quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

2805) Grande Joenilson (29.1.2012)



Pois é. 

Joenilson tem 25 anos, é empresário (não se sabe do quê), mede um metro e 95 (“mais 22 centímetros extras”, diz ele com voz-de-urso, quando está de Red Bull em punho). 

É bronzeado, musculoso, usa boné pra trás e óculos espelhados, gosta de bermudas floridas e regatinha “Deus é Meu Parente”, pilota um carro esporte vermelho. Quando ele sai sem cantar pneu tem que dar ré e começar de novo. 

Assina “Veja” mas só lê a seção “Gente & Frases”. Casou no Rio, após um Carnaval, com a filha de um prefeito baiano, e tantas aprontou que hoje a ex-mulher vive em Miami e o ex-sogro banca seus supérfluos. 

Cria dois cachorros enormes num apartamento do 15º. andar; todo fim de tarde desce com eles para fazerem suas necessidades no calçadão da praia. 

A praia é um dos seus lugares preferidos; Joenilson desfila de sunga, estira uma toalha e fica passando óleo em si mesmo como se passasse protetor em Nicole Kidman. Tem cada rebôlo de braço dessa grossura; uma vez num boteco uma moça parou perto dele e disse: “Ai como eu queria um braço desse me agarrando”, e ele respondeu, sem tirar o palito da boca: “Traga uma amiga, eu tenho dois”. 

Joenilson já se candidatou quatro vezes ao Big Brother e não entrou; a mãe, que é sua maior fã, diz às amigas: “Não são doidos, né? Ia desempregar Pedro Bial.” Joenilson tem “ator” no currículo; frequentava a esposa de um publicitário, o qual lhe conseguiu comerciais de ração canina, de pneus, de cerveja em lata, coisas verossímeis. 

Anda com uma turma que só se distingue dele pela frase nas camisetas. Conversam o dia inteiro sobre dinheiro e motores, além de mulheres, mero pretexto para voltar a falar sobre dinheiro e motores. 

Joenilson tem umas sete namoradas, e pondera: “Dou a cada uma seis dias pra repor as energias”. Frequenta coquetéis, recepções, meetings políticos; tem acesso livre aos camarins pós-show, e quando posa para a foto no celular murmura algo que faz a cantora de fora congelar o sorriso. 

Circula pelas rodas políticas e financeiras, negocia ações ao celular enquanto faz baliza no estacionamento da academia, concede desplugar um dos earphones do iPod quando é apresentado a uma autoridade. 

Toda primeira terça do mês tem um compromisso sagrado, a reunião do Clube do Mé, que fundou com seus manos Leguelé Jordão, Erik Bomba e Bianorzinho. 

Vai todo ano a Aruba, Las Vegas, Orlando, e à final da UEFA Champions League. 

 Mora no meu prédio. Quando me encontra no elevador dá um sorriso desarmante, aperta minha mão, esmaga de novo meus dedos e diz: “Cara, sou seu maior fã, não perco um artigo seu!”. 

Jesus Sacramentado, o que é que Joenilson tem que eu não tenho?!







terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

2804) “Hugo Cabret” (28.2.2012)



Filmes de celebração ao cinema são um subgênero especial da arte cinematográfica. Narcisismo umbilical? Conspiração nostálgica? Sentimentalismo para eleitos? Talvez quem faça filmes assim esteja querendo, às vezes, injetar um pouco de sonho e de fantasia em algo que foi só fantasia e sonho no passado, mas a partir de certa idade tornou-se (para diretor, roteirista, atores, técnicos) apenas profissão, obrigação a mais, caminho sem escolha. Fazer filmes sobre “a magia do cinema” é uma tentativa de recuperar o frescor e a alegria dos começos felizes.

Este filme de Martin Scorsese, baseado num livro de Brian Selznick, aborda o cinema por vias transversas: mecanismos de relojoaria, autômatos, um misterioso livro manuscrito… Em cenas cruciais do filme os personagens trocam entre si as palavras “mistério” e “aventura”, e sorriem, como se uma senha tivesse sido fornecida e aceita. É um filme de jovens-adultos na linha de O enigma da pirâmide (“Young Sherlock Holmes” de Brian Levinson) mas também um filme para adultos-jovens na linha de Amélie Poulain de Jean-Pierre Jeunet. Sua homenagem ao cinema mudo vai se desvelando a partir da metade da narrativa, mas os autores não esquecem de fazer menção à literatura aventuresca (Alexandre Dumas, Julio Verne) cujo espírito recupera. É mais que adequado que um filme sobre Georges Méliès, o criador dos efeitos especiais do cinema mudo, seja feito em 3-D, reconstituindo a reação espantada das platéias e refletindo-se, na narrativa, naquelas longas sequências de perseguição e rápidos deslocamentos que não têm outro propósito senão o visual. O movimento cinematográfico é algo como uma melodia: umas pessoas sentem beleza nisso, outras não. Reclamar das vertiginosas perseguições deste filme em 3-D é como reclamar das iluminuras medievais e dizer que nada acrescentam ao texto bíblico.

O filme é longo e poderia contar a mesma história com 15 minutos a menos; imagino que Scorsese fez de propósito, para bater de frente com a montagem-relâmpago de hoje em dia. Quis uma montagem analítica, como a prosa de Dumas ou Verne. Se a montagem é lenta, é a câmara que é rápida, voando como uma seta, uma bala teleguiada, através de “tableaux” sucessivos e minuciosos como a arte da Belle Époque. Seu filme é uma homenagem ao Cinema, arte híbrida de química, ótica e mecânica. Uma arte que reúne os amantes de relojoarias, lanternas mágicas, diafragmas e íris, imagens impalpáveis, criaturas artificiais, sonhos, pesadelos, monstros de papelão, lâmpadas, desenhos que se movem, fantasmagorias, ectoplasmas, cavernas de Platão, ilusionismo, prestidigitação, imaginação, memória, aventura e mistério.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

2803) Filme de computador (26.2.2012)




(o trailer no YouTube)

Como fazemos nossas escolhas estéticas? Muitas delas são escravas de um certo racionalismo, claro. Num romance há de existir um mínimo de continuidade entre o que escrevemos até agora e o que vamos escrever imediatamente em seguida. Mas digamos que o coleguinha está tentando editar um videoclip com a ajuda de um banco de imagens. Quais são os critérios? Cor... textura... movimento... Coisas assim; além do sentido “literário” das imagens. Algo por aí.

Pois bem, “seus problemas acabaram”. Eve Sussman criou um projeto experimental chamado “whiteonwhite:algorithmicnoir”, que utiliza um computador, 3 mil videoclips, 80 narrações de voz e 150 trechos musicais. Quando o programa roda, ele vai examinando esse material e selecionando áudio e vídeo de acordo com seus próprios critérios (projetados por seres humanos, é óbvio). Cada clip tem “tags” ou referências que filtram o material inteiro e limitam as escolhas da próxima imagem – se uma imagem tem por exemplo a tag “Branco”, ele concentra sua escolha nas imagens com a mesma “tag”, e em seguida reinicia o processo. A música e a narração são montadas por processos semelhantes. No festival Sundance, onde o projeto foi testado, a audiência tinha a opção de olhar dois monitores, sendo que um deles reproduzia o processo “interno” de escolha e o outro mostrava a edição final, a sequência de imagens escolhidas.

Puristas e luditas se erguerão em defesa da criatividade humana, da emoção humana, etc. e tal, e parecem esquecer que grande parte do nossso trabalho é feito exatamente assim. O que talvez nos diferencie do projeto de Sussmann seja apenas a extensão do arquivo, porque um diretor de filme deve ter em sua memória (consciente e inconsciente) algumas dezenas de milhões de imagens codificadas por algumas centenas de milhares de “tags” que lhe sugerem o que escolher em seguida.

