segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

4908) O realismo e a imaginação (30.1.2023)

 

(Juan Gris, “The Open Book”, 1925)

 
Por que motivo a literatura de gênero (fantástico, policial, aventura, etc.) é vista como uma frivolidade de gente imatura, e a dita literatura realista seria (por esta mesma ótica) um privilégio dos adultos?
 
A questão parece bem formulada, mas seria possível empregar a mesma equação, com um enfoque diferente, e dizer: “Por que motivo a literatura de gênero é um prazer reservado às pessoas de mente jovem, e a dita literatura realista seria (por esta mesma ótica) um penoso estudo utilitário imposto aos adultos?”.
 
Tudo depende do modo de qualificar os elementos da pergunta. Mas por todo lado vigora o conceito difuso de que existem dois tipos de literatura – um que serve aos garotos, aos adolescentes, aos que só são capazes de absorver coisas simplórias, e outro que é mais elevado, ou mais profundo (o ângulo varia muito), e que é reservado aos adultos, que têm maior capacidade mental, maior cultura, maior envergadura moral para enfrentar os grandes problemas contidos nesses livros.
 
Uma experiência curiosa que tive por volta dos dez ou doze anos foi ao ler um dos meus primeiros livros de ficção científica de autor brasileiro, que foi A Desintegração da Morte, de Orígenes Lessa, uma coletânea de contos encabeçada pela noveleta-título, que aliás é a única história de FC em todo o volume.
 
Tenho hoje a primeira edição (Rio, Empresa Gráfica “O Cruzeiro”, 1948), com onze histórias no total; mas a que li naquela época foi uma versão reduzida (quatro contos apenas) publicada na saudosa “Coleção Futurâmica”, das Edições de Ouro, no início dos anos 1960.


O último conto deste volume, “Reencontro”, trata justamente do reencontro do narrador com um dos seus amigos de infância, um garoto chamado Julinho que no internato era conhecido como “o chorão”. Era bom atleta, inteligente, esperto, mas chorava com facilidade. Os dois se reencontram em São Paulo, como soldados, na Revolução Constitucionalista de 1932.
 
O narrador começa a lembrar os tempos de escola, e recorda um dia em que ele próprio tentou “fazer  bullying” com o colega (este termo não aparece no livro, é claro) para que chore, mas acaba desistindo, porque no fundo são amigos.
 
Tive remorso. Fingi não perceber, mudei bruscamente de interesse:
– É Sherlock Holmes?
Julinho hesitou, teve um olhar de náufrago pra o fascículo que trazia na mão.
– Não. É Nick Carter.
– É bom? É melhor do que o Sherlock?
Os olhos de Julinho se adoçaram. Confraternizamos naquele assunto inesperado. Ele já tinha lido todos os fascículos de Sherlock, já havia lido dez ou doze de Nick Carter. Mas ia acabar com aquela besteira de livro policial. Agora ia ler somente grandes escritores. Taunay, Alencar, Machado de Assis.
 
Fiquei com a crista baixa ao ler isto. Naquele tempo, era muito raro ver uma menção a Sherlock Holmes em livros alheios; mas essa referência era ao mesmo tempo simpática e desencorajadora. Por que livro policial seria “aquela besteira”? E digo isso sem partidarismo, porque naquela época eu tanto lia Conan Doyle quanto o volume dos “Contos Completos” de Machado, da Aguilar (o mesmo que tenho até hoje, todo surradinho e aconchegante).
 
Era irritante essa obrigação de chamar de “besteiras” aqueles livros de onde eu extraía tanta coisa: tanta situação nova, tanta paisagem estranha, tanto vocabulário, tanta informação prática, tantos traços reveladores da insondável psicologia dos adultos... Eu extraía isso tanto de Sherlock quanto de Machado, então por que motivo um dos dois era besteira e o outro não?!
 
Depois que fiquei velho dediquei-me a torcer o sentido dessas fórmulas questionáveis. E posso refazer aquele parágrafo inicial com outra formulação. 

