segunda-feira, 29 de abril de 2019

4461) Cuma?... (28.4.2019)






O que dá riqueza a um linguajar regional, muitas vezes, é algo que vai além da ortografia.

A poesia matuta, regional, etc., desliza com muita facilidade para a mera linguagem comum com grafia precária, mas sem muita ousadia ou criatividade para criar expressões próprias.

Existem palavras que têm um sentido consensual no país inteiro mas em certas regiões cabe ali uma camada nova de significado.  Às vezes por uma pequena quebra de regulamento.

Em Campina Grande usa-se muito o termo “pertubado”, escrito assim, para qualificar certos sujeitos que são mentalmente ou emocionalmente instáveis, aquelas granadas sem pino sempre a ponto de explodir.

O jeito local de falar conhece, sim, o adjetivo padrão “perturbado” (desorientado, inquieto, instabilizado) mas emprega também o substantivo “pertubado”:

– Lá vem aquele pertubado que passa o dia lá na pracinha.

A questão é que um hipotético tradutor estrangeiro poderia confundir os dois usos de formas tão próximas. Poderia até constatar o “erro” numa delas e atribuir a um coloquialismo ou rusticidade. Mas talvez não captasse o uso desse “erro” para individualizar aquele emprego da palavra.

Um termo que pra mim é tipicamente paraibano é o substantivo “muído”, para designar qualquer atividade incessante, repetitiva, que parece nunca acabar e que nunca leva a lugar nenhum. Eu escrevo “moído”:

– Rapaz, bora pagar logo a conta e acabar com esse moído, faz meia hora que vocês discutem com o garçom.

O problema é que escrevendo assim, da maneira aparentemente correta, o leitor é induzido a pronunciar “mOído” ou (pior ainda) “mÔído”, o que distorce totalmente a palavra. Tem que ser um “U” bem tosco e bem sonoro, senão não é a mesma palavra.

– Cheguei atrasado por causa daquele muído de entregar convite e procurar crachá.

“Pertubado” e “muído” são leves corruptelas. As palavras originais fazem parte do repertório nacional da língua brasileira, mas ali naquela região apresentam esse pequeno desvio de sentido, indicado por um pequeno desvio de pronúncia.

Algo parecido, em escala nacional, se dá com a palavra “bêbo” para substituir “bêbado”. Esses acentos diferenciadores já foram podados pelas reformas ortográficas, mas eu insisto em usar, para distinguir do verbo (“eu bebo”).

Muita gente de certa fineza vocabular ergue a sobrancelha diante desse termo, mas eu o considero um dos pilares do idioma. Não vejo sentido em escrever algo como:

– A festa foi ótima, e eu cheguei em casa bêbado.

Nunca!  Tem que ser:

– Eu cheguei em casa bêbo.

Há neste vocábulo uma síncope sutilíssima que reproduz a fala pouco articulada dum bêbo legítimo.

Existe uma pergunta irônica no linguajar nordestino, na verdade uma reação a algo que o interlocutor acabou de dizer. A gente pergunta: “Cuma?...”  O sentido genérico é: “Como? O que foi que você disse?”  Mas se disser “Como?” a fala perde totalmente a função, que é meio irônica, meio provocativa, como que se fingindo propositalmente de analfabeta diante da aparente sapiência do interlocutor.