sábado, 8 de maio de 2010
2012) A doce vida eterna (20.8.2009)
Os cinéfilos mais jovens conheceram Federico Fellini através de Amarcord, um dos seus grandes sucessos, que foi seguido por uma série de filmes menores dos quais (para mim) apenas E La Nave Va atinge esse pico de qualidade. (Não que os demais sejam ruins: mas são apenas toque-de-bola-no-meio-campo). Por isso não viveram uma época em que Fellini era um diretor perigoso de se gostar. Nos anos 1960 havia duas correntes poderosas na crítica de cinema: os católicos e os marxistas. Os católicos acusavam Fellini de zombar do Catolicismo; os marxistas o acusavam de ser católico demais. Filmes como A Doce Vida estão por trás desse cabo-de-guerra.
A Doce Vida se abre com uma imagem hoje famosa: uma enorme estátua de Cristo sendo levada pelos céus por um helicóptero, pendurada a um cabo de aço. Uma imagem inocente se vista na rua, mas numa tela, e num filme de Fellini, ganha logo uma conotação ominosa, de zombaria e sacrilégio. Algo de que Luís Buñuel se queixava, quando fazia seus personagens se referirem a “uma Virgem Maria lavável, de plástico” em O anjo exterminador, ou quando mostrava em Viridiana um crucifixo-canivete. Na vida real, nada de mais. Num filme de Buñuel, uma blasfêmia. O Cristo sendo levado pela máquina voadora deu origem a um sem-número de citações. Quem viu Adeus, Lênin há de lembrar a estátua do líder comunista em cena igual.
Uma longa cena do filme mostra a badalação em torno de uma falsa aparição da Virgem Maria para um casal de crianças. Fellini mostra a formação, nesse povoado perto de Roma, de um carnaval de mídia e comércio parecido com o que Billy Wilder descreve em A Montanha dos 7 Abutres. Com diplomacia e esperteza, o diretor mostra um padre negando com veemência que aquilo seja um milagre legítimo, e atribuindo má fé às crianças. De nada adianta: o circo está armado, as rádios, as TVs e os fanáticos invadem o local, a família das crianças recebe propinas para posar para fotos, dezenas de doentes são trazidos em padiolas na esperança de uma cura.
Todo o filme está permeado de cenas mostrando a comercialização, banalização e falsificação do sentimento religioso. Perto do final, Marcello visita o castelo de uma família nobre, que tem dois Papas em sua árvore genealógica. Sem ter o que fazer, os riquinhos empunham candelabros e vão explorar uma mansão abandonada que há na propriedade. Vão em busca de assombrações; um grupo se reúne em volta de uma mesa e inicia uma sessão espírita, o que leva uma mulher a ter algo como um ataque histérico disfarçado de possessão mediúnica. Um parente, diz, sarcástico: “O marido separou-se dela porque costumava encontrar fantasmas na cama”. Religião “fake”, misticismo “fake”, espiritualidade “fake”... Fellini falava disso tudo. Os católicos se incomodavam porque ele ironizava a religião; os marxistas se irritavam porque lhes parecia que o diretor dava a ela demasiada importância.
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