E não só no cinema. Pensem na poesia menos descritiva, menos racionalista. Pensem em Jorge de Lima e sua Invenção de Orfeu: “De manhã estrelas verdes / na inocência do ar coleado, / intranqüilas e veementes. / Ao zênite e areia em sede, / asas das hastes pendidas, / as nuvens-castelas altas / como painas amealhadas”... Que processo determina essas escolhas verbais, escolhas que nenhuma imposição racional nos obriga a fazer? Por que estas palavras, e não outras? Talvez os computadores, corretamente utilizados, possam nos trazer um novo tipo de surrealismo, tão legítimo quanto o de Jorge de Lima e de Benjamin Péret, que possa ser aplicado à poesia, ao filme, à música, às modalidades de arte sequenciais e não-narrativas. A tecnologia a serviço da intuição e do acaso.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

2802) Plagiarismo (25.2.2012)



(Quentin Rowan)

A arte secreta do plágio produziu recentemente mais um episódio curioso. Em geral plagiários se defendem dizendo que não conheciam a obra original e tudo foi coincidência; ou que estavam homenageando o artista de cuja obra se apropriaram; ou que era uma experiência de metalinguagem. Não foi o caso de Quentin Rowan, que lançou em 2011 um romance de espionagem, Assassin of Secrets, sob o pseudônimo de Q. R. Markham. Poucos dias depois do livro ir às lojas começaram a pipocar nos blogs e na imprensa denúncias de que o romance continha parágrafos inteiros copiados de outros livros. Edward Champion, do websaite Reluctant Habits, apontou 34 exemplos de plágio nas primeiras 35 páginas do livro. Críticos (e os editores do livro, claro) começaram a jogar trechos no Google e encontrar exemplos onde apenas os nomes próprios e pequenos detalhes técnicos tinham sido alterados, trechos de livros de Robert Ludlum (autor da Supremacia Bourne), Charles McCarry, James Bamford, Geoffrey O’Brien e de autores como John Gardner, que estão (com consentimento dos herdeiros) escrevendo novas aventuras de James Bond, após a morte de Ian Fleming.

Uma longa matéria no The New Yorker (http://nyr.kr/zZmqk7) traça o patético perfil de Rowan, um garoto filho de pais intelectuais que sempre esperaram dele façanhas literárias. Na adolescência, ele copiava palavras difíceis para inserir em seus contos e poemas; daí para copiar frases inteiras (que achava bonitas) foi um passo. Ajudado por uma memória excepcional, ele sempre lembrava onde encontrar exatamente o parágrafo que precisava (descrição de ambiente, cena de briga, cena de sexo, meditação dos personagens, etc.). Poderia ter dito depois que estava produzindo metaliteratura ou algo assim, mas confessou ao jornalista, com candura: “Há anos eu tenho medo de ser descoberto; acordo no meio da noite e vou me olhar no espelho. (...) Eu lutei contra o plágio do mesmo modo que outros lutam contra o fumo, o vício do sexo, da comida, do jogo. (...) Nunca pensei em oferecer meu livro como uma colagem. Eu queria, sinceramente, que as pessoas pensassem que eu era o autor”.

Ele próprio compara o vício do plágio à cleptomania. Diz que nunca roubou nada em lojas, mas que isso explica por que pessoas com talento literário sentem a necessidade de plagiar. “Cleptomaníacos em geral são pessoas que não precisam furtar, como as madames do Upper East Side ou Wynona Ryder”. Pelo sim, pelo não, a editora tirou o livro do mercado e exigiu de volta o adiantamento de 15 mil dólares pago ao autor. Que agora está trabalhando em um novo romance, sem transcrições, para mostrar que sabe escrever.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

2801) Sonhos (24.2.2012)




(Self, de Michael Morgenstern)

Tem uma história antiga que se refere a um desses monumentos da humanidade, não lembro se era sobre Matchu Pitchu ou a Esfinge de Gizé; alguma coisa gigantesca e enigmática. 

Quando os exploradores europeus chegaram lá, séculos atrás, perguntaram às tribos que moravam perto: “O que é aquilo?”. Os nativos olharam com uma cara de quem estava vendo a tal coisa pela primeira vez e responderam: “Pois é, que coisa estranha aquilo, o que será?”. 

Era um resíduo cultural dos antepassados deles, eles a viam diariamente quando iam levar os camelos para beber água ou coisa parecida, e não tinham parado para imaginar o que era.

Assim somos nós com grande parte das coisas importantes da nossa vida. Por exemplo, digamos que amanhã desembarque na Terra uma frota de espaçonaves cheias de psicólogos alienígenas que falem português (tá bom, vá lá, que falem inglês, que é mais disseminado). 

E que eles nos perguntem: “O que é o sonho? Lá no nosso planeta, quem dorme apaga. Aqui, vocês dormem e ficam pensando maluquices, como quem tomou LSD. Que diabo é isso?” Não saberíamos responder. Temos 258 teorias para explicar o sonho, o que equivale a não ter nenhuma.

A teoria mais recente é do dr. Rodolfo Llinás, um neurologista e fisiologista da New York University. Diz ele: 

“O sonho não é um estado mental paralelo, mas é a consciência propriamente dita, na ausência de estímulos fornecidos pelos sentidos”. 

Em seu livro I of the Vortex: from Neurons to Self (M.I.T., 2001) ele diz que quando as pessoas estão despertas a mente compara automaticamente essas imagens do sonho com o que vê, ouve e sente – os sonhos são corrigidos pelos sentidos. Ou seja: se entendi bem, a mente está o tempo inteiro processando situações, inventando-as, manipulando imagens, fazendo associações de idéias, mas o que ela faz é constantemente interferido pelos sentidos, pelo fato de que estamos acordados, cercados de outras pessoas que nos dizem coisas, nos mandam fazer isso ou aquilo. 

Somos forçados a pensar socialmente, pensar em conjunto, e isto cria um superego de obrigações e compromissos coletivos.

A loucura poderia ser algum desarranjo em que o “input” sensorial deixa de prevalecer sobre o caldeirão borbulhante da mente-em-si. Experiências com LSD seriam um modo artificial de produzir algo semelhante. Quando dormimos, a mente consegue trabalhar em paz, de acordo com suas próprias regras, sem ter que ficar dialogando com o mundo material. 

Já foram feitas experiências em que voluntários num laboratório foram impedidos de dormir. Depois de 3 ou 4 dias eles começam a sonhar acordados. O sistema sensorial afrouxa, enfraquece – e a mente crua toma conta.





quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

2800) Frases longas ou curtas (23.2.2012)



Todos os manuais de escrita nos aconselham a usar frases curtas, na voz ativa e em ordem direta. O leitor deve avançar na escrita sem ter que voltar atrás a toda hora. Isto é uma tendência do jornalismo em geral e da prosa realista norte-americana, duas formas de escrever que às vezes são confundidas uma com a outra, até pelos seus próprios praticantes. Eu não tenho nada contra esse estilo; tentar praticá-lo me ajudou muito a tornar mais clara a minha maneira de escrever. Mas de vez em quando eu penso comigo mesmo, como pensa o escritor Pico Iyer neste artigo (http://lat.ms/ycShNj): “se continuarmos neste caminho, áreas inteiras das nossas sensações e da nossa cognição acabarão se perdendo”.

E ele faz uma defesa da frase longa, de muitas orações encapsuladas umas dentro das outras; a Frase Proustiana, que a crítica reverenciou por tanto tempo e com um entusiasmo tão desmedido, embora compreensível , que ela acabou se transformando numa espécie de modelo cruelmente imposto a jovens escritores que nem sempre, mesmo que admirassem Proust, estavam preparados (ou tinham uma inclinação natural) para exprimir-se da maneira que Proust se exprimia, e desse modo o que era para ser o apogeu da forma de um artista fora-de-série acabou se transformando numa fórmula ideal forçada de cima para baixo, que estragou muitas vocações e carreou para si (e para o escritor que a havia burilado tanto tempo atrás) críticas escarninhas e em grande parte injustas, embora inevitáveis no contexto distorcido que as motivou.

Proust ou Hemingway? O autor do Velho e o Mar virou o símbolo da tendência oposta. O mestre da frase curta e seca, que diz tudo e se detém. O próprio Iyer lembra: “Um escritor de muitos recursos como Hemingway ou James Salter é capaz de colocar inúmeras nuances e sugestões mesmo na frase mais curta e mais direta”. A verdade é que deveríamos ser capazes de dominar as duas técnicas, sem querer emular os dois extremos. Iyer define a frase longa como “a série de orações que é cheia de compartimentos, que é pródiga e abundante em nuances de tom e em sugestões, que tem tanto espaço para a quase-contradição e a ambiguidade e para os lugares da memória e da imaginação que não pode ser simplificada, ou posta em palavras banais, e que permite ao leitor manter muitas coisas na mente e no coração ao mesmo tempo, e descer, como se descesse uma escada em espiral, cada vez mais para dentro de si mesmo e para dentro do que não pode ser tratado em termos de ou-isto-ou-aquilo”. Um talento cada vez mais raro, talvez. Mas que nunca desaparecerá, porque é fonte de beleza e aprofundamento; algo como tocar harpa ou jogar xadrez.