A literatura de gênero (ou aquilo que em inglês se chama de “romance”) atrai o leitor jovem pela extensão e variedade dos assuntos que aborda, pagando por isto o preço de uma certa superficialidade. Mas ela apela ao senso de aventura, ao senso de deslumbramento diante do improvável (o sense of wonder), à curiosidade factual pela cultura-de-almanaque, à excitação dos perigos, mistérios, fugas e perseguições, e a todo um conjunto de experiências mentais que para esse leitor jovem, essa leitora jovem, estão entre as coisas mais importantes do mundo.
 
A literatura mainstream, realista, aquilo que em inglês se chama de “novel”, atrai o leitor adulto porque conta com uma certa atitude já definida diante do mundo. É o que os críticos chamam “a literatura burguesa”, não no sentido de uma literatura feita por gente rica, mas feita por gente que já assumiu uma posição definitiva diante do mundo, da vida, da sociedade. Gente que não tem mais interesse por idéias que não rendam resultados práticos em sua vida profissional e pessoal (familiar, sexual, financeira, etc.). O realismo tem, para esse leitor(a) uma função utilitária, aprofundadora: conhecer melhor as sutilezas da psicologia humana e da dinàmica da ascensão social. Mas, de preferência, nunca sugerir a existência de outros mundos, outros planos da realidade, outros planetas habitados, etc. etc. – outros jogos com outras regras.
 
Esta é uma simplificação extrema, como toda generalização; mas existe nela um irredutível grãozinho de verdade.


Curiosamente, no mesmo ano do conto de Orígenes Lessa, 1948, o grande T. S. Eliot emitia este juízo sobre a obra de seu conterrâneo Edgar Allan Poe:
 
Poe era dotado de um intelecto brilhante, isto não se pode negar; mas ele me parece o intelecto que tem uma pessoa jovem, altamente dotada, antes da puberdade. Sua vívida curiosidade assume formas que são os deleites típicos de uma mentalidade pré-adolescente: maravilhas da natureza, da mecânica, do sobrenatural, cifras e criptogramas, quebra-cabeças e labirintos, autômatos que jogam xadrez e voos delirantes de especulação. A variedade e o ardor da sua curiosidade nos deleitam e nos assombram, mas no final das contas a excentricidade e a falta de coerência dos seus interesses acabam nos fatigando.
(T. S. Eliot, citado em Poe Poe Poe Poe Poe Poe Poe, Daniel Hoffmann, Anchor Press, 1973, trad. BT)
 
Podem achar uma avaliação antipática, mas tudo que Eliot diz me parece bastante justo. Poe não é somente isto – mas é tudo isto, e o detalhe revelador está na frase final: o sisudo e circunspecto Eliot acaba se fatigando com a imaginação desenfreada e mórbida de outro. Eliot foi um poeta e um intelectual condenado à vida adulta, à vida burguesa, à gravata e ao cachimbo. Era norte-americano e virou inglês, era Unitário e tornou-se Anglicano; teve uma carreira pública e literária totalmente distinta da que teve Poe. (Quanto a este, talvez tenha sido um adolescente até morrer aos 40 anos, com sua fascinação pelo jogo, suas bebedeiras, suas paixões um tanto escandalosas.)
 
A literatura de gênero é extensa mas superficial; o romance mainstream é limitado mas profundo. O leitor “jovem” gosta de tentar uma grande quantidade de experiências e vivências através da literatura; o leitor “adulto” quer se concentrar nos aspectos sociais e psicológicos que podem ter um reflexo prático na sua vida já estabelecida, já focada num único caminho.
 
Tudo isto são regras fervilhantes de exceções, é claro, mas mesmo não que não sejam verdades estatísticas devem coresponder a arquétipos que flutuam, pairam, esvoaçam pelas nossas vidas, e nos identificamos ora com um, ora com o outro.



Para encerrar, uma bela imagem de Primo Levi em A Tabela Periódica (1975; Relume Dumará, 1994, trad. Luiz Sergio Henriques), no conto “Chumbo”:
 
Eu estava entusiasmado com a colaboração e veio-me à cabeça fazer espelhos até com as calotas do vidro soprado, vertendo-lhes o chumbo por dentro ou espargindo-o por fora: olhando-nos nesses espelhos, vemo-nos muito grandes ou muito pequenos, ou ainda inteiramente deformados; esses espelhos não agradam às mulheres mas todas as crianças querem comprá-los.
 
