segunda-feira, 7 de setembro de 2009

1254) O poço artesiano (21.3.2007)




(Luzes da Cidade)

Reza a lenda que, durante as filmagens de Luzes da Cidade, Charles Chaplin empancou num detalhe não previsto no roteiro. A história tinha que aproximar o Vagabundo, seu clássico personagem, de uma florista cega, que deveria confundi-lo com um sujeito rico. Chaplin foi filmando até chegar à cena do primeiro encontro dos dois, e aí parou. 

Como fazer (ainda mais num filme mudo) com que a cega confundisse o Vagabundo com um ricaço? Todo dia a equipe ia para o estúdio e ficava esperando. Em vez de filmar as cenas seguintes, como se faria hoje, o diretor decidiu que a filmagem só continuaria depois que aquela cena específica fosse feita.

Acabou sendo, depois de semanas de espera e milhares de dólares gastos em vão. Chaplin pensou num engarrafamento de trânsito. O Vagabundo, para chegar à calçada passaria por dentro de uma limusine cujo banco traseiro estava vazio. Ele abria a porta, entrava, passava por dentro do carro, saía do lado oposto, batia a porta e chegava à calçada. 

A florista cega percebia apenas que aquele homem de voz macia que conversava com ela tinha saltado de dentro de um carro elegante. (Podemos supor que a cega sabe distinguir, pelo barulho, uma limusine de uma fubica).

O que quero comentar não é a cena em si, mas durante quanto tempo podemos bater numa mesma tecla, à espera da solução de um problema. Isso é discutido muitas vezes em Administração com a metáfora do poço artesiano. Você sabe que existe água naquela área. Perfura cinco metros, e nada. Perfura dez metros, e nada. Vinte, e nada. O que é mais sensato: continuar perfurando ali, ou começar outro poço um pouco mais adiante? 

Isto se liga ao que discuti recentemente no artigo “A morte quântica de James Kim” (13 de dezembro), em que um sujeito, preso com a família numa tempestade de neve, não sabia se ficava abrigado no carro ou se saía em busca de socorro. Saiu, morreu de frio, e o socorro encontrou o carro, salvando a família. Mas como ele poderia saber? Estava cavando no escuro.

No caso de Chaplin, tudo tem a ver com a teimosia do diretor e a fortuna de que o estúdio dispõe. Alguns empreendimentos artísticos estão dando prejuízo até hoje, como o disco do Guns’n’Roses Chinese Democracy, no qual já se gastaram milhões de dólares, e que já passou para a história como O Disco Mais Caro do Rock – e nunca foi lançado, porque até hoje (2007) não ficou pronto. Os músicos brigam entre si, brigam com os produtores, os produtores com o estúdio, o estúdio com a imprensa, os dólares continuam fluindo para o ralo, e o disco só deve ficar pronto, profeticamente, quando a China se tornar de fato uma democracia. 

O disco do Guns é o exemplo mais claro de um poço artesiano que já vai com quilômetros de fundura sem encontrar água. Claro que seus engenheiros têm todo o direito de supor que o lençol freático deve estar situado nos próximos metros, e acham melhor continuar apostando no sucesso final do que dar por perdido todo o investimento feito até agora.






1253) O prostiturismo (20.3.2007)


Millôr Fernandes situou a problemática do turismo numa frase, como sempre, brutalmente veraz: “Transformar sua cidade em atração turística é como colocar sua mãe na Zona”. Precisa dizer mais? Existem dualidades conflitantes nesse negócio de turismo. O turista alemão, louro e obeso, tem pela nossa cidade um interesse muito maior do que temos pela pessoa dele. Ele só nos interessa porque dispõe de dólares para espalhar à mão-cheia. Queremos os turistas em nossos shoppings, nossas lojas, nossos restaurantes. Se viessem aqui sem um tostão, apenas para andar na rua e fazer perguntas sobre nossa cidade, nossas vidas, nossos planos para o futuro, nossa opinião sobre a existência de Deus ou sobre o formato do Universo, nós os correríamos daqui a vassouradas. Não queremos o interesse espiritual deles. Queremos a grana, não é mesmo?

Aí, quando eles tentam estabelecer conosco uma relação prostitucional, ficamos ressentidos. Mas o modo como o turismo se organiza (“nós oferecemos as belezas naturais, vocês oferecem as riquezas artificiais”) conduz fatalmente a isto. Nem todos os turistas vêm pensando apenas em pegar nossas mulatinhas impúberes e conduzi-las ao motel mais próximo. Mas desde que se estabelece um interesse prioritário pelo dinheiro que deixarão aqui, qualquer um que tenha dinheiro se sente no direito de trocar esse dinheiro pelo que mais lhe interessa. Não importa se o que ele vem visitar são igrejas barrocas ou mulatas boazudas; o dinheiro que deixam aqui tem o mesmíssimo valor. Se não é isso que queremos, então vai ser preciso fazer muita força. Cuba foi o bordel dos EUA durante muitos anos; fizeram uma Revolução Socialista para acabar com isto (entre outras coisas) e hoje, meio século depois, Cuba voltou a ser bordel (pelo que me contam; nunca estive lá).