2799) Quando meu tempo (22.2.2012)




Quando meu tempo se esgotar, sentirei minhas veias se esvaziando da banda-larga biológica que as percorre; sentirei as cores do mundo sumindo, a granulação da vista aumentando, até que todas as imagens à minha frente se pulverizarão como um redemoinho de pixels negros numa página branca, e acontecerá com minha memória o quer acontece quando uma carta escrita com pequenos montes de pó de café é levada de camelo através de Saaras e simuns.

Surgirá na ponte levadiça do meu Castelo uma carroça de fibra-de-vidro puxada por quatro pares de robôs andrajosos, enferrujados, resfolegantes, e o cocheiro será um orangotango com implantes cibernéticos no lobo frontal. Ao lado deste, estará um produtor executivo vestindo terno preto, camisa chumbo e gravata preta, com um contrato na mão, uma folha de papel onde os termos finais foram redigidos com pó de café e trazidos à minha porta através da guerra da tomada do meu Castelo.

Eu estarei sozinho para me defender, mas de arma em punho, e ironicamente a última arma que escolhi para me defender é o multicontrole remoto de onde consigo acessar quatro palácios de governo, seis divisões motorizadas, noventa e duas bibliotecas digitais, o celular privado de dezoito chefes de Estado e os de suas dezoito primeiras damas, as 500 webcams dispostos em 360 graus em torno do Castelo. Penso com ironia que esta super-arma só mereceria este nome se trouxesse embutida uma minibomba atômica que pudesse pelo menos volatilizar toda a matéria em cem metros de raio, dispersando seus átomos como se fossem grãos de café.

Sem desfraldar bandeiras, sem partir grilhões, sem botar muralhas abaixo com trombetas e rajadas, meu tempo se esgotará. Sem frases altissonantes, sem webcams mundo afora, sem incensos e mantras, sem dó nem piedade, meu tempo se esgotará. Se esgotará espremendo-se a si mesmo para que haja significado em cada átomo, em cada átimo, em cada gotinha de suor e em cada gotinha de tinta que minha caneta pingar no papel ou meu dedo gravar em pixel na tela eletrônica.

Quando meu tempo se esgotar estarei ainda com meu corpo neste mundo real, onde ele poderá ser submetido às humilhações messiânicas da Medicina que prolonga agonias; mas a minha mente, envolvida no vórtice-turbilhão com que desaparecerá em si mesma, será capaz de saber e de distinguir, será capaz de entender e de imaginar. Meu tempo terá se esgotado, minha matéria estará se desagregando aos vendavais furiosos da entropia, mas a mente é mais do que a matéria que lhe deu vida. A mente sobreviverá ao corpo, orgulhosa e brilhante; por um milionésimo de segundo, mas sobreviverá ao corpo, quando meu tempo se esgotar.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

2798) Eu não sou robô (21.2.2012)



A imagem do Segurança tremeluzia diante de mim, no saguão virtual. Era um homem de meia idade, terno escuro, olhos orientais. “O senhor está tentando acessar a sua conta de um terminal desconhecido”, disse ele. “Sim”, falei, “estou em viagem, em Bangcoc, preciso fazer uma transferência urgente”. “Seu código visual parece em ordem”, disse ele, “mas vamos ter que fazer um pequeno teste”. “Para quê?”, perguntei. “Para saber se o sr. não é um robô”. “Claro que não sou robô. Por acaso eu me pareço com um tonel de óleo?”. “A palavra robô é usada aqui como categoria abstrata”, disse ele, “e de acordo com o seu perfil de cliente, pois consta em nosso cadastro que o sr. escreve ficção científica”. “Amigo, eu vim à Tailândia receber um prêmio, tenho que trocar isto da moeda daqui para o real, pagar as malditas taxas, e creditar na minha conta no Brasil, porque meu voo para Moscou é à tarde”. “Sem dúvida, e parabéns pelo prêmio, estou conferindo aqui que o sr. é o primeiro escritor brasileiro premiado na Tailândia”. “Beleza, isso mesmo, fico grato, e mais grato ficarei se me deixar fazer minha transferência”. “Primeiro”, disse ele, “vamos ter que fazer um pequeno teste, para saber se o sr. não é um robô”. “Como assim, um robô? Vocês não tem minha imagem no cadastro, meu perfil vocal, essa besteira toda?”. “Senhor, a tecnologia avançou muito. Tem havido infiltrações nos cadastros, e sistemas de pirateamento estão usando robôs para milhões de tentativas simultâneas de acesso às contas. Preciso saber se estou lidando com um ser humano”. “OK, desisto. Faça o teste”. “Como o sr. descreveria o sabor de uma tangerina?” “Meu amigo, isso é uma brincadeira?!” “Sr. Braulio, esta é uma reação típica de um robô. A mudança de assunto”. “Mas o que diabo tem tangerina a ver com transferência bancária, e o que diabo sabor de tangerina tem a ver com robô?” “Um robô não tem experiências sensoriais, gustativas. Eu, por exemplo, sou um robô, e não saberia fazer essa descrição. Sua resposta será transmitida através de mim para quem possa julgá-la”. “Tá bom, tá bom. A tangerina tem um sabor doce, ácido. Um pouco mais adstringente do que uma laranja doce mediana”. “Obrigado.” “Passei no teste?”, perguntei. Ele: “Na verdade, queríamos apenas ganhar tempo enquanto redirecionávamos sua transferência para nossas contas clandestinas”, disse, e erguendo a mão arrancou o rosto. Por baixo dele, havia uma máscara de Guy Fawkes, que sorriu e continuou: “Somos os Anonymous, mané, e escritor que recebe prêmio de governo tem que dar sua contribuição à causa”. Deu um pipôco e sumiu no ar, deixando um cheiro adstringente de tangerina.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

2797) A Vida e os Tempos de Tombstone Bill (19.2.2012)



Cap. 1 – De como o menino Bill Hazlitt, aos 7 anos, teve sua família assassinada por sicários a mando de um fazendeiro, e só escapou com vida porque fugiu para o milharal e se escondeu dentro do espantalho. 

Cap. 2 – De como Bill viajou a pé para a região de Tucson, onde moravam seus tios-avós, e ao chegar lá encontrou a fazenda ainda sendo incendiada pelos apaches.

Cap. 3 – De como Bill pegou uma carona num carroção que vinha de Phoenix, sem saber que ali viajavam dois escravos em fuga, motivo de uma emboscada que deixou o carroção em cinzas, os escravos enforcados e Bill sendo adotado pelo chefe da expedição punitiva, o dr. Jedediah Willoughby, que exibiu o garoto à população de Tombstone, descrevendo os maus tratos a que os réprobos o tinham submetido, mesmo com as veementes negativas do menino, o que levou a Sra. Willoughby, presidente da Associação de Mulheres Brancas Pela Paz e Pela Decência, a enfiar-lhe uma echarpe na boca.

Cap. 4 – Vertiginosa sucessão de malfeitos, delitos, crimes e transgressões que Bill praticou, sob o olhar complacente do dr. Willoughby e as recriminações de sua esposa, até se transformar aos 20 anos em Tombstone Bill, terror dos homens da lei e vertigem das donzelas locais.

Cap. 5 – De como T-Bill assaltou o Grand River Bank, em Boulder, Colorado.

Cap. 6 – De como T-Bill torrou o dinheiro todo no saloon ao lado.

Cap. 7 – De como T-Bill se apaixonou pelas coristas Mimi Dupont e Laura Clintwood, e levou as duas consigo enquanto se decidia.

Cap. 8 – De como T-Bill e as moças foram emboscados pela quadrilha dos Arlington Boys, e ele abateu seis inimigos e feriu onze para defender a honra de suas bem-amadas.

Cap. 9 – De como T-Bill e as garotas foram capturados e levados para o rancho dos Arlington, para que o patriarca, Big Bob, decidisse a melhor maneira de compensar aquele inesperado prejuízo.

Cap. 10 – De como Big Bob foi com a cara de T-Bill e decidiu dar-lhe a chance de jogar no pôquer a própria libertação.

Cap. 11 – De como T-Bill, numa noite que entrou para a História, ganhou não só a liberdade mas o dinheiro e a fazenda de Big Bob, tornando-se proprietário de cem hectares de terras férteis, mil cabeças de gado, líder de trinta capangas e marido de Mimi e Laura ao mesmo tempo (pra simplificar).