As mulheres (=os adultos) querem certezas e confirmações a respeito de uma Realidade dentro da qual labutam e pela qual se sentem parcialmente responsáveis. As crianças querem o improvável, o diferente, o estranho, o bizarro, o inesperado, porque para elas o mundo está começando e as possibilidades, como sempre, são infinitas.
 
Por mim, ficaria com este depoimento sincero de Fernando Pessoa, um temperamento que via na literatura uma forma de vida e não um tema de estudo:
 
Todo o livro que leio, seja de prosa ou de verso, de pensamento ou de emoção, seja um estudo sobre a quarta dimensão ou um romance policial, é, no momento em que o leio, a única coisa que tenho lido.  Todos eles têm uma suprema importância que passa no dia seguinte.
(Fernando Pessoa, O Eu Profundo)


(Fernando Pessoa, por Rui Pimentel)
 
 
 






sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

4907) Primeiras Estórias: "Darandina" (27.1.2023)



Guimarães Rosa tinha uma certa fascinação pelos doidos, pelos indivíduos meio sem juízo, fora de esquadro. Não o doido furioso, porejando maldade: mas o doido manso, às vezes até articulado e bom argumentador, mesmo que por linhas tortas. O doido que se comporta de maneira aceitável, civil.  Como se a gente se encontrasse com ele para conversar, na calçada, mas cada um estivesse sendo personagem de um filme diferente. 
 
Talvez a melhor galeria de tais personagens esteja na noveleta “O Recado do Morro” (em Corpo de Baile, 1956), história de uma caravana morosa que ao longo do caminho vai se deparando com um lunático atrás do outro, e todos eles acabam se envolvendo com a misteriosa voz do Morro da Garça, que se vê no horizonte. A voz do morro! Como se o morro pudesse dizer alguma coisa! 
 
Em Primeiras Estórias (1962) os doidos mais comoventes são os personagens epônimos do conto “Sorôco, sua mãe, sua filha”, os doidos que não explicam nada: apenas cantam na hora da partida. Comentei essa história aqui:
 
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/04/4566-soroco-sua-mae-sua-filha-442020.html




“Darandina”, o décimo-oitavo conto do livro, é também sobre um doido e também, como “Sorôco...” parece evocar os tempos médicos de Guimarães Rosa no hospício de Barbacena, onde ele sentou praça por uns tempos na juventude.
 
O narrador trabalha no hospício, é um interno de plantão por entre enfermeiros e doutores, e está de manhã cedo à porta, esperando a entrega dos jornais, quando de dentro do hospício emerge um homem bem vestido, a passo rápido, e dá-se então um certo tumulto quando o homem parece ter afanado a carteira de alguém, ou quem sabe foi a caneta-tinteiro. O suposto ladrão foge, é perseguido, mas ele vai direto rumo a uma palmeira-real, majestosa, que há quase no meio da praça. E sobe de palmeira acima!
 
A multidão perseguidora se ajunta, todos de cara erguida, e começa aí um vai-não-vai, um foi-não-foi, que o autor estica espertamente por catorze páginas. Interrogando outro interno, o Adalgiso, o narrador fica sabendo que apesar de ter saído do prédio do hospício o homem não era um dos “hóspedes”, tinha ido ali apenas para pedir um favor.
 
Disse que era são, mas que, vendo a humanidade já enlouquecida, e em véspera de mais tresloucar-se, inventara a decisão de se internar, voluntário; assim, quando a coisa se varresse de infernal a pior, estaria já garantido ali, com lugar, tratamento e defesa, que à maioria, cá fora, iriam fazer falta... (...) Sabe quem é? Deu nome e cargo, Sandoval o reconheceu. É o Secretário das Finanças Públicas...
(p. 138, 3ª. edição)
 
Estamos num território bem pertinho da Itaguaí de Machado de Assis, com seu alienista, o dr. Simão Bacamarte, e sua Casa Verde onde depois de muito esforço ele se resignou a encarcerar os sãos de espírito, porque para caber os doidos era necessária a cidade inteira.
 
A confusão, porém, está formada, e as pessoas se agitam. Que necessidade tem uma pessoa da classe alta de se assubir numa palmeira?
 
