quarta-feira, 22 de maio de 2019

4469) O palhaço do mundo em preto e branco (22.5.2019)




Chaplin é o palhaço do cinema em preto-e-branco.  Seu visual surgiu com o cinema, e é difícil conceber que pudesse ter nascido no teatro apenas, e menos ainda no circo.  

A balança visual do teatro e do circo pende para um mundo necessariamente colorido, brilhante, reluzente.  Palhaços de circo, mesmo dos circos mais mambembes, circo tomara-que-não-chova, circo que só tem um pano-de-roda, orgulham-se de suas roupas em cores berrantes, costuradas em cetim barato, em faíte, em qualquer pano lustroso que realce seu cromatismo de pintura primitiva.

Carlitos surge no “mundo fantasmo” do cinema preto-e-branco, do cinema puro.  Um cinema que era como se a própria fotografia recém-inventada já começasse a se mexer por si mesma.  Um mundo sem cores, mas com todos os tons de cinza; e onde o branco não é somente branco, mas um branco luminoso, coruscante, prateado.  E onde o preto costuma se esfarelar como se fosse pó de carvão ou borrifozinhos de nanquim.

O mundo fantasmagórico de onde brota Carlitos é esse mundo granulado como na retícula dos velhos clichês de zinco, com aquele seu gradeamento infinitesimal de pontos negros maiores ou menores.   É como se essa pulverização nos mostrasse um universo feito com os átomos do preto e do branco, misturando-se, separando-se, em torvelinhos que se unem e se apartam, e vão sugerindo aos nossos olhos imagens toscas mas reconhecíveis.  Uma estética visual que tem doses iguais do pontilhismo impressionista e dos contrastes toscos das gravuras dos romances populares.

É nesse mundo de lanterna mágica que Carlitos brota.  Um mundo silencioso como o mundo dos sonhos, onde sempre parecemos estar embaixo dágua. 

Um mundo, como registra Sarte em suas recordações de infância, feito de “...um giz fluorescente, paisagens pestanejantes, raiadas de aguaceiros; chovia sempre, mesmo em pleno sol, mesmo nos apartamentos; às vezes um asteróide em chamas cruzava o salão de uma baronesa sem que ela parecesse espantada.” 

O cinema preto e branco era de fato um chuvisco permanente, uma poeira de trevas e de estrelas, e nele não haveria lugar para os arlequins e os saltimbancos da comedia dell´arte, com seu colorido básico de histórias em quadrinhos e de estampas populares.

A frustração que sentimos quando vemos algumas tentativas contemporâneas de reconstituir esse período é que falta-lhes essa qualidade – não sei de melhor descrição que o verso de Cruz e Sousa – “pulverulentamente nebulosa”. 

A nitidez dos filmes de hoje nos parece insatisfatória, mesmo em reconstituições de época impecáveis como a de Scorsese em “Gangs de Nova York”.  Por um lado, é aquele, sem dúvida, o ambiente social e econômico onde viveu o vagabundo de Chaplin; sabemos que são aqueles os pardieiros em equilíbrio precário, as ruas enlameadas, os botequins, as cabeças-de-porco.  Mas tudo ali está fotografado com uma nitidez supérflua e mesmo incômoda.  Na nossa memória, aquele mundo não era assim.   Era um mundo sem substância, um mundo que aos nossos olhos infantis parecia feito de açúcar e pó de café.

Nesse mundo, Carlitos parecia mais real que o resto, mais real que as ruas, mais real que o rio de fubicas resfolegantes que se entrecruzavam nas avenidas.  A cadência frenética dos 16 quadros por segundo realçava os deslocamentos meio espasmódicos daqueles habitantes de um universo que pela primeira vez via-se obrigado a mover-se mais depressa, mais depressa.  Era tudo uma coreografia de esbarrões, ultrapassagens, gente colidindo, carros tirando fino, jatos dágua, nuvens de poeira. 

Já eram as esteiras rolantes de “Tempos Modernos” que punham aquelas cidades em movimento, e no meio delas deslocava-se o pequeno lorde esfarrapado, o bom malandro janota, o “barão da ralé”, com roupas que pareciam não ser suas, a jaqueta muito acochada, as calças frouxas demais, os sapatos marca O Defunto Era Maior, o chapeuzinho equilibrado no coco. 

Ele todo preto e o rosto todo branco, xilográfico, caligaresco, o bigodinho rimando com a gravata borboleta.  O habitante arquetípico daquele mundo de luz e sombra, um mundo que nunca existiu, mas que sobreviverá, com ele, a este mundo colorido onde existimos agora.


(Uma versão ligeiramente diferente deste texto foi publicada na revista Continente Multicultural, Recife, ano III, # 33, dezembro 2003)