Cap. 12 – De como T-Bill invadiu Tombstone, desarmou as autoridades, cobriu o dr. Willoughby e esposa de alcatrão e penas, proclamou a cidade uma República Independente, proclamou-se (paradoxalmente) imperador sob o título de Tombstone I, e morreu engasgado com um osso de frango ao achar graça numa piada contada por Big Bob, que ele havia nomeado seu ajudante de ordens.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

2796) Dicionário Aldebarã III (18.2.2012)



O planeta de Aldebarã-5 tem uma civilização influenciada pelos colonizadores terrestres. Seu vocabulário exprime as características da natureza do planeta, e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura. Os verbetes abaixo foram recolhidos do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.

“Ansins”: aqueles dias em que, sem motivo aparente, a casa de uma pessoa é visitada sucessivamente por dezenas de amigos e conhecidos que passam algum tempo e vão embora, dando lugar a novos visitantes.

“Temions”: painéis refletores que se usam nas cidades de Aldebarã para projetar a luz solar em recantos das ruas, das casas, etc. onde ela não bate ao longo do dia.

“Riggim”: a sensação de embriaguez causada por uma refeição qualquer ao fim de um jejum prolongado.

“Siltins”: as imitações, cada vez mais diluídas, de algo que teve importância ou fez sucesso no passado.

“Yok-Dangs”: animais domésticos que alguns aldebarãs mantêm em casa para encher de cuidados e de carinhos. “Yok-Wimps”: animais domésticos que alguns aldebarãs mantêm em casa para encher de serviços pesados e maus-tratos.

“Hayands”: pequenas rolhas aromáticas que os aldebarãs colocam nas garrafas de bebida depois de abertas, proporcionando degustação mais sutil e variada das bebidas ali contidas.

“Bezzkoms”: poemas tradicionais em que a primeira palavra de cada linha deve começar pela mesma letra inicial da última palavra da linha anterior.

“Luinn”: o ruído musical que faz uma bacia ou vasilha metálica ao ser retirada de dentro dágua.

“Angrum”: a surpresa que temos ao encontrar por acaso uma pessoa que pensávamos já estar morta.

“Miklon-Lu”: espécie de louça, fabricada a partir da porcelana e da celulose, que é praticamente inquebrável e não faz ruído ao ser manuseada.

“Amdrupp”: roldanas artesanais, com cordas bem finas, que correm horizontal e verticalmente na parede externa dos edifícios, e servem para os vizinhos trocarem recados e pequenos objetos apenas indo à janela.

“Zendel”: a surpresa que temos ao perceber que duas pessoas de quem ouvíamos falar são na realidade uma só.

“Flinken-dy”: os ruídos confusos de gritos, vozes e outros barulhos que nos fazem perceber que alguma coisa anormal está acontecendo num lugar que não podemos ver.

“Liumphs”: conchas acústicas desmontáveis que os poetas ambulantes afixam às costas quando cantam ao ar livre.

“Allybess”: aves criadas no cativeiro e que, mesmo soltas da gaiola depois de grandes, só conseguem voar nas vizinhanças da casa onde cresceram.

“Colludrys”: combinação de alimentos inofensivos mas que, consumidos juntos, podem se tornar um veneno mortal.




sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

2795) FC e linguagem (17.2.2012)



(William S. Burroughs)

As fórmulas para escrever bem são como as fórmulas para ser feliz. A gente lê, entende tudo, e fica na mesma. Por que? E por que motivo existem tantas oficinas literárias, cursos universitários de escrita criativa, e assim por diante? A multiplicação (e a variedade) das fórmulas mostra apenas que não existe uma fórmula, mas cada escritor ou crítico foi capaz de perceber uma atitude, um método ou um truque que foi de utilidade para alguém no passado. E o presente continua na mesma, porque o que ajuda alguém a escrever não é uma fórmula; talvez seja a combinação única de uma dúzia de fórmulas que se harmonizam com seu jeito pessoal de pensar e de trabalhar.

Richard Harding David (1864-1916) disse: “O segredo da boa escrita é dizer uma coisa antiga de uma maneira nova ou uma coisa nova de uma maneira antiga”. Pode-se substituir coisa por idéia, e maneira por estilo. Esta frase, curiosamente, ecoa o que dizem muitos teóricos da ficção científica, para os quais temática de FC e técnica vanguardista não combinam. Por que? Porque a dose de novidade na temática FC é muito grande, requer do leitor, a partir da página 1, que se familiarize com outro planeta, outra civilização, outros hábitos, outra tecnologia... Existe uma estranheza fundamental na matéria descrita, e se a essa estranheza soma-se algum tipo de estranhamento na linguagem, o leitor se vê duplamente perdido.

Claro que poderíamos questionar isto exibindo muitas obras bem sucedidas de FC que têm uma linguagem no mínimo anticonvencional, como os romances de William S. Burroughs, mas não consigo imaginar toda a FC do mundo sendo produzida com aquela linguagem. A linguagem padrão da FC tem sido o romance tradicional, que é narrativo, descritivo e digressivo. A montagem dos capítulos, a organização dos parágrafos, a pontuação, tudo isso em mais de 100 anos tem se mantido muito homogêneo tanto na FC mais comercial e ingênua quanto na FC mais intelectualizada e inovadora. A sintaxe do romance clássico se expõe e se oferece para ser contaminada pelas doses vertiginosas de novidade e estranheza da história a ser contada, das “dramatis personae” convocadas à ação (alienígenas na raiz da palavra) e dos ambientes que o leitor é forçado a criar em sua própria mente, porque não correspondem a nada que ele tenha presenciado.

A FC tende a ser (embora jamais o seja 100%) um caso de “uma coisa nova de uma maneira antiga”; e isto é parcialmente confirmado pelo seu inverso, a literatura vanguardista, que em geral aborda temas e cenários banais ou minimalistas, para que o impacto da linguagem não sofra a interferência de um impacto de conteúdo.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

2794) K: The Game (16.2.2012)




(The Modern Word)

Recebi anteontem o pacote da TrialAndError Inc., contendo a versão 1.0 de K, o game mais badalado desta estação. Como de hábito, mergulhei direto na experiência do jogo em si, sem consultar o material preparatório. Faço isto porque um game deve se assemelhar à vida, na qual desembarcamos sem ter feito cursinho ou treinamento. E não me arrependi. 

Um exame perfunctório da caixa me deu a idéia de que o jogo se concentrava na obra O Processo, mas no momento em que penetramos naquele labirinto percebemos que (possivelmente) toda a obra de Kafka irá se recriar diante dos nossos olhos, nas ruas de uma Praga em tons alternados de azul-chumbo, sépia-ferruginoso, cinza-grão, mogno-em-chamas.

A peregrinação de Joseph K pelos corredores do poder não se dá sem uma série de confrontos físicos (os dois agentes que o perseguem são especializados em castigos corporais, nos quais o jogador incorre com frequência, aleatoriamente). 

Demorei um pouco até perceber que a morte por degola num terreno baldio é uma possibilidade recorrente neste jogo, e, quando ocorre, é habilmente sucedida por um despertar em que o jogador acorda sob a forma de Gregor Samsa. 

E necessita cumprir uma série de tarefas, e vencer uma série de obstáculos, até conquistar o direito de acordar de novo como Joseph K na manhã de sua detenção, e começar de novo.

O Castelo aparece como um labirinto transdimensional que exige do jogador o máximo de acuidade de vista, reflexos rápidos, perfeita coordenação motora, além da capacidade de travar um diálogo metafísico e consequente enquanto corre ao longo de corredores-moebius sem fim. 

Respostas erradas às perguntas dos prepostos do Conde de West-West aumentam a ambiguidade geométrica dos abismos em forma de fractal.

A sutileza e a indireção estão presentes no jogo: a fase Samsa é um game em primeira pessoa em que não vemos o inseto que somos (não há espelhos na casa), e temos que adivinhar (sofridamente) como ele se locomove, se alimenta. 

Na fase “Colônia Penal” (um dos castigos alternativos para K), não sabemos quais as frases tatuadas na pele do condenado, mas todos poderão lê-las e agirão de acordo (sem nos explicar nada). 

A Muralha da China é outro labirinto interminável, em que é preciso montar citações literárias como tijolos num texto coerente, até fazer surgir na Muralha alguma das portas que levam ao Castelo. 