A multidão exige que o doido desça. Como resposta, ele atira lá de cima um sapato.  E depois, outro.  Grita lá de cima uma série de palavras de ordem que talvez não pareçam tão doidas assim.
 
-- Viver é impossível! (pág. 140)
-- Pára!  (...)  Só morto me arriam, me apeiam!  (...)  Se vierem, me vou, eu... Eu me vomito daqui!  (pág. 142)
-- O amor é uma estupefação... (pág. 144)
 
De repente, chega esbaforido o verdadeiro Secretário das Finanças Públicas, restabelecendo a ordem no mundo. O homem da palmeira não era uma autoridade que endoideceu; era alguém que endoideceu de pensar que era uma autoridade, mas agora já se desveste todo. Tira calça, camisa, cueca, arremessa de coisa em coisa... E logo está nu em pelo lá em cima.
 
Guimarães Rosa conta, com riqueza de detalhes circunstanciais, essa curiosa fábula do homem que queria passar por doido e se internar na casa de saúde para se livrar da doidice do mundo aqui de fora; e depois, não conseguindo, foge para o alto da palmeira e se livra de toda a roupa civil que o incomodava.
 
Apenas proclamou: “Viva a luta! Viva a liberdade!” - nu, adão, nado, psiquiartista. (pág. 149)
 
Nu, adão, na(sci)do: a subida à palmeira é um renascimento, a ruptura com o mundo de antes para o surgimento de um ser novo, como a cobra que emerge da pele usada. Sem que isto implique, contudo, num milagre qualquer que zere os seus problemas anteriores:
 
Estava em equilíbrio de razão: isto é, lúcido, nu, pendurado. Pior que lúcido, relucidado; com a cabeça comportada.  Acordava!  Seu acesso, pois, tivera termo, e, da idéia delirante, via-se dessonambulizado. Desintuído, desinfluído – se não se quando – soprado.  Em doente consciência, apenas, detumescera-se, recuando ao real e autônomo, a seu mau pedaço de espaço e tempo, ao sem-fim do comedido.  (pág. 148)
 
Primeiras Estórias tem um punhado de narrativas urbanas que compõem um contraste positivo com os cenários sertanejos habituais em Rosa. Aqui, há sem dúvida ecos de sua escala em Barbacena, seu convívio com os doidos de lá (cujos exemplos ele cita em seus textos). Tal como ocorreu com André Breton na I Guerra Mundial, cuidar diariamente de doidos internados ajudou a abrir algumas portas na cabeça literária de Rosa.
 
Maria Luiza Ramos tem um ótimo ensaio, “Análise Estrutural de Primeiras Estórias” (O Estado de São Paulo, 30-11-1968, Suplemento Literário), incluído na coletânea Guimarães Rosa, Coleção Fortuna Crítica, Rio, Civilização Brasileira, 1983, pág. 519.
 
Ali, ela faz um levantamento da frquência verbal de termos “com que se tece o campo semântico” da prosa deste livro do autor:
 
(...) palavras e expressões como esquisito, espanto, milagre, pasmo, arregalar os olhos, estranho, assombrável, estatelo, estupefação, engano, surpresa, estarrecer, desatinado, espavorido, aparvoado, aturdir, irreconhecer, tremer, estremecer, encanto, enigma, confusão, sobressalto, mistério, fatalidade. (...) [T]odas convergem para a problemática central: a falta de lógica da existência, ou a angústia provocada pela insegurança da vida humana.

 






terça-feira, 24 de janeiro de 2023

4906) Oito sumiços (24.1.2023)

 

