sábado, 15 de janeiro de 2022

4784) Minhas Canções: "O Dia Em Que Faremos Contato" (15.1.2022)



 
Publiquei certa vez um artigo sobre “A ficção científica na música popular brasileira”, na saudosa revista Isaac Asimov Magazine (Ed. Record), onde fazia um balanço das temáticas da FC (alienígenas, viagens espaciais, computadores, astronautas, etc.) nas letras de nossa música. Lembro que Gilberto Gil era o compositor com mais exemplos.
 
Era uma questão que já nessa época eu conversava muito com Lenine, também fã de FC, e tínhamos a toda hora uma idéia de como usar a FC numa letra de canção.
 
Pelo que me lembro, estávamos falando alguma vez sobre os morros cariocas, o fato do samba vir do morro e não “do asfalto”, a alegria espontânea de quem tem uma vida difícil... Pensando nisso, agora, me vem à mente um trecho de Avram Davidson, num dos seus contos de folk-FC:
 
Raramente vi uma mulher das classes altas, ou classes médias altas, que não trouxesse linhas de desagrado em volta da boca, e raramente vi uma mulher das classes trabalhadoras que não parecesse estar feliz e sorrindo e dando gargalhadas.
(“El Vilvoy de Las Islas”, Isaac Asimov SF Magazine, agosto 1988, trad. BT)
 
Uma simplificação, certamente, mas corresponde a tipos que facilmente encontramos em nossa própria experiência. O que faz essas pessoas de vida tão sacrificada terem uma tamanha alegria de viver? Me veio à mente o verso famoso de Herivelto Martins em “Ave Maria do Morro”, gravada indelevelmente por Dalva de Oliveira:
 
https://www.youtube.com/watch?v=NS8Yl8HMStA&list=PLA4VX07pqX-a5wJ1HwpA1lHjJzQnhTTPv&index=9


(Dalva de Oliveira)
 
Barracão de zinco, sem telhado, sem pintura...
Lá no morro, barracão é bangalô.
Lá não existe felicidade de arranha-céu;
pois quem mora lá no morro já vive pertinho do céu...
 
Daí foi um passo para a faísca inicial da canção:
 
Pois quem mora lá no morro
já vive perto do espaço sideral.
 
E a idéia foi imaginar alienígenas que, ao descerem na Terra, desciam no morro – e se deixavam contagiar por essa alegria que nós mesmos, aqui da Terra, achávamos fascinante e não sabíamos direito como explicar.
 
Isto vinha também ao encontro de muitas antigas mangações nossas (e não só nossas) sobre os filmes norte-americanos que fazem as naves alienígenas desceram sempre nos EUA, e mais do que isto, em Washington, e mais do que isto, em frente à Casa Branca.


("A Invasão dos Discos Voadores", 1956)


("O Dia em que a Terra Parou", 1951) 
 
De acordo com a nossa premissa, então, os alienígenas não desembarcariam em São Paulo (sede do poder econômico), em Brasília (sede do poder político) ou em Natal (referência à Barreira do Inferno). Desceriam nos morros do Rio de Janeiro, porque é lá que estaria o que eles vêm buscar.
 
E aí encaramos outro clichê da ficção científica de língua inglesa: a Terra como um planeta militarizado, belicoso. Não são poucas as histórias da pulp fiction norte-americana em que o Primeiro Contato com outras civilizações nos revela que somos uma espécie de párias do universo, por causa da guerra, da bomba atômica, etc., e que por isso a Terra está excluída das “federações galácticas”, ou coisa parecida.
 
É a má fé, a consciência pesada dos EUA, não é mesmo? O maior orçamento militar do mundo sabe o quando deve a Deus e ao mundo.
 
Nossa premissa foi o inverso disto: a galáxia inteira estaria em guerra, as diferentes raças não saberiam mais o que fazer para interromper esse ciclo de destruição... E de repente encontram um planeta onde há guerra, sim, como em todo lugar – mas existe paz, existe festa, existe alegria, existe carnaval...


("Ziriguidum 2001")
 
 
Não deve ter passado despercebida a muita gente a nossa citação do “Ziriguidum 2001”. Foi este o enredo criado pelo carnavalesco Fernando Pinto (com quem eu havia trabalhado em shows de Elba Ramalho, no Canecão), e que deu à Mocidade Independente de Padre Miguel o troféu do carnaval de 1985.



(Fernando Pinto)
 
Fernando era um leitor de FC; talvez não fosse um fã-colecionador como eu ou Lenine, mas era antenado com a época, e depois da vitória na Sapucaí publicou na revista Veja um artigo justificando brilhantemente seu enredo, com as baianas vestidas de extraterrestre.
 
“O Dia Em Que Faremos Contato” tem outra curiosidade, que é uma capa pescada por Lenine num volume da antiga Coleção Futurâmica, das Edições de Ouro. É do livro O Homem Eterno (“Bang!”), de F. Richard-Bessière, uma das divertidas aventuras transtemporais do repórter Sidney Gordon. É uma capa rara (eu tenho o livro, mas com a capa mais comum). Ao que parece, veio da versão original francesa, da Éditions Fleuve Noir.



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O Dia em Que Faremos Contato
(Lenine & BT)
 
A nave quando desceu, desceu no morro.
Ficou da meia-noite ao meio-dia.
Saiu deixou uma gente tão igual e diferente:
falava e todo mundo entendia.
 
Os homens se perguntaram:
por que não desembarcaram
em São Paulo, em Brasília ou em Natal?
Vieram pedir socorro, pois quem mora lá no morro
vive perto do espaço sideral.
 
Pois em toda a Via Látea não existe um só planeta
Igual a esse daqui...
A galáxia tá em guerra; paz só existe na Terra,
a paz começou aqui...
 
Sete artes e dez mandamentos – só tem aqui...
Cinco sentidos, terra, mar, firmamento – só tem aqui...
Essa coisa de riso e de festa – só tem aqui...
Baticum, ziriguidum 2001... – só tem aqui...
A nave estremeceu, subiu de novo
Deixou um rastro de luz no meio dia
Entrou de volta nas trevas, foi buscar futuras levas
pra conhecer o amor e a alegria.
 
A nave quando desceu, desceu no morro
cheia de ET vestido de orixá...
Vieram pedir socorro, e se derem vez ao morro
todo o universo vai sambar.
 
Quando derem vez ao morro
todo o universo vai sambar...