segunda-feira, 11 de abril de 2016

4099) Literatura e coincidências (11.4.2016)



Por que motivo ficamos um pouco decepcionados com um livro (um filme, etc.) onde uma grave situação de mistério ou de ameaça é resolvida por causa de uma coincidência espantosa e bem vinda, dessas de uma em um milhão?. O leitor sente que o autor trapaceou em benefício próprio.

Eu já vi em último capítulo de telenovela um crime antigo ser finalmente desvendado quando a polícia faz uma última varredura no local, e acha a carteira de identidade do assassino, que ele perdeu no dia em que praticou o crime.  Nem ele tinha voltado para buscar nem a polícia tinha encontrado na primeira investigação, cinquenta capítulos atrás.

O público se julga trapaceado porque o autor está usando um “deus ex machina”, está resolvendo de uma maneira meio ditatorial um problema que precisaria de uma certa diplomacia dramatúrgica. Li recentemente um ótimo livro policial onde se conta um sequestro. Procura-se por toda parte, em várias estradas do município, algum vestígio da pessoa sequestrada. A certa altura, um amigo do protagonista pede a este que pare o carro ali numa estrada remota, pois ele precisa ir urgentemente ao banheiro. Ele para, e quando fica esperando resolve ele próprio tirar água do joelho. Quando vai até o mato, vê brilhando ali o capacete da pessoa sequestrada.

Já aconteceram comigo coincidências de cair o queixo, mas não tinham outro significado a não ser o de sua raridade estatística. Não parecia que era uma falha da Matrix, ou que era uma forma nova de mandar recados. Mesmo que se prove que somos o videogame de Alguém, isso não resolve nenhum dos nossos problemas. A história continua a mesma.

Emma Coats, roteirista da “Pixar”, diz: “Coincidências para botar os personagens numa confusão, ótimo; mas coincidências para salvá-los são trapaça.”  Não sei até que ponto a maioria dos leitores controla esses detalhes à medida que vai lendo. O melodrama teatral e o folhetim literário de antigamente usavam muito a coincidência nesses dois sentidos. Uma conversa entreouvida ao pé de uma janela, uma carta ou documento que se perde por acidente, pessoas compartilhando nomes, lugares, sendo ligadas entre si por um número ou por um fato aleatório.

A coincidência “a favor do roteirista” (para tirá-lo de um beco narrativo sem saída) é golpe baixo, é como um coringa sujando uma canastra quase real. Perderá esse agravante se outras coincidências randômicas se abaterem sobre a narrativa, em diferentes pontos, sem propósito específico. Aleatório como a realidade. Num contexto assim, a coincidência salvadora se dilui entre outras que se abateram sobre o protagonista. Uma porção de coincidências inexplicáveis e sem grande repercussão no enredo podem atenuar a presença eventual de uma coincidênciazinha que ajuda o personagem.