1
A cidade de Evansville (Texas) convive há décadas com o mistério do desaparecimento de uma casa e todos os que viviam nela. Na noite de 15 para 16 de maio de 1935, uma tempestade caiu sobre a cidade, provocando inundação, queda de pontes e de barrancos, e falta de energia elétrica das 23 horas até o amanhecer seguinte. À luz do dia, quando começou a limpeza e a avaliação dos prejuízos, foi constatado que a casa de dois andares onde morava a família do tabelião Ephraim Hogg, 66 anos, sumira por completo. Na colina onde ela se erguia, a cinquenta metros da residência mais próxima, nenhum sinal da casa nem de seus alicerces: o chão estava coberto de mato rasteiro e de pequenas árvores, além de um ninho de térmitas com aparência muito antiga. A família (pai, mãe, três meninos, uma adolescente, uma avó idosa, duas criadas) sumiu sem deixar rastro. Escavações sem muita esperança foram realizadas no local, onde os moradores ergueram depois uma pequena capela votiva com as fotos dos desaparecidos. Dessa data em diante, o único fato novo relacionado ao episódio se deu em maio de 2012, quando a embaixada norte-americana na Cidade do México recebeu a remessa anônima de um baú trancado com cadeado, que depois de aberto revelou conter documentos, fotos e peças de roupa logo identificados como pertencentes aos membros da família Hogg, além de um pacote de jornais do Texas, abrangendo de 1935 até 2001, cujo exame nada revelou de significativo, por enquanto. 




2
Mary Jo Blessingame, 38 anos, atriz, fazia parte do elenco da peça “White Christmas”, em cartaz no Excelsior Theatre, em Baltimore, até a última noite da temporada, em 19 de maio de 1996. A última cena mostrava uma dança entre os doze atores da companhia, seis homens e seis mulheres encarnando personagens de diferentes idades, da mesma família, numa ceia de Natal. Ao longo da música os personagens trocavam de par, num clima de confraternização e alegria. A certa altura, um dos atores ficou sem par e constatou-se a falta de uma das atrizes, que segundos antes estava em pleno palco. Os contra-regras postados junto às saídas de cena garantem que ninguém passou por eles. Infelizmente a peça não foi fotografada nem gravada, de modo que é impossível precisar em que preciso instante ela já não estava mais no palco junto aos companheiros. A peça foi encerrada sem que o público percebesse nada de anormal, mas as investigações começaram nessa mesma noite. Mary Jo Blessingame era solteira, morava sozinha. Nunca mais foi encontrada. 



3
Em 1996, em Bananeiras (Paraíba), o professor Carlos Massilon Torres, 57 anos, precisou consultar um dicionário, e ao recorrer a sua estante verificou a ausência do respectivo volume. Como estava trabalhando em casa nesse dia, foi até a Biblioteca Municipal, que ficava próxima, e lá verificou que a coleção do dicionário de Caldas Aulete, em cinco volumes, estava também desfalcada do último, “Rociada-Zwingliano”. Um telefonema para um amigo acendeu-lhe a desconfiança: o quinto volume deste também tinha sumido. Vinte e quatro horas depois, o professor e seus amigos constataram que o volume 5 de todos os Caldas Aulete da cidade tinham sumido inexplicavelmente das estantes de seus donos, para as quais não retornaram até hoje. 



4
Um homem não identificado desapareceu em questão de segundos, na noite de 6 de janeiro de 2014, após ser atropelado numa estrada secundária perto de Langford, na Inglaterra. O motorista, o coronel reformado Matthew Westcalf, 61 anos, vinha num trecho reto da rodovia, em velocidade razoável, quando de repente emergiu um homem das árvores e atravessou a estrada correndo. O coronel não conseguiu frear e atingiu em cheio o desconhecido, jogando-o para o alto; imediatamente trouxe o carro para o acostamento e desceu para prestar-lhe socorro. Quase no mesmo instante dois carros que vinham logo atrás e viram o atropelamento também pararam, deixando acesos os faróis. Muito nervoso, o coronel constatou que o para-choque dianteiro estava amassado e com manchas de sangue, mas não foi possível localizar o corpo do homem atropelado. A polícia do trânsito foi chamada, buscas minuciosas foram feitas no bosque, num raio de cem metros a partir do local do acidente. O corpo desapareceu por completo. Amostras de sangue e de DNA foram guardadas pela polícia do condado, que até hoje busca uma explicação. 