Existem outras formas de fazer turismo? Eu, pelo menos, sempre fiz turismo por outras razões. Existe o turismo da fantasia simbólica, que faz um brasileiro abestalhado sair daqui até Liverpool (como ainda pretendo sair um dia) só para tirar uma foto junto a uma placa onde está escrito “Penny Lane”, ou cruzar metade do mundo (como ainda farei) para ver em Hiroshima a abóbada que sobreviveu à explosão da bomba. Por que as pessoas fazem isto? Porque se sentem intimamente ligadas, por questões espirituais ou artísticas ou literárias ou religiosas ou políticas – ou seja, por questões culturais – a lugares distantes. Um amigo alemão quase me estrangula uma vez porque afirmei que mesmo morando no Rio não sabia onde ficava o Museu Carmen Miranda. Já recebi em Campina Grande jornalistas que queriam conhecer a casa onde morreu o cangaceiro Antonio Silvino (não existe mais; ficava na Praça Félix Araújo, no Monte Santo). Podem ser motivos meio bobos para se fazer turismo, mas são motivos verdadeiros. Quem visita Veneza, o Cairo, Praga, Ouro Preto, o Lago Ness, Waterloo, Cordisburgo, Graceland, não vai atrás das menininhas locais.

1252) O roteirista e o diretor (18.3.2007)



(Guillermo Arriaga)

A imprensa tem debatido o recente arranca-rabo entre o diretor mexicano Alejandro González Iñarritu e o seu roteirista Guillermo Arriaga. A dupla fez três filmes em parceria: Amores Brutos (que vi e achei excelente), 21 gramas e Babel. Ao que parece, romperam porque Iñarritu achou que o roteirista estava aparecendo demais, dizendo-se co-autor dos filmes, etc. e tal.

Já vi este filme antes. Foi escrito pelo mesmo roteirista, que se chama “Vanity Fair”. É a mesma pinimba que separou Hitchcock do ótimo e hoje esquecido John Michael Hayes, que em apenas três anos de parceria escreveu para o mestre Janela Indiscreta, Ladrão de Casaca, O Terceiro Tiro e O Homem que Sabia Demais, Hayes não era o autor das histórias originais (todos os filmes foram adaptados de contos ou romances alheios). Mas conhecia a cabeça e o método de trabalho de Hitchcock, e colocava no papel coisas que certamente deixavam o diretor “se coçando” para entrar no estúdio e começar a rodar.

Para mim, um filme é do diretor, para o bem ou para o mal. É ele quem faz o filme prestar ou não. No chamado “cinema de autor”, que foi entronizado nos anos 1960, o roteirista era apenas um talento a mais contribuindo para concretizar a visão do diretor. Não lembro de casos, no chamado “cinema de arte”, de roteiristas que impusessem sua “visão” a um diretor, de diretores que se limitassem a cumprir obedientemente o que o roteirista tinha escrito. Essa obediência do diretor ocorria, ironicamente, dentro do esquema industrial de Hollywood, em que muitos diretores filmavam de forma escrupulosa e burocrática o que tinha sido colocado no papel, sem ousar mexer uma linha de diálogo. Isto significava uma ditadura dos roteiristas? De jeito nenhum: os próprios roteiristas trabalhavam com o Produtor, este sim, o chefão onipresente, olhando por cima do seu ombro. É o chamado “cinema de produtor”, em que o dono do filme contrata A para escrever, contrata B para dirigir, e quem não o fizer de acordo com sua vontade é substituído.

No cinema de autor, o roteirista levanta a bola para o diretor cortar. Dá o passe. Faz a assistência. Como no esporte, sua função é essencial; mas quem faz a jogada decisiva é o outro. Roteirista algum pode prever e redigir tudo que aparece na imagem, tudo que acontece num filme. Desempenho dos atores, jogos de luz e cores da fotografia, adequação de cenários e figurinos... Ele pode sugerir, mas não cria. Cabe a ele a primeira, mais humilde e mais essencial das funções: contar uma boa história. Cabe ao diretor filmar imagens que, além do valor-em-si que terão como imagens, consigam contar a mesma história que o roteirista contou em palavras. O melhor roteirista não é o cara que escreve bem, não é o bom escritor. O melhor roteirista é o cara que pensa em forma de imagens luminosas em movimento, mas não sabe ou não consegue filmá-las. O melhor roteirista é o diretor frustrado.