domingo, 25 de junho de 2023

4955) Tradutor, o herói invisível (24.6.2023)



 
Em seu magistral e enciclopédico compêndio de tradução Le Ton Beau de Marot (Basic Books, 1997), Douglas Hofstadter sugere a seguinte parábola (Cap. 13, trad. BT):
 
Aqui estão dois tostões de diálogo para vocês, o tipo de conversa que alguém pode ouvir facilmente numa grande cidade, ou num campus universitário:
 
Ele: Está sabendo? Vladimir Horowitz está na cidade, e vai dar um recital neste sábado.
Ela: Uau, vamos assistir! Me diga, ele vai tocar o quê?
Ele: Não faço idéia. Não tem a informação no cartaz. Mas vai ser uma beleza, Horowitz é sempre grande.
Ela: Ah, Horowitz! Que pianista! Posso passar a vida inteira escutando-o!
 
E agora, eis um diálogo bastante parecido, mas um que você nunca, jamais, em tempo algum vai ouvir, seja numa metrópole ou num campus:
 
Ele: Está sabendo? Gregory Rabassa acaba de traduzir mais um livro!
Ela: Uau, que notícia maravilhosa. Já está à venda?
Ele: Acho que não, mas em todo caso deve estar daqui a um ou dois meses.
Ela: Oh, sim... aliás, quem é o autor?
Ele: Não faço idéia. Não tinha essa informação no anúncio que eu li. Mas vai ser uma beleza, Rabassa é sempre grande.
Ela: Ah, Rabassa! Que tradutor! Posso passar a vida inteira lendo suas lindas frases!
 
Se você pensa que esta segunda conversa tem alguma possibilidade de acontecer... vá sonhando, amiguinho, vá sonhando.
 
A inequação armada por Hofstadter mostra muito bem as semelhanças e as diferenças entre as duas profissões. Um pianista é uma espécie de tradutor, no sentido de ser um intermediário imprescindível entre a partitura e o ouvinte. Um tradutor é uma espécie de instrumentista, fazendo com que o leitor que não lê inglês (ou coreano, ou mandarim) desfrute a experiência estética cifrada no original. (Ou quem sabe “a ilusão da experiência”, mas nem vamos mexer nesse formigueiro.) 
 
Meu amigo californiano Harry Ingham lamentava não saber escrever em espanhol. “Se eu escrevesse em espanhol”, dizia ele, “teria alguma chance de ser traduzido por Gregory Rabassa, e meu livro em inglês ficaria infinitamente melhor”. 
 
Exagero? Só um pouco. Um dos detalhes imponderáveis da tradução é a escolha de vocabulário. Muitas vezes eu coloco uma palavra que funciona bem no contexto, e me dou por satisfeito. Pode haver, porém, um sinônimo que acrescente alguma coisa à frase – uma nuance de significado, um efeito rítmico, uma conotação mais ampla... Se alguém “traduzisse” minha frase para o português, com essa alteração, eu seria o primeiro a pensar: “Rapaz, ficou muito melhor... Como isto não me ocorreu?”



Já comentei aqui no Mundo Fantasmo o livro de Rabassa, If This Be Treason (2005), em que ele comenta muitas de suas traduções da literatura latino-americana. Rabassa explica, em longos parágrafos, algumas opções de tradução do clássico Cien Años de Soledad (1968) de Garcia Márquez. O título, por exemplo: A Hundred Years of Solitude or One Hundred Years of Solitude? Ele opta por este ultimo, e explica por quê. Do mesmo modo, explica por que razão “solitude” lhe parece superior a “loneliness”.
 
Sobre o livro, aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2014/11/3666-gregory-rabassa-23112014.html
 
O tradutor é apenas um coadjuvante no show literário, mas sem a sua competência o show poderia desmoronar. Podemos imaginar um contexto futuro em que a sugestão de Hofstadter pudesse se tornar real – as pessoas comprando um livro não pelo autor, mas pelo tradutor, para fruir o trabalho do tradutor. Por que não? 
 
Ariano Suassuna, que gostava de demonstrações por absurdo, criou no Romance da Pedra do Reino (1971) o personagem Samuel Wandernes, um intelectual católico, monarquista, e nacionalista. Para Samuel, tudo que é brasileiro é superior ao estrangeiro, inclusive na literatura. No Folheto LXXVII do livro, ele diz:
 
Sou nacionalista, e, podendo, pilho os estrangeiros o mais que posso!  Para mim, Manoel Odorico Mendes é o autor dos originais da ‘Ilíada’ e da ‘Eneida Brasileira’: Homero e Virgílio são, apenas, os tradutores grego e latino dessas obras dele!  Castilho é o autor do ‘Fausto’ e do ‘Dom Quixote’, assim como José Pedro Xavier Pinheiro é o verdadeiro autor da ‘Divina Comédia’ que Dante traduziu para o italiano!

 
Exagero? Talvez, mas não podemos esquecer que Eça de Queiroz traduziu As Minas do Rei Salomão (1885) de H. Rider Haggard, tomando extensas liberdades com o texto original (o protagonista Allan Quatermain, por exemplo, vira “Alão Quartelmar”), numa verdadeira adaptação – tanto assim que este volume é habitualmente incluído nas edições das obras completas de Eça. É um dos livros de juventude de Ariano, e não é difícil ver aí uma fagulha inicial da megalomania nacionalista de Samuel Wandernes.   
 
Há muitos casos de tradutores que cedem à vaidade de aparecer mais do que o autor, de mexer no texto do autor. Às vezes por pressa e impaciência: já li romances policiais traduzidos por Monteiro Lobato em que ele pulava páginas inteiras de descrições de ambientes (a mansão do milionário, etc.), o que às vezes deixava a narrativa até mais leve e mais rápida. (Mas não aconselho ninguém a fazer isto.)
 
Recentemente estourou na imprensa um pequeno escândalo relativo a uma tradução para o inglês de um romance de Machado de Assis, quando um professor norte-americano verificou que a edição que ele usava em aula era mais completa do que a dos seus alunos, onde capítulos inteiros tinham sido suprimidos.
 
Isto não é nada diante da façanha de William Julius Mickle, que em 1776 fez uma tradução de Os Lusíadas de Camões, e teve a cara-de-pau de incluir uma batalha marítima que não existe no original.
 
Veja aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2009/05/1041-os-lusiadas-em-ingles-1872005.html