É um jogo intensamente literário; obras dos autores favoritos de Kafka podem ser lidas ou consultadas nas onipresentes estantes. Um dos universos-de-imersão mais fascinantes e inesgotáveis que a indústria dos games nos proporcionou nesta década de 2050. Cotação: 5 estrelas.






quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

2793) Drummond: “Quadrilha” (15.2.2012)



(La Ronde, de Roger Vadim)


Acabou se tornando um dos poemas mais populares de Drummond. Do ponto de vista técnico é quase tão antipoético quanto “No meio do caminho”, o poema-símbolo do modernismo, que foi execrado e endeusado, sempre, além do que era necessário. “Quadrilha” é ainda menos poético, porque do ponto de vista técnico quase não usa a famosa quebra de linha que ficou valendo como sinalização universal de que aquele texto, rimado ou não, metrificado ou não, quer ser lido de outro jeito.

Diz o poema: “João amava Teresa que amava Raimundo / que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili / que não amava ninguém. // João foi pra os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história”. Tornou-se popular porque esses minúsculos fragmentos da epopéia amorosa nos são intuitivamente familiares. Sabemos quem são, com outros nomes, essas pessoas que cumprem o destino comentado com certa amargura no mote de cantoria “No amor, tem um que ama / e um que se deixa amar”. Ou cantado com voz dolente e chorosa por Raul Sampaio: “Quem eu quero não me quer, quem me quer mandei embora...”

Se a primeira estrofe é romântica, a segunda é modernista pela irrupção do profano no sagrado, da banalidade da vida real sobre os sentimentos de quem quer que seja. Amar é um estado de espírito, um “verbo intransitivo” como sugeriu Mário; mas não importa quem ama ou quem é amado, a vida chega com seus conventos, seus Estados Unidos e tudo o mais. Boa noite, senhor amor, até a volta, tenho algo mais importante pra fazer.

O poema lembra também a peça de Arthur Schnitzler, Reigen (1897), que ficou conhecida como La Ronde após o filme rodado na França em 1950 por Max Ophuls (houve outra adaptação, por Roger Vadim, em 1964). É a história de encontros sexuais entre casais sucessivos: a prostituta e o soldado, o soldado e a criada, a criada e o jovem cavalheiro, o jovem cavalheiro e a jovem esposa, etc. A mecânica é diferente do poema de Drummond, mas em ambos existe a solerte sabotagem do amor como o casamento de duas almas predestinadas a se encontrarem, uma história escrita nas estrelas. No Modernismo, o amor é uma atividade social, uma forma de conhecer pessoas, uma fonte de curiosidade e de revelações. E uma fonte de banalidade e tédio, como ameaça ser a vida de Lili através de seu casamento com um sujeito indicado pelo nome de “J. Pinto Fernandes”. Este personagem que desce sobre o Romantismo como um golpe de cutelo era “Brederodes” na versão inicial do poema; ficou menos galhofeiro e mais arrepiantemente real.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

2792) Cinema de autor (14.2.2012)



(Terry Gilliam)
 

Num texto publicado por Filmmaker, the Magazine of Independent Film, um dos meus diretores preferidos, Terry Gilliam, dá seus conselhos (um tanto heterodoxos, felizmente) sobre a arte de fazer cinema. Comentarei alguns, principalmente aqueles de que discordo. (Conselho óbvio entra por um ouvido e sai pelo outro, não é mesmo? “Tenha boas idéias... Transmita segurança diante da equipe... Não estoure o orçamento...”). 

Gilliam é um dos autores que me levam ao cinema só para curtir a desbragada e irreprimível criatividade visual dos filmes que faz. Tudo nele é exagerado, barroco, delirante, cheio de coisas que dá vontade de ficar o tempo inteiro voltando a imagem e esquecendo a história só para curtir aquele quarteirão de casas impossíveis, ou aquele figurino cheio de deliciosos anacronismos, ou aquele monstro feito de papelão e pixels. Quantos diretores há, no cinema comercial de hoje, com a mesma verve visual e a mesma sem-cerimônia? Tim Burton, Jean-Pierre Jeunet e mais alguns poucos. 


Diz Gilliam: 

“Cinema de autor já era, o que vale agora é cinema de filtro. Ser um autor de filmes é o que a gente sonhava nos anos 50 e 60, quando a idéia do cineasta autor chegou neste planeta. E as pessoas continuaram usando esse termo, e o usam com meus filmes porque acham que eles são muito pessoais, então me dão todo o crédito e dizem que sou um autor. E eu digo que não; a realidade é que eu sou um filtro. Sei o que estou tentando fazer, mas tenho à minha volta uma porção de pessoas que são meus amigos e não acatam ordens e não me dão ouvidos, mas têm idéias próprias. E quando eles vêm com uma boa idéia, se é uma que se encaixa no que estou tentando fazer, eu a uso. Assim, o produto final é uma colaboração de uma porção de pessoas, e eu sou o filtro que decide o que entra e o que não entra no filme”. 

Isso que Gilliam descreve, contrapondo ao cinema de autor, é justamente – no meu modo de ver – o cinema de autor. Um autor não é um ditador que dá ordens misteriosas, bate o chicote, e manda refazer a cena cem vezes. (Há autores assim – Kubrick, p.ex. – mas essa é uma distorção do conceito.) 

Tanto em movimentos fortemente autorais como a Nouvelle Vague e o Cinema Novo quanto nos momentos mais harmoniosos dos grandes estúdios de Hollywood (quando diretores, produtores e roteiristas concordavam em fazer o mesmo filme) o diretor não é um distribuidor de idéias de cima para baixo, mas um arregimentador de idéias em torno, um catalisador da criatividade alheia. (Mas Terry Gilliam conhece o mundo do cinema melhor do que eu, e pode até ser que o Autor Que Dá Chilique seja estatisticamente mais frequente.)







domingo, 12 de fevereiro de 2012

2791) O santo e o culto (12.2.2012)



É uma história tão espalhada por aí que pode ser considerada um mito menor. Uma narrativa cuja estrutura básica surge em diferentes culturas, em qualquer época: a vida de um sujeito cujas façanhas o tornam famoso e respeitado, e que um belo dia morre (geralmente na guerra) ou desaparece. Em torno de sua memória cria-se um culto que acaba tomando proporções inesperadas. Outro belo dia, o Herói, que na verdade não tinha morrido, reaparece. E vê com espanto (ele volta incógnito, sem que ninguém o reconheça) que está sendo cultuado de uma maneira totalmente equivocada. O futuro celebrizou uma pessoa completamente diferente de quem ele julga ser.

A novela Roque Santeiro (Dias Gomes e Aguinaldo Silva) utilizou esta situação básica, fazendo com que Roque (José Wilker), que é na verdade um espertalhão, se divirta com o culto que se criou em torno dele, endeusado como se fosse um santo. Esta parece ser uma narrativa muito presente na memória nordestina. Em Livro dos Homens, de Ronaldo Correia de Brito, acontece algo parecido: encontra-se no rio o cadáver de um homem, bem vestido, morto a facadas. Pessoas piedosas o sepultam, começam a rezar junto à cova do morto desconhecido. Isso se torna um hábito local, e daí a alguns anos aquela sepultura recebe enormes romarias de peregrinos. Um dia, alguém chega ali e descobre que a pessoa que está sendo adorada é um homem que cometeu um crime e que foi morto por vingança.

A ficção científica deu sua contribuição a este mito com Um Cântico para Leibowitz (1960) de Walter M. Miller Jr., e com Limbo (1952) de Bernard Wolfe. Neste, um cientista, Martine, é dado como morto durante uma guerra mundial. Seus manuscritos científicos, encontrados por amigos, tornam-se a base para a reconstrução do mundo futuro, onde a ânsia pacifista leva os homens a amputar os braços e pernas e substituí-los por próteses. Acontece que Martine está vivo; ele passara 20 anos perdido entre os selvagens de uma ilha remota, e quando consegue voltar para a civilização fica aterrorizado com o mundo que encontra. Fica mais surpreso, e furioso, quando descobre que esse mundo tem seus escritos (mal interpretados) como um verdadeiro Evangelho. O resto do livro é sua tentativa para destruir esse mundo do qual é o involuntário profeta.

Limbo é o único livro de FC de Bernard Wolfe, escritor que teve uma vida aventureira, tendo sido inclusive guarda-costas de Leon Trotsky no México, e é uma interessante retomada desse antigo tema. Todo culto a um morto é um mal-entendido, e em muitos casos é também uma traição a esse morto, que, se retornasse, não se reconheceria na imagem que fazem dele.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

2790) O charme das ruínas (11.2.2012)




Multiplicam-se na Internet os saites de fotos de lugares abandonados. São hospitais, hotéis, aeroportos, fábricas, colégios... Edifícios enormes e vazios, esquecidos, invadidos pelo mato, perdendo teto e paredes com a ação do vento e da chuva. 