5
A história da região da Anatólia, na Turquia, relata o polêmico episódio do desaparecimento da Árvore de Ouro, uma relíquia do período hitita, que durante uma guerra no século VI d.C. havia sido guardada numa gruta subterrânea, na lateral de uma colina. Diante da entrada da gruta ficou instalado um acampamento militar, que com o passar dos anos se transformou num quartel-vilarejo. A Árvore (que se dizia ter três metros de altura, com ramos, folhas e frutos cinzelados em ouro puro) nunca mais foi retirada, até que em 1955 o governo decidiu transferi-la para um Museu, em Ankara. Houve grande reação por parte da população local, mas o subterrâneo (que estava emparedado há séculos) foi aberto, constatando-se de imediato a ausência da árvore. Nos meses seguintes a colina inteira foi desmanchada com dinamite e jatos de água. A gruta (que não era muito profunda) foi totalmente exposta, mas não se descobriu qualquer sinal do paradeiro da Árvore de Ouro. 



6
O zoológico de Melbourne guarda ainda em seus arquivos o controvertido relato do que aconteceu em março de 1962 no seu setor de feras tropicais. Cordelion, um dos seus leões mais antigos, nascido no cativeiro, desapareceu inexplicavelmente de sua jaula, na noite de 8 para 9 daquele mês. A primeira ronda dos vigias, ao amanhecer, constatou a jaula vazia, fechaduras intactas, nenhum sinal do animal. Foi dado o alarma, e buscas intensas tiveram lugar durante o dia, enquanto os diretores discutiam a viabilidade de um alarma lançado a toda a população. Foi decidido que o caso seria abafado até terem idéia de para onde a fera teria fugido (a questão do “como” foi posta de lado, por irrespondível). Duas noites depois, num setor onde a vigilância não fora reforçada, Cordelion reapareceu na jaula do tigre Sharkan, intacto e saudável. Numerosos exames foram feitos comprovando que estava bem alimentado (com seu alimento costumeiro) e sem sinais de violência ou dano físico. Mas o tigre desapareceu de modo igualmente inexplicável, e continua assim até hoje.



7
O Trem de Prata, que durante décadas fez a ligação ferroviária entre o Rio de Janeiro e São Paulo, foi desativado em definitivo a partir de 1998, alegadamente por problemas de manutenção e pela concorrência com a Ponte Aérea. Pesou para esta medida, no entanto, o inexplicável evento que se deu em maio de 1998, quando o trem partiu do Rio de Janeiro, com dez vagões como de hábito, às 20:00, e, sem fazer nenhuma parada no trajeto, chegou ao amanhecer na estação Barra Funda (SP), com um vagão dormitório a menos. A perplexidade dos fiscais e funcionários da RFF era justificada, pois o vagão desaparecido, o sexto, vinha com oito passageiros, distribuídos por três cabines, estando as demais desocupadas (um sinal da decadência que a linha já experimentava). O mais intrigante, contudo, além de impossibilidade material de desaparecimento de um vagão num trem em movimento constante, foi que demonstrou-se impossível recolher informações sobre quaisquer dos passageiros que vinham no vagão. Nenhum familiar ou amigo queixou-se de seu desaparecimento, e os documentos com que se registraram para a viagem (eram no total três homens, quatro mulheres e uma criança) revelaram-se falsos. O caso provocou uma grave crise de responsabilidade administrativa, que contribuiu para o fechamento da linha, menos de um ano depois. 
­

8
A realização dos Jogos Estudantis das escolas públicas de Minas Gerais, em junho de 1966, foi marcada por um episódio não esclarecido até hoje. Delegações de várias cidades mineiras vieram a Belo Horizonte para a realização de disputas esportivas que tiveram como local principal o complexo de esportes da Pampulha. Após o encerramento dos Jogos, as autoridades constataram o desaparecimento de seis alunos de diferentes colégios, vindos de diferentes cidades. Ao que parece, todos desapareceram dos alojamentos, ou dos vestiários, ou das arquibancadas onde foram vistos pela última vez pelos colegas, tendo consigo apenas a roupa do corpo, já que sua bagagem e mochilas foram encontradas nos alojamentos, do jeito que eles as deixaram. O que causou um espanto adicional nas autoridades policiais, e nos responsáveis pelas delegações, foi que os seis garotos, cujas idades variavam de doze a dezessete anos, chamavam-se todos Félix (com diferentes sobrenomes). Não se conheciam entre si, pelo que foi apurado; e até hoje nenhum indício foi descoberto sobre o seu paradeiro, bem como sobre as razões para esse sumiço. 


(Imagens meramente ilustrativas.)
 
