domingo, 6 de novembro de 2011

2707) O ponto e o asterisco (6.11.2011)



Sugiro ao leitor que espere anoitecer (caso esteja lendo isto durante o dia) e saia ao ar livre. Se for uma noite limpa e sem nuvens, verá o céu estrelado. Este céu que há milhares de anos serve de inspiração aos artistas e de desafio aos cientistas... aquela lenga-lenga toda. Todos nós já vimos e admiramos um céu estrelado. Todos sabemos que quando estamos admirando as estrelas com uma moça bonita do lado, basta uma conversa bem encaixada para que as coisas se encaminhem a nosso favor. As estrelas são mágicas.

O que pergunto ao leitor é o seguinte: quando você vê uma estrela, que formato tem ela? Um ponto ou um asterisco? Lembre que a imagem tradicional da estrela, rabiscada a lápis ou gravada num monumento da antiguidade, é de uma espécie de asterisco, algo assim: “*”, uma porção de raios divergentes que se espalham em todas as direções a partir do centro. É assim que as estrelas vêm sendo reproduzidas graficamente desde que o mundo é mundo. Dessa imagem inicial surgiu a estrela do xerife, a estrela de cinco pontas (ou pentaclo) dos magos, a estrela de Davi (de seis pontas), etc.

Para mim isto sempre pareceu natural, porque até os dezenove anos eu olhava para o céu noturno e o via coberto de asteriscos faiscantes. O problema é que quando comecei a usar óculos essa imagem mudou. As estrelas viraram prosaicos pontinhos, de uma nitidez perturbadora, e sem um raio sequer! Vistas com as lentes que corrigiam minha miopia, ficaram mais nítidas, mas graficamente mais pobres. (De vez em quando, quando o céu está bonito, tiro os óculos para ficar míope de novo e curtir melhor aquela beleza).

Duas teorias. Primeira: os antigos eram míopes, e viam as estrelas não em forma de pontos, mas de asteriscos, e as reproduziam assim nas cavernas, nos monumentos, nas “estelas” de pedra esculpida. Uma boa questão oftalmológica: como eram as condições de visão dos homens da antiguidade? Segunda teoria: mesmo quando eles enxergavam as estrelas como pontinhos nítidos, porque tinham visão normal, aceitavam e reproduziam o formato de asterisco proposto pelos míopes. Por que? Porque a imagem do asterisco é graficamente mais rica (tem mais informação visual) do que a imagem de um ponto. Se você desenha um asterisco numa folha de papel e pergunta o que é, muita gente vai dizer que é uma estrela. Se desenha um ponto, poucas pessoas dirão o mesmo. Embora seja uma imagem mais fiel ao modo como um olho normal vê uma estrela, o ponto é uma imagem mais vaga, mais parecida com qualquer coisa, menos específica. Os míopes, somente os míopes, veem a estrela artística; os outros veem a estrela científica e nada mais.

2706) Trabalhar de graça (5.11.2011)




(FunkyPix2)

Existe em alguns artistas um pudor de cobrar pelo próprio trabalho. De certa forma eles se acham privilegiados por serem convidados a fazer algo que lhes dá prazer. Cobrar por aquilo é introduzir no processo um elemento de comércio, frieza, cálculo. Como se alguém dissesse: “Teu prazer é insuficiente, é sem substância, talvez seja falso. Precisas lastreá-lo com dinheiro para que ele não se desmanche no ar”. Ele se julga pago pela mera alegria de ser lido, de ser escutado, de produzir no rosto alheio aquela expressão de deslumbramento e respeito.

Há quem se envergonhe de cobrar porque o “trabalho” em questão não é trabalho nenhum, esforço nenhum. No seu modo de ver as coisas, o pagamento de um trabalho não é a aquisição do produto final, é um ressarcimento pelo esforço e pelo sofrimento de quem produz. E ele se acha “um aproveitador” se tiver de cobrar para tocar mais uma vez as músicas que já tocou milhares de vezes, ou colocar por escrito idéias que de certo modo já estão prontas e arrumadas em sua mente. Não há esforço algum envolvido, nada que justifique uma remuneração por um “trabalho”.

Outros não cobram por uma questão de altivez aristocrática. Até acham que mereceriam receber; até precisam da grana. Mas cobrar os empobrece aos seus próprios olhos: “Sou alguém que precisa de dinheiro”. Trabalhar de graça, por outro lado, os transforma em generosos doadores de si mesmos, em alguém que tem tanto que não se furta a distribuir. São como aquelas tribos que, não satisfeitas de oferecerem banquetes, sentem-na na obrigação de destruir comida, para provarem que não são uns mortos-de-fome.

Há os que não cobram por mera desinformação. Cresceram num meio onde a idéia do trabalho artístico gratuito foi vigorosamente implantada. A arte é sagrada, é pura, não se suja com dinheiro. Viraram artistas por uma vocação sincera, mas sempre à sombra de outra ocupação. Quando ouvem alguém dizer que cobra para dar uma palestra, ficam constrangidos e sem parâmetros. É como o sujeito estar azarando uma garota numa festa e ela dizer: “Quer ir pra cama comigo? É tanto.”

Alguns não cobram por esperteza e tática de sobrevivência, porque dando-se de graça tornam-se credores, e já sabem exatamente como cobrarão a contrapartida num momento futuro. Seu comércio não é o do dinheiro, é o da cortesia, mas é de uma contabilidade implacável. Uma dívida não saldada fará o devedor desprevenido pagar em dobro o que não imaginava estar devendo. Generosidade e gratidão são transformadas nas regras de um câmbio que lida com sentimentos em vez de cifras, mas cuja execução contábil é igualmente precisa e sem perdão.