Muitos ainda guardam resíduos da presença humana: roupas nas gavetas, quadros e fotos nas paredes, objetos pessoais ou equipamento técnico deixados em cima da mesa. 

É como se de um instante para outro todas as centenas de pessoas que moravam ou trabalhavam ali tivessem se evaporado, e o edifício, subitamente oco, iniciasse seu processo irreversível de deterioração.

Num texto antigo neste coluna (http://bit.ly/wyYHSF) escrevi sobre os fotógrafos que visitam esses lugares e captam o seu charme decadente. Um lugar em ruínas é um espaço humano esvaziado de seu conteúdo humano (do ponto de vista físico – as pessoas), e que por isso mesmo torna precioso qualquer conteúdo humano (=cultural) remanescente. 

Uma boneca de criança no chão de um hotel cheio de gente é apenas um boneco perdido que precisa ser devolvido à dona; a mesma boneca no corredor de um hotel desabitado e invadido pelo mato ganha um ar de tragédia irremediável.

Caetano Veloso observou, numa canção, que “no Brasil tudo ainda é construção e já é ruína”. Vemos num Ciep inacabado, tomado pelas ervas daninhas, um pedaço do futuro (o Ciep que iria ser concluído e estaria cheio de crianças) e do passado (em algum momento do passado o Ciep “morreu” e quedou-se entregue a si mesmo). 

Usa-se bastante hoje (inclusive na ficção científica) o termo “heterotopia”, ao que parece proposto por Michel Foucault, para designar espaços/lugares contraditórios, onde vigoram leis diferentes das que vigoram no espaço urbano comum. Um hospital é uma heterotopia; um hospital abandonado e em ruínas o é duplamente. A presença humana é ressaltada pela ausência de humanos, deixando apenas pistas espalhadas.

Como o Hotel Overlook de O Iluminado (Stephen King, Stanley Kubrick) cada uma dessas fábricas, desses aeroportos, quartéis, essas construções parecem saturadas de presenças invisíveis. E pela ameaça da intrusão do fantástico no cotidiano. Assemelham-se aos navios como o “Mary Celeste”, que são encontrados à deriva, com tudo intacto, mas sem o menor sinal dos passageiros e tripulantes. 

Cada um desses prédios nos dá o vislumbre do que será um dia nosso planeta, quando a primeira nave alienígena pousar aqui. Observarão nossas enormes construções vazias e perguntarão: “O que aconteceu com eles? Por que se extinguiram tão depressa, justo quando tinham nas mãos uma tecnologia capaz de resolver todos os seus problemas?”.








sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

2789) Endeusando livros (10.2.2012)




A imprensa está alvoroçada com a aproximação da noite do Oscar, quando os coleguinhas acompanham a premiação da Academia e se envolvem em deblaterações sobre quem merecia mais a estatueta X – se era o milionário Y ou a prima-dona Z. Impressionante como o mundo leva a sério esses prêmios. Repetidas vezes, em palestras e debates, vem gente me perguntar: “Você disse que o filme Tal é bom. Se é, por que não ganhou o Oscar?”. E olhe, não é preconceito meu contra a indústria cultural norte-americana, ou melhor, é preconceito sim, porque se o meu conceito de cinema bater de frente com o conceito deles a nuvem de fumaça vai ser enxergada lá em Hiroshima; mas tenho o mesmo preconceito com o Prêmio Nobel de Literatura (não dou palpite nos demais, não entendo), que é concedido por um grupinho de velhotes fora da realidade, e de vez em quando cai na cabeça de um bom escritor pelo simples fato de que (felizmente) o mundo é cheio de bons escritores, e muitos deles contam com boa assessoria de marketing. A relação do Oscar com o cinema e do Prêmio Nobel com a literatura é a mesma que os colunistas sociais mantêm com a população de uma cidade.

Muito bem. Encerrada a diatribe, vamos ao assunto. Concorre este ano ao Oscar este curta-metragem charmoso e delicado, The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore (http://tireotubo.blogspot.com/2012/02/curta-metragem-indicado-ao-oscar-que-e.html). É um filme de animação de técnica mista, com menos de 15 minutos, sobre um rapaz que, arrebatado de sua casa por um furacão, vai parar num lugar remoto onde os livros são criaturas vivas, que não falam mas se comunicam com ele de modos variados. Inspirado (ao que se diz) pelo tufão que destruiu a cidade de Nova Orleans, o curta é uma parceria entre o ilustrador William Joyce e o animador Brandon Oldenburg, ambos da Louisiana.

É um filme feito por quem ama os livros, para quem ama os livros. Quem não gosta de livros vai vê-lo com o mesmo misto de tolerância e desinteresse com que nós observamos as pessoas que colecionam flâmulas de time de futebol ou moedas antigas. À medida que o tsunami digital (ou, em vista da origem do curta, o Katrina digital) se ergue e invade ruas, cidades, corações e mentes, o livro vai sendo cada vez mais cultuado como objeto mítico, como símbolo, como uma mistura de criatura viva e de semideus que tem todas as respostas. Talvez o mundo digital, ironicamente, transforme o livro, daqui a um século, no objeto de um culto religioso. Estarão cobertos de inscrições sagradas como os hieróglifos egípcios, que ninguém consegue ler mas admite que contém verdades transcendentais.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

2788) A criação inconsciente (9.2.2012)



(Jon Kuta, "Schizophrenia")

Em sua palestra na revista eletrônica Edge (http://bit.ly/vmEGf8), o biólogo Mark Pagel comentou: “Eu gostaria de sugerir que os nossos processos criativos estão bem próximos de ser uma coisa aleatória. Nossos cérebros podem estar funcionando num nível subconsciente, criando idéias o tempo todo, o tempo inteiro, sem parar, e outra parte da nossa mente subconsciente está testando essas idéias. E aquelas que acabam se infiltrando em nossa consciência podem ser as que aparentam estar bem formadas, mas isto é porque elas podem ter passado através de um filtro, juntamente com uma porção de outras idéias randômicas, antes de chegar ao nosso consciente”.

Já deve haver por aí um mapeamento desse processo. Acompanhamento elétrico da atividade cerebral, mas nada que nos faça dizer com segurança coisas como: “Neste momento, ele estava à procura de um advérbio para completar uma frase”, ou “Ele está visualizando a rua em que mora e tentando imaginar se o trânsito vai estar bom, quando voltar para casa à noite”. Ainda não chegamos a esse ponto, mas não chega a ser impossível.

A atividade criadora, no entanto, parece ser permanente nos andares do cérebro feitos da Matéria Escura do universo. Einstein, Poincaré, Galileu, Kékulé, Descartes e outros já tiveram revelações inesperadas, caiu-lhes do céu a resposta que buscavam longamente a um problema científico ou matemático. O sujeito maltrata o juízo durante semanas ou meses em busca de uma resposta, e nada dela aparecer. Aparece quando ele está subindo num trem ou dormindo. Por que? O trabalho inconsciente, a preparação febril de dezenas de respostas que são avaliadas por um processo intermediário, exigente, paciente, que só deixa passar até a consciência aquelas idéias que lhe parecem ter algum potencial.

Chamar esse processo de “inspiração artística” idealiza sua natureza e dá a entender que ao artista basta esperar pelo inconsciente. Ora, o processo é aleatório, mas passa por muitos filtros. O inconsciente é preguiçoso e desorganizado. Botá-lo pra trabalhar pra gente demanda um bocado de esforço, porque ele só quer trabalhar para si mesmo. Essas iluminações repentinas só acontecem a quem está virando noite, fazendo serão, quebrando a cabeça em busca de uma resposta. A resposta, que parece cair do céu, sobe à superfície no meio desse caldo borbulhante de combinações, associações de idéias, hipóteses meio absurdas, tudo isso comparado, descartado, resgatado, escolhido, trazido à consciência. “Inspiração” é o resultado de muito trabalho duro. Não é por ser inconsciente que é menos trabalhoso. O inconsciente funciona melhor sob pressão.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

2787) Traduções de Poe (8.2.2012)



Quando organizei minha antologia de 2010, Contos Obscuros de Edgar Allan Poe, minha idéia era publicar em português alguns contos que, apesar de muito bons, eram menos conhecidos do que outros. No prefácio, indiquei quais eram os contos que me pareciam os mais traduzidos no Brasil, e que, dada a proposta da antologia, seriam os primeiros a ficar de fora. Já me perguntaram “em que dados eu baseei minha pesquisa”. Em nenhum. Eu olho o índice de toda coletânea de Poe que encontro, vejo quais os contos incluídos, e guardo vagamente na memória. Não anoto, não faço tabulação quantitativa. Ou seja, não é uma pesquisa científica.

