de hoje em dia (e numa sala editorial) seria talvez retalhado, esquartejado, ridicularizado. E no entanto é muito mais movimentado e moderno do que muitas histórias atuais “com enredo” que só o são porque copiam os enredos das histórias que estão “vendendo bem”.
 
Travessia.