sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

2741) Drummond: “Família” (16.12.2011)




Uma parte considerável de Alguma Poesia (primeiro livro de Carlos Drummond, publicado em 1930) é de poemas sobre a vida doméstica, descrita de diferentes pontos de vista (“Infância”, “Sweet Home”, etc.). Um tema que foi se diluindo gradualmente. Não lembro de nenhum texto nessa linha em livros como Claro Enigma, por exemplo. Na verdade, há dois tipos de textos muitos diferentes: os poemas em que Drummond evoca sua família real, suas lembranças reais (o pai, a mãe, etc.) e os poemas em que ele compõe pequenos quadros de vida doméstica que não se referem propriamente a ele mesmo, mas a famílias imaginárias cuja existência está plantada na zona limítrofe entre a paz e a pasmaceira, entre a tranquilidade e o tédio.

“Família” pertence a essa linha: “Três meninos e duas meninas, / Sendo uma ainda de colo. / A cozinheira preta, a copeira mulata, / o papagaio, o gato, o cachorro, / as galinhas gordas no palmo de horta / e a mulher que trata de tudo”. Parece a descrição da fotografia de uma família. Ou um daqueles “grupos de família numa sala” que os pintores antigos gostavam de compor. Essa enumeração de personagens humanos e animais, porém, soa como uma receita de bolo, uma lista de ingredientes necessários para preparar a família mineira ideal.

Além dos personagens, a família inclui uma cenografia meticulosa de objetos, e pequenos rituais associados a eles: “A espreguiçadeira, a cama, a gangorra, / o cigarro, o trabalho, a reza, / a goiabada na sobremesa de domingo, / o palito nos dentes contentes, / o gramofone rouco toda noite / e a mulher que trata de tudo”. Note-se a reiteração da frase “e a mulher que trata de tudo” num tom de calculada ambiguidade. A mulher é mencionada como se fosse a figura mais poderosa, e ao mesmo tempo a frase tem aquele tom taxativo, machista, bem tradicional, dos sujeitos que dizem: “aqui na casa quem manda é a patroa”, num tom que deixa bem clara a situação de subserviência dessa “patroa”.

A vida social de-portas-afora é descrita em breves cápsulas na estrofe final: “O agiota, o leiteiro, o turco, / o médico uma vez por mês, / o bilhete todas as semanas / branco! Mas a esperança sempre verde. / A mulher que trata de tudo / e a felicidade”. Rotina, vidinha conservadora e um tanto fundada em preconceitos (veja-se o tom com que se refere ao “turco”, à “cozinheira preta e a copeira mulata”, como se fossem coisas). A palavra “felicidade” na linha final surge como um elemento obrigatório a partir do qual todos os outros tivessem sido deduzidos. Parece um retrato de família a óleo mostrando na parede um dístico: “Aqui nesta casa todo mundo é obrigado a ser feliz”.