 








sábado, 21 de janeiro de 2023

4905) A poesia na era da tecla ENTER (21.1.2023)




Existem algumas sutilezas curiosas na teoria poética. Elas dependem de uma capacidade nossa de perceber por instinto, num golpe de olhos, a diferença entre prosa e poesia.  
 
Nossos olhos percebem um texto antes de começar a lê-lo. Percebem certas características do texto – e o avaliam quase inconscientemente, induzidos por experiências prévias (“quando o texto tem um formato assim-ou-assado, é porque se trata de um texto assim-ou-assado”). 
 
Uma coisa bem “básico-do-básico” é o formato de uma lista. Suponhamos que alguém me pediu para fazer uma lista de cinco filmes que eu considero grandes obras. Eu posso fazer essa lista assim: “Oito e Meio” de Fellini; “Terra em Transe” de Glauber Rocha; “O Sétimo Selo” de Ingmar Bergman; “Mickey One” de Arthur Penn; “O Último Metrô” de François Truffaut. 
 
É uma lista, mas a lista vem diluída num formato de texto corrido, e só começa a ser identificada como lista no momento em que começamos a ler. Na cabeça da gente, lista é uma coisa que tem o seguinte visual: 
 
·         “Oito e Meio” de Fellini
·         “Terra em Transe” de Glauber Rocha
·         “O Sétimo Selo” de Ingmar Bergman
·         “Mickey One” de Arthur Penn
·         “O Último Metrô” de François Truffaut
 
Listas são assim, segmentadas, verticalizadas, com ou sem numeração.
 
Um meme que circula muito por aí faz uma brincadeira justamente com essa expectativa, e a frustração dessa expectativa:


É uma experiência divertida de metalinguagem, e se vale em primeiro lugar desta nossa expectativa com relação ao formato das listas. O sujeito diz: “Coisas que eu odeio: 1) Vandalismo” (e ele já começa vandalizando uma parede de azulejos, escrevendo em cima dela); “2 – listas” (e nesse instante já ficou bem clara a intenção – ele está sacaneando o próprio enunciado); “3 – ironia” (neste ponto a gente já entendeu qual a “chave” da piada, e nossa terceira risada não é mais de surpresa, e sim de confirmação); “4 – listas” (a risada é menor, “ué, listas de novo?”; “5 – repetição” (volta a risada, porque no 5 a gente entende a função do 4); “F – inconsistência” (aqui a risada é maior, porque a piada vem “fora da caixa”). 
 
Dá até para sugerir a proposta (meio ousada) de considerar que a Lista é um gênero literário. Tem  uma estrutura, tem uma organização no espaço, tem uma dinâmica interna que pode ser explorada para produzir emoção, informação, contradição, elucidação de mistérios, etc. 
 
A literatura escrita tem essa relação com o espaço visual da página; certos manuscritos medievais estão numa zona limítrofe entre a literatura e as artes plásticas, de tão ricas e criativas que eram as “iluminuras” em volta do texto. 
 
Hoje em dia, num livro, qualquer livro, o texto surge como bloco de linhas, quando viramos a página, antes de começarmos a ler. O leitor habitual já pensa, distraidamente: “ih, lá vem textão”, ou então “ah, essa página vai ser coisa rápida”. 
 
Exemplo 1:




Esta é uma reprodução da primeira página de um conto de Edgar Allan Poe. Poe publicava na primeira metade do século 19, quando a prática editorial era aproveitar ao máximo o espaço da página e enchê-lo de texto até onde fosse possível.
 
Quando editei pela Casa da Palavra os Contos Obscuros de Edgar Allan Poe (2010), houve algumas discussões sobre o fato de alguns  textos serem um “bife” contínuo de várias páginas sem uma só quebra de parágrafo. O pessoal da editora dizia: “Não precisamos ser fiéis à diagramação original. O leitor de 2010 é outro. Vamos quebrar parágrafos, ‘clarear’ a página”. E me parece uma decisão sensata. Talvez uma edição acadêmica, preciosista, científica, se sinta obrigada a seguir o mesmo formato da primeira publicação dos textos. (E mesmo isto é questionável, pois em vida do autor o mesmo texto geralmente é editado em diferentes diagramações.) 
 
