sexta-feira, 3 de junho de 2011

2573) A boca e a botija (3.6.2011)



Fulano era um cara trabalhador, competente, honesto. Ele e a esposa tinham uma poupança conjunta que estavam acumulando para no futuro construir uma casa. Dois terços do dinheiro eram a herança que ela ganhou dos pais, o resto eram economias dele. Como a mulher não se interessava por finanças (era uma pessoa de temperamento artístico, adepta de religiões orientais, etc.) ele cuidava de tudo.

Os anos se passaram. Houve alguma catástrofe familiar pelo lado dela e ela precisou do dinheiro. Pediu para o marido tirar metade, ele fez finca-pé. Depois de muito pressionado, ele confessou. Tinha perdido a grana, quase 1 milhão de reais, em especulações financeiras. Um amigo lhe acenara com a possibilidade de duplicar o capital em curtíssimo tempo. Ele começou a visualizar a cena. Convidaria Sicrana para um jantar à luz de velas, e entre duas taças de vinho daria a notícia: já podiam chamar o arquiteto e contratar o projeto, porque tinham os 2 milhões necessários para a casa! A mulher não acreditava no que estava ouvindo. Mas não sobrou nada?... Nada, nadinha, confessava ele, aos prantos. A crise das imobiliárias dos EUA derrubou inúmeros bancos e financeiras, e o dinheiro dele (e de mais alguns milhões de aplicadores) tinha descido pelo ralo. Não teve Obama que desse jeito, e dos 4 trilhões que os governos do Ocidente destinaram à salvação da economia mundial não lhe coubera sequer um centavo.

É duro uma mulher de 45 anos escutar isso. Ainda mais uma pessoa que jogava I-Ching e Tarô uma vez por mês, em quinzenas alternadas, e nunca recebeu a menor dica de que sua herança estava virando fumaça, ao fim de intrincadas tubulações financeiras, na fornalha que consumiu a credibilidade de Wall Street. Talvez as entidades espirituais não queiram perder tempo com alertas dessa natureza – a César o que é de César, etc. – e no fim das contas talvez a culpa fosse dela própria, que não interpretara corretamente as mensagens tipo “A viga-mestra cede a ponto de se partir. Infortúnio.”

Se o episódio tem alguma utilidade prática para nós, da plateia, talvez seja a seguinte. Geralmente identificamos desonestidade com má intenção, com o dolo, com o propósito malévolo de prejudicar alguém. Um roubo, um furto, um assalto à mão armada. Mas a desonestidade pode vir associada, também, a uma boa intenção que tenta se concretizar por meios questionáveis. Imagino que jamais passaria pela cabeça de Fulano pegar os caraminguás da patroa e gastá-los com coristas de Las Vegas. O que ele queria mesmo era fazê-la feliz a curto prazo. “Nunca menti para ela”, disse certa vez, “apenas não contei tudo que estava fazendo”, desculpa escorregadia de colegial pêgo-no-flagra. A fantasia pueril de produzir um grande efeito, uma grande surpresa, acabou sendo mais forte do que a lealdade, o jogo de equipe, a necessidade de tomar decisões conjuntas sobre o que implica em riscos conjuntos.