2705) Os três Cristos (4.11.2011)



Segundo um artigo de Jenny Diski (http://bit.ly/qmGqcA), uma experiência psicológica muito interessante foi a que o Dr. Milton Rokeach realizou em 1959 com três pacientes psicóticos do Ypsilanti State Hospital (EUA). O tema da pesquisa eram os sistemas de crenças das pessoas: “como as pessoas desenvolvem e mantêm (ou modificam) suas crenças de acordo com suas necessidades e com as exigências do mundo social em que vivem”.

Rokeach afirma que existem versões conflitantes sobre o mundo e que as pessoas recorrem a algum tipo de autoridade (religiosa, científica, política, etc.) para se posicionar. Uma das crenças básicas do ser humano é a própria identidade (eu sou eu); e essa identidade é única e personalizada (eu não posso ser você; você não pode ser eu). Ele fez uma experiência em sua própria casa, trocando os nomes de suas duas filhas pequenas; no começo era uma brincadeira, mas quando ele continuou insistindo, com ar sério, as duas foram ficando nervosas e começaram a chorar.

Rokeach reuniu três internos do hospital que afirmavam ser Jesus Cristo. A experiência resultou no livro Os Três Cristos de Ypsilanti (1964). Eles eram Clyde (70 anos), Joseph (58) e Leon (40). Os dois primeiros estavam internados há décadas, o outro há cinco anos. O médico pôs os três para conviverem juntos e executarem juntos pequenas tarefas, sob vigilância constante. (Diz Jenny Diski que era algo parecido ao “Big Brother”, com a diferença de que no BB a alucinação das pessoas é de que são famosas ou interessantes.)

Os três “Cristos” desenvolveram uma convivência social em que cada um mantinha sua posição mas procurava não antagonizar os outros dois. Leon dizia: “Eu sei quem eu sou”, e Joseph respondia: “Eu não quero tirar isto de você. Pode ficar. Eu não o quero”. Joseph explicava ao médico que os outros dois eram doidos, já que estavam todos num hospital psiquiátrico. Clyde assumia um tom imperial, e era de opinião que os outros dois eram seres inferiores, e além do mais estavam mortos. Dizia ao médico: “Eu sou ele. Está vendo? Entenda, agora!”. E Leon afirmou a certa altura: “Vocês estão usando um paciente contra o outro, tentando fazer lavagem cerebral e também manipular a situação através de vudu eletrônico”.

Me veio a idéia de pegar três indivíduos sadios, que não se conhecessem entre si: um cristão, um judeu e um muçulmano. E repetir a experiência, perguntando-lhes: “Qual de vocês acredita no verdadeiro Deus?”. Teríamos então dois conjuntos de crenças conflitantes. E talvez descobríssemos semelhanças inesperadas entre eles, porque estariam fazendo afirmações igualmente impossíveis de provar.

2704) O 1º. Poema escrito (3.11.2011)




Qual terá sido o primeiro poema a ser composto por escrito? 

É um problema interessante. Talvez não da história da literatura, porque provavelmente era algum poema bem ruinzinho pelos critérios estéticos do século 21. Mas é uma questão interessante (e, certamente, insolúvel) da história do pensamento humano. 

Pensem bem. Antes da invenção da escrita, as culturas se comunicavam unicamente em voz alta, e todas as informações eram guardadas na memória coletiva. 

A quantidade de informação e a complexidade das coisas a serem decoradas (hinos religiosos, a história dos reis e dos grandes feitos, as transações comerciais, as leis, as relações civis, as lendas e mitos, etc.) fez as cabeças mais inteligentes se dedicarem à invenção de um sistema de sinais que preservasse as palavras faladas através de marcas numa superfície.

Durante os séculos seguintes (digamos que a escrita começou na antiga Suméria, 4 mil anos antes de Cristo) toda a memória oral começou a ser transcrita para os papiros, tabletes de argila, etc. 

Novos textos continuaram a ser inventados, no processo tradicional: os poetas ou contadores de histórias imaginavam o que queriam dizer, e diante de outras pessoas recitavam ou narravam aquilo em voz alta. 

Todo poema era composto de sons; toda história só existia em forma de palavras ditas em voz alta. E depois alguém os transcrevia em sinais escritos. O escrito surgiu como uma forma de preservar e disseminar o falado.

Mas houve um dia em que um poeta pegou uma tábua de argila limpa, virgem, empunhou sua coleção de estiletes de pontas cuneiformes, sentou-se à sombra de uma árvore e começou a pensar (digamos) em um novo hino em homenagem à deusa Ishtar. 

As palavras foram surgindo em sua mente, algo como “Oh, grande deusa, tu que em forma de lua te ergues brilhando sobre as águas do Eufrates...” 

Algo assim. A questão é que ele estava sozinho, não havia nenhum dos seus colegas ou discípulos para quem ele pudesse dizer aquelas palavras e avaliar a reação. Mas ele achou que aquele começo não estava nada mau! E calado, sem nem sequer murmurar os versos, ele pegou os estiletes e começou a gravar, em sinaizinhos: “Oh, grande deusa...”

Parece uma besteira, né? Mas foi um instante crucial na história do mundo, tanto quanto a banheira de Arquimedes ou a maçã de Newton. Foi a primeira vez em que a palavra poética pensada tornou-se palavra poética escrita, sem passar pela palavra falada. 

Abriu-se uma portinholazinha minúscula, mas por ela passaram, milênios depois, desde os caligramas de Apolinnaire até os poemas concretos dos irmãos Campos, desde Cummings até o Poema Processo.