Exemplo 2:

Aqui está uma típica página do grande Luis Fernando Verissimo, com seu diálogo em ping-pong. Se a página de Poe é uma página “escurecida” pela quantidade de texto, a página de Verissimo é uma página bem clarinha. Uma coisa repousante para o leitor. Já vi “manuais de redação” aconselhando: nunca faça parágrafos de 10 linhas ou mais; isto espanta o leitor. Quebre tudo em unidades menores, sempre que possível. 
 
Eu sigo esse conselho – sempre que possível. Porque para mim um parágrafo, mais que uma unidade visual, é uma unidade rítmica. Há um arco de leitura que começa na primeira frase e termina na última. Às vezes esse arco se esgota em quatro ou cinco linhas, às vezes precisa de quarenta ou cinquenta. Paciência. 
 
Isto nos traz finalmente à questão da poesia. 
 
A linha quebrada da poesia é a marcação de uma unidade rítmica.
 
Quando a gente está usando formas fixas, o número fixo de sílabas deixa as linhas poéticas com o mesmo tamanho, aproximadamente:


 
O número fixo de sílabas (7 sílabas poéticas, no caso dos folhetos de cordel da foto acima) é uma medida rítmica universal, mas não é a única. O famoso poema “Howl” (“Uivo”, 1956) de Allen Ginsberg, tem linhas enormes, longuíssimas, que se prolongam até não poder mais: 


Qual a explicação de Ginsberg para essas linhas intermináveis, que esbarram na margem direita da página e precisam ser acomodadas abaixo até onde Deus der? Ginsberg era da geração da poesia oral, recitada, berrada nos auditórios, sussurrada ao microfone dos bares. E ele explica:
 
Idealmente, cada linha de Uivo é uma unidade de respiração... Minha respiração é extensa, e esta é a medida, uma inspiração físico-mental do pensamento, contida na elasticidade da respiração... (...) Desse modo, você acomoda a linha do verso na página de acordo com o ponto onde a sua respiração se esgota, e acomoda o número de palavras dentro de cada ‘respiro’, seja longo ou curto, e assim estes versos longos ganharam forma. (trad. BT)
 
Cada poeta é livre para organizar a apresentação de seus versos na página. Não podemos esquecer o verso de Maiakóvski, que costumava partir cada linha de verso em dois ou três segmentos que se enfileiravam como degraus descendentes de uma escada:


A linha, do modo como aparece inscrita na página, indica um ritmo. Não é uma obrigatoriedade; cada leitor lê do seu jeito, mas o poeta sugere uma leitura, talvez a leitura preferencial na opinião dele, que é autor, mas nunca será a única possibilidade. 
 
As pessoas que costumam ler e recitar poemas se dividem geralmente em duas leituras típicas. 
 
Na primeira, a pessoa faz uma pequena pausa ao chegar no fim da linha, mesmo que a frase esteja se prolongando pela linha seguinte. Mas o recitador entende que é interessante fazer essa pausa quase imperceptível para indicar à platéia que uma linha gráfica se encerrou naquele ponto. (Eu prefiro ler assim). 
 
Na segunda leitura, a pessoa ignora os “finais de linha” e lê as frases obedecendo ao ritmo de cada uma, e à pontuação gramatical; lê como se se tratasse de um texto em prosa, lê ignorando a divisão em linhas. Isto é errado? De maneira nenhuma, é certíssimo também. É apenas outra maneira de fazer. 
 
O que não deve ser ignorado – por quem escreve, por quem lê, por quem critica – é que a linha poética é uma forma de pontuar, de indicar pausas, de delimitar unidades. Fernando Pessoa, que fazia verso curto, verso longo, verso metrificado e verso livre com a mesma competência, discute os poemas de ‘Álvaro de Campos’, que alguns leitores acusavam de ser mera prosa em linhas interrompidas, e avisa, na sua “Nota Preliminar”: 
 
O que verdadeiramente Campos faz, quando escreve em verso, é escrever prosa ritmada com pausas maiores marcadas em certos pontos, para fins rítmicos, e esses pontos de pausa maior, determina-os ele pelos fins dos versos. (...) Se Campos, em vez de fazer tal, inventasse um sinal novo de pontuação – digamos o traço vertical ( | ) para determinar esