terça-feira, 21 de julho de 2015

3872) Como ler os outros (22.7.2015)



(foto: W. T. Benda)


Eu me identifico muito quando vejo as entrevistas de modelos e atrizes que viram escritoras ou filósofas e explicam para os microfones: “Eu queria mostrar que não sou apenas um rostinho bonito.”  

Não é porque eu corra o risco de que isso me aconteça, mas porque sei que essa maldição aflige por igual a raça humana inteira.  Nunca somos os que as pessoas veem de nós.

Dona Marjóri, por exemplo. Morei na pensão dela logo que vim pro Rio, ela era oito anos mais velha do que eu, despachada. Era aquela coroa que só usa roupa justa, mas impõe moral. Sabia que eu era paraibano, e dizia: “Esse eu vou tratar bem, porque é cangaceiro.” Não houve quem a convencesse do contrário. 

Hoje, trinta anos depois, é dona de um box no Mercado das Flores, perto da Uruguaiana. De vez em quando, passando lá, paro para dar um alô. E ela gargalha: “Olha o pistoleiro, gente! Matou quantos esse mês?”. É burra, é preconceituosa, é nordestinofóbica? Não, quando eu apareço ela abre o arquivo mental “Paraíba.doc”.  Tudo que tem lá é uma figura de um cangaceiro desenhada, e essa figura é tudo que ela enxerga quando pensa nesse assunto, coitada.

Já para o Dr. Firmo, que foi meu advogado durante dois anos numa pendenga de royalties, fiquei sendo para sempre “o Poeta”. Houve uma ação envolvendo músicas onde eu era parceiro, e ele compulsava as tabelas de pagamento, murmurando: “Que coisa linda, um indivíduo escreve dez ou quinze versos e ganha isso tudo.”  O escritório dele era na Graça Aranha e quando nos víamos na livraria Berinjela ele me saudava como “o discípulo de Virgílio”.

Todo mundo já fez suas bobagens, concordam? Mas tem amigos que deixam para fazê-las justamente na noite da festa em que são apresentados aos futuros sogros. O cara é arrebatado por uma paixão, mais repentina do que morte súbita, pela filha única de um casal classe-médica. Amor correspondido, espaçonave decola cheia de latas amarradas, mas o Olimpo fica com inveja. 

Surge a festa, a bebedeira, o mico, o barraco que envolveu metade da família, os sopapos com um tio reacionaríssimo da dita cuja, que sepultou paixão e o escambau. Quem é ele agora, pro resto da vida?  O “comunista bêbado”.

Se fizessem um rashomon ou um citizen-kane convocando as pessoas que nos conhecem, acabariam concluindo que há pessoas diferentes assumindo nossa identidade. 

Para diferentes grupos eu sou o trocadilhista de botequim, ou o maridão modelo, ou o escriba confiável, ou o trapalhão descoordenado, ou o maledicente venenoso, ou o guru-zen inofensivo.  

Ninguém detém a chave, a senha; ninguém sequenciou o DNA; ninguém sabe o Mal que se esconde nos corações humanos. O Sombra sabe.




3871) Cidadão Kane (21.7.2015)



Revendo Cidadão Kane, revi também o documentário The battle over Citizen Kane (de Michael Epstein e Thomas Lennon, 1996), que acompanha o DVD. O documentário mostra a vida e a carreira de William Hearst, o magnata que Welles alvejou com seu filme, e que lutou, com relativo sucesso, para transformar o filme num fracasso e a vida de Welles num inferno.  Dá ao espectador algo que um livro-biografia de Hearst talvez não desse: uma informação visual sobre o mundo do milionário, seus castelos, suas indústrias, suas campanhas políticas, e a história de sua paixão por Marion Davies (ridicularizada por Welles no filme, com certa injustiça).

Uma das teses principais do documentário é que Kane, como personagem, deve tanto a Welles quanto a Hearst. Por exemplo: Kane é separado à força de sua mãe na infância, o que pode explicar sua necessidade de ser amado por milhões de pessoas, por um país inteiro. Isso não aconteceu com Hearst, mas aconteceu com Welles. E ao longo do documentário de Epstein/Lennon vemos Welles aos 25 anos se maquiando para interpretar Kane com 60, e vemos logo em seguida Welles aos 60 refletindo sobre si mesmo e sobre seus filmes.

Epstein e Lennon mostram como Welles contou seu próprio futuro ao desvendar o passado de Kane; ele acabou sendo um Kane sem Xanadu. Certas obras, produzidas numa fase de euforia criativa e energia vital, parecem levar um autor a um teto que ele nunca voltará a alcançar. Kane é tão profético sobre Welles quanto “O Barco Ébrio” é profético sobre Rimbaud, mesmo tendo sido escrito aos dezesseis anos. Como se depois de publicado o poema e exibido o filme aquilo virasse um mantra inconsciente no autor.

Kane caberia em muitas retrospectivas temáticas: filmes sobre jornalismo, sobre magnatas, filme de mistério investigativo, filmes sobre política dos EUA, filmes neo-expressionistas, etc.  A famosa profundidade de campo na fotografia de Gregg Toland continua notável hoje, com pessoas minúsculas no centro da imagem conversando com alguém de perfil juntinho à câmera. Kane é cheio de personagens vistos de corpo inteiro a dez ou vinte metros, e o enquadramento parece os dos filmes de truques de Ray Harryhausen.  Diz-se que os atores suavam, porque para a imagem ser nítida era preciso inundar a cena de luz, e os refletores eram muito quentes. Orson participou de um programa de rádio com H. G. Wells, em 1940 (aqui: http://tinyurl.com/pn8nuvl). O inglês perguntou-lhe como era o filme que estava fazendo, e ele disse: “É um novo tipo de filme, como um novo método de apresentação, e alguns novos tipos de experiências técnicas e novas maneiras de narrar um filme”.