terça-feira, 3 de abril de 2012

2834) Chico Anysio (3.4.2012)



O humor popular brasileiro tem camadas que foram se superpondo ao longo dos anos, cada uma delas alimentando-se das mais antigas. Primeiro veio o circo (vou logo avisando que esta cronologia é totalmente arbitrária e sem comprovação empírica). Depois veio o teatro, que se tornou uma espécie de circo oficializado (me refiro ao teatro de comédia, ao teatro de revista, ao teatro de humor musical, etc.). Depois veio o rádio, que arrebanhou seus redatores e atores do meio teatral e circense, onde estavam as pessoas que sabiam dizer coisas engraçadas e fazer vozes engraçadas. Depois veio o cinema, com as chanchadas cariocas e as comédias matutas paulistas, tipo Mazzaropi. E por fim veio a TV, que começou como uma espécie de rádio filmado, teatralizou-se à medida que pôde investir no visual, botou o cinema no bolso e acabou atingindo a maioridade como linguagem. Chico Anysio fez parte dessa maioridade, expandindo sua dramaturgia de esquetes e de tipos populares à medida que a TV incorporava novos recursos e novas linguagens.

Chico sempre se cercou de bons redatores (tiremos o chapéu ao finado Arnaud Rodrigues!). Até Lula Queiroga já escreveu para ele. Muita gente do público pensa que um humorista inventa todas as piadas que diz, o que é o mesmo que pensar que todo cantor compõe tudo que canta. Redator de humor é uma profissão ainda mais invisível do que compositor de música popular. Do famoso Bob Hope conta-se que estava na sala de redação quando um dos escritores levantou-se e foi saindo. Hope perguntou onde ele ia, o cara respondeu que ia no banheiro. E ele: “Pode ir, mas continue pensando”. Inventar piadas é um ofício torturante. A piada pode ter um milhão de qualidades: ser original; ser bem escrita; tocar em assuntos importantes; surgir no momento oportuno; etc. Mas se lhe faltar essa única qualidadezinha (ser engraçada), babau tia Chica.

O talento maior de Chico Anysio era a criação de personagens, onde ele elevou ao quadrado uma característica do humor popular, que é lidar com pessoas que se definem por uma característica central e imutável. Fulano é impaciente; Sicrano é maria-vai-com-as-outras; Beltrano dá trambique em mulher boba... Chico era um ótimo imitador de vozes (nem todo ator-humorista tem esse talento) e superpôs essa qualidade ao cacoete do personagem; em cima disso, colocou visual, figurino, etc. incomuns. Num estalo de dedos, havia um transe mediúnico em que ele “recebia” o personagem inteiro, mal lhe vestia a indumentária. O tipo, o texto, a voz, a roupa: com esse quarteto de elementos ele criou 200 personagens e teria criado 2.000 se não fosse para tão longo humor tão curta a vida.