Quem fez essa pesquisa científica (se não totalmente, pelo menos mais do que a minha) foi a tradutora Denise Bottmann, cujo blog sobre Poe (eapoebrasil.blogspot.com) infelizmente só vim a conhecer depois do livro lançado. Pior para mim, melhor para o leitor, que tem nesse blog informações mais confiáveis do que as minhas – e mais aguerridas, porque a dona do blog desce com-água-e-lenha em cima de traduções falsificadas, plágios, edições espúrias e o escambau.

Minha lista dos contos mais traduzidos foi (por ordem cronológica): “Ligéia” (1838), “William Wilson” (1839), “A Queda da Casa de Usher” (1839), “Os Assassinatos da Rua Morgue” (1841), “A Máscara da Morte Rubra” (1842), “O Poço e o Pêndulo” (1842), “O Retrato Oval” (1842), “O Escaravelho de Ouro” (1843), “O Coração Revelador” (1843), “O Gato Preto” (1843), “A Carta Roubada” (1844), “O Barril de Amontillado” (1846).

A lista de Denise Bottmann, por ordem do maior número de traduções: 1) “O Gato Preto, com 34 traduções; 2) “A Carta Roubada”, com 32; 3) “Os Assassinatos da Rua Morgue”, com 29; 4) O Escaravelho de Ouro”, com 24; 5) “O Poço e o Pêndulo”, com 21; 6) “O Barril de Amontillado” e “O Coração Revelador”, com 19; 7) “A Máscara da Morte Rubra”, com 18; 8) “Berenice”, “A Queda da casa de Usher” e “O Retrato Oval”, com 15; 9) “O Demònio da Perversidade” e “William Wilson”, com 13; 10) “Hop Frog”, “O Homem da Multidão”, “Manuscrito Encontrado Numa Garrafa” e “O Mistério de Marie Rogêt”, com 12 traduções cada.

São 17 contos, que incluem quase todos os que avaliei no golpe de vista, e alguns que me surpreenderam. Eu jamais imaginaria que contos como “Hop Frog” ou “Manuscrito encontrado num garrafa” fossem tão traduzidos. Este último, aliás, é o único dos meus “contos obscuros” que aparece na lista dos “mais traduzidos” de Denise Bottmann. E me surpreende que um conto como “Ligéia” não esteja entre os mais traduzidos. Sua tradução mais recente é minha (2011), na antologia Contos Fantásticos de Amor e Sexo (Ímã Editorial, Rio).

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

2786) O arquivo do DB (7.2.2012)



O fechamento do “Diário da Borborema” (onde tive meu primeiro emprego, de 1965 a 1967) e de “O Norte”, já era temido por algumas pessoas. O DB estava cumprindo uma trajetória semelhante à de outros jornais que acabaram: perdendo assinantes e anunciantes, diminuindo de tamanho, perdendo importância... Enfim, não adianta agora lamentar um processo que durou anos. Há duas questões, pós-fechamento, que são essenciais. A primeira é o que vai acontecer com os colegas que trabalhavam nos jornais – se vão ter seus direitos trabalhistas respeitados e atendidos. Espero (claro) que sim. A outra é o que vai ser feito do patrimônio imaterial do jornal.

O patrimônio material, claro, são os móveis, equipamentos, instalações, máquinas, etc. O patrimônio imaterial do jornal, no entanto, é a história que ele construiu através de 54 anos. Fala-se que a direção dos Diários Associados teria anunciado a transferência, para Brasília, da coleção encadernada do jornal; e que iria incinerar um arquivo com milhares de fotografias. Acho isso tão absurdo que não acredito, mas, por via das dúvidas, há um movimento para que este material, ao invés de ser levado embora (ou destruído), fique em Campina Grande. Os estudantes, professores, historiadores, pesquisadores, sociólogos e jornalistas do futuro veriam nisto um gesto à altura de Assis Chateaubriand.

Os Diários Associados devem isto à cidade e à comunidade que durante mais de meio século lhes forneceu mão de obra, profissionais qualificados, e um mercado que proporcionou à empresa lucros que vão muito além da simples venda em bancas. Campina lhes forneceu a razão de ser de uma empresa jornalística, que é acoplar-se a uma cidade, viver sua vida, sentir o seu pulso, dar voz às suas idéias e suas vontades. Cidade e empresa são parceiros na produção de um jornal. Sem o jornal, a cidade não teria um espelho onde perceber seus problemas e focalizar suas energias. Sem a cidade, o jornal sairia em branco.

Parcerias assim acabam às vezes de forma melancólica, como parece ser o caso. Mas os 54 anos de notícias, de debates ideológicos e culturais, de documentação histórica, pertencem hoje muito mais à cidade do que à empresa, que já extraiu dessa fonte todos os lucros que pôde e agora, minguando os lucros, decide fechar a fonte. Os arquivos do “DB” pertencem à cidade porque há na cidade quem valorize mais o “Diário da Borborema” do que a própria empresa que o criou e agora o desfez. A atitude mais ética, mais sensata e (a longo prazo) mais compensadora para a empresa seria a de deixar à cidade o que pertence a ela: sua própria História.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

2785) Os mandamentos de Henry Miller (5.2.2012)


(Henry Miller) 

Poucos indivíduos terão sido tão mentalmente saudáveis quanto Henry Miller. Dos livros dele, com sua mistura de boemia, sexo, crítica social e disponibilidade para curtir a vida, emana a alegria de viver, presente inclusive nos capítulos em que ele descreve a pindaíba financeira em que viveu, ou suas brigas conjugais, ou sua guerra sem fim contra o “pesadelo com ar condicionado”, a vida classe-média nos EUA, a cultura do enlatado e do artificial. 

J. G. Ballard escreveu que ele foi “o primeiro escritor proletário a criar uma literatura pornográfica baseada na linguagem e no comportamento sexual das classes trabalhadoras”. 

Talvez a nenhum de nós ocorresse considerar Miller um escritor proletário, por ele não ser de esquerda. Mas sua ética e sua literatura são a do norte-americano trabalhador, pragmático, sem nonsense, que aprecia os prazeres físicos da vida mas tem leitura e educação suficiente para ver transcendência nas pequenas coisas. 

Ballard o chamou de “Proust das classes trabalhadoras”, aludindo ao seu memorialismo compulsivo. Miller foi talvez o primeiro escritor, lido entre os 20 e os 30 anos, que me fez perceber o ato da escrita como um ato que envolve a totalidade da pessoa, do momento, da vida, de tudo que o cara experimentou, tudo que sabe e não sabe, tudo que teme e deseja, convergindo para aquele instante mágico (este instante mágico, exatamente agora) em que ele dedilha num teclado. 

Descobri lendo Miller que escrever não era apenas contar uma história legal ou produzir uma frase bem feita. Escrever era algo tão físico-mental e tão atávico quanto fazer sexo. 

Miller preparou nos anos 1930, quando escrevia “Trópico de Câncer”, uma lista de onze mandamentos do escritor. 

 “1) Trabalhe numa coisa de cada vez, até terminar. 

2) Não comece nenhum livro novo, e pare de juntar material para Primavera Negra [o outro livro que ele escrevia na época]. 

3) Não fique nervoso. Escreva com calma, alegremente, incansavelmente, com o que tiver à mão.  

4) Escreva de acordo com o que programou, e não de acordo com seu estado de espírito. Pare na hora marcada. 

5) Mesmo quando você não consegue criar, pode escrever. 

6) Cimentar um pouco por dia, ao invés de adicionar fertilizantes. 

7) Seja um ser humano: encontre as pessoas, saia de casa, beba se estiver a fim. 

8) Não seja um burro de carga. Só escreva com prazer. 

9) Descarte o programa quando lhe convier, mas volte a ele no dia seguinte. Concentre. Focalize. Corte. 

10) Esqueça os livros que gostaria de escrever, e pense somente no que está escrevendo. 

11) Escreva sempre, antes de tudo. Pintura, música, amigos, cinema, tudo isto vem depois”.









sábado, 4 de fevereiro de 2012

2784) É de graça? (4.2.2012)




("Zero Cruzeiro", de Cildo Meireles, 1977)

Como meus leitores devem saber, eu tenho um blog, o Mundo Fantasmo, onde republico estes artigos. Cada vez que posto um artigo no blog, eu escolho uma imagem para servir de ilustração. Pego na Internet (ou escaneio dos meus livros e revistas) uma foto, uma pintura, um desenho, uma cena de filme, um cartum... 

Ponho lá no blog, e, quando tenho a informação (nem sempre a gente tem) ponho o autor do desenho, e, quando encontro, um link para o trabalho dele. Porque se o leitor ficar interessado no que viu, deixa pra lá meu artigo, clica no link e vai ver mais desenhos do cara. Que, assim, conquista por meu intermédio mais um admirador.

Eu deveria pagar-lhe por isso? Acho que não. Até hoje ninguém me cobrou, nem pediu que eu retirasse a pintura ou a foto. Se pedir, eu tiro. Se cobrar, não pago, por mais que admire o cara. 

Não pago porque não sou rico e não ganho nada com o blog, é uma atividade “divulgatória”, para que as pessoas leiam meus textos com mais comodidade. Eu espero que o sujeito concorde em expor seu desenho de graça porque eu próprio estou expondo meus textos de graça. Aquilo está ali não por comércio, mas pelo interesse de dar um breve prazer intelectual e estético ao leitor.

E acontece o mesmo comigo, porque já perdi a conta dos blogs, páginas, portais, revistas online e coisas parecidas que reproduzem meus artigos. De vez em quando me chega um pedido: “Queremos republicar o artigo tal, gostamos muito”. Peço que indiquem a data (dado importante), e deem o devido crédito ao blog Mundo Fantasmo (onde vieram a conhecer os meus textos) e ao Jornal da Paraíba, que me paga para escrevê-los, e sem o qual nada disso aconteceria. 

Os artigos são republicados aí, Brasil afora, e o sismógrafo da economia não acusa o pouso de uma borboleta.

O princípio básico da cessão de textos ou obras em geral deveria ser: “Se a utilização é gratuita, cedo de graça. Se alguém vai ganhar algum dinheiro com ela, quero ganhar minha parte”. 

Eu, como criador de produtos culturais, quero da Lei ter o direito de decidir o quê que eu cedo de graça e o quê que eu cobro. 

Quero da Lei o direito de proibir o uso de um artigo meu, um poema, uma música minha, se eu achar que essa utilização não me interessa. 

Quero da Lei ter o direito de dizer: “Cobro tanto”, desde que não prejudique a terceiros. 

Não quero ser obrigado a ceder algo de graça, quando não me interessa. Nem ser obrigado a cobrar de alguém que não tem como me pagar – artistas empresariados muitas vezes querem ceder algo e seus empresários os impedem, às vezes o pedido nem chega ao artista. 

É essa impossibilidade de dar a palavra final que devemos combater.






sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

2783) Nara Leão (3.2.2012)




Neste mês de janeiro completaram-se 70 anos do nascimento de Nara Leão, e, como sempre acontece com quem morre jovem, ficamos tentados a imaginar como seria ela com essa idade. O rosto, o cabelo, a voz, o repertório...

O sorriso talvez continuasse igual. Aquele sorriso tímido que ela mostrava, meio encabulada, desviando o olhar para pensar melhor; mas deixava o sorriso segurando o interlocutor até que o olhar viesse de volta.

Nara foi essa fórmula terrível que a imprensa criou, “porta-voz de uma geração”. As pessoas assim chamadas geralmente se sentem desconfortáveis com um título tão pomposo, porque na verdade não estão preocupadas em falar por geração nenhuma. Falam por si, por um grupo de amigos, por algumas outras pessoas que acham importantes.

Sabem que nenhuma geração é homogênea ou unânime, até porque uma coisa que os “porta-vozes de geração” têm em comum é serem ferozmente combatidos e incompreendidos, também, por gente de sua idade.

O saite criado em sua homenagem (www.naraleao.com.br) traz um material variado, com links para todos os seus discos. Não dá para baixar as músicas, mas dá para escutá-las em “streaming” enquanto o saite fica aberto na tela. E aqui estou eu passeando pelos anos em que Nara era aquela musa carioca, inatingível – e ao mesmo tempo tão próxima.

Se os anos 1960 tiveram uma única coisa boa talvez tenha sido a redenção das mulheres não-deusas, não-pinups, não-gostosonas. Meninas miúdas, de cabelinho chanel, dentes um pouco salientes, vestindo blusas de gola rolê (que a gente chamava “gola olímpica”), começando a ousar minissaias ou calças Lee. Meninas sem nada de Ursula Andress ou Rachel Welch, mas meninas reais, que tocavam violão e tomavam refrigerante, cantavam canções em que apareciam os assuntos das primeiras páginas dos jornais...

Eram as meninas da nouvelle vague (Chantal Goya, Anna Karina), as meninas do “free cinema” inglês (Rita Tushingham, Julie Christie), as meninas da Bossa Nova. Nenhuma era uma vamp, nenhuma era símbolo sexual; por isso mesmo, aos nossos olhos adolescentes elas não tinham relação com nossas tórridas fantasias. Pertenciam à nossa vida, eram reais e possíveis, e eram um ensinamento.

Pois é... Não falei da Nara que cantava os barracos, as favelas, os camponeses, as donas de casa, os capoeiristas. Que passou pela Bossa Nova, pela MPB rural-esquerdista, pelo tropicalismo, recantou a Jovem Guarda e os “standards” norte-americanos (está tudo lá para se ouvir, faixa por faixa). E um dia parou de cantar, saiu de cena sem chamar a atenção e deixou o sorriso tímido tomando conta da gente, com uma quase promessa de que ela voltaria logo.






quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

2782) Mudando de gênero (2.2.2012)





A cultura do remanejamento, da intervenção e da releitura tem produzido algumas obras memoráveis, como aquelas misturas entre os romances de Jane Austen e as histórias de zumbis. Não é tão novo assim, e mesmo aqui no Brasil lembro a recente intervenção feita por Glauco Mattoso no clássico A Pata da Gazela de José de Alencar, que o iconoclasta-mor da Paulicéia transformou em A Planta da Donzela, alternando os trechos alencarianos com eruditas digressões sobre a adoração sexual dos pés (podolatria?). É a mesma cultura do “mash-up” (que poderíamos traduzir livremente como “mexa”). Seu produto mais simbólico é a obra do DJ Danger Mouse, que misturou as músicas do White Album (1968) dos Beatles e as do Black Album (2003) de Jay-Z, produzindo o seu Gray Album (2004).

Agora, a escritora Kate Harrad lançou através de seu blog Fausterella uma experiência (ver: http://loveandzombies.co.uk/genderswitching/) que consiste em pegar um texto clássico e inverter o sexo dos personagens, tornando homem quem era mulher e vice-versa. Ela exibe exemplos retirados de Jane Austen, de G. K. Chesterton (com uma detetive chamada Sister Brown, ao invés do clássico Padre Brown) e principalmente das aventuras detetivescas de duas grandes amigas, Shirley Holmes e Jane Watson. Destas últimas, Kate fornece textos completos (em inglês, claro) dos contos “Um escândalo na Boêmia” e “O homem do lábio torcido”.

Kate comenta que mantém o texto original, salvo no que se refere ao sexo dos personagens. Fica engraçado ler os longos diálogos entre Miss Holmes e Mrs. Watson (pois Jane tem marido), as duas discutindo as mesmas questões dedutivas a que nos acostumamos, mas que agora adquirem um viés completamente inesperado quando imaginamos o apartamento de Baker Street e duas damas vitorianas conversando sobre crimes enquanto fumam cachimbo e tocam violino.

Kate Harrad fornece um link para o saite “regender.com” (http://regender.com/index.html), que se oferece para mudar o tratamento masculino ou feminino de qualquer página da web fornecida. O saite propõe estas questões: Como seria o mundo se os sexos trocassem de posição? Como seria ele, se o inglês tivesse pronomes que não indicassem o gênero? Como seria ele se a língua o inglesa identificasse raças tal como identifica os sexos? Para oficinas e grupos literários isto pode ser um exercício para avaliar plausibilidade, habilidade técnica, preconceitos inconscientes e embutidos, adequação do diálogo ao personagem, além de muitos recursos dramatúrgicos que imaginamos serem universais mas que estão condicionados à visão que temos do que é ser homem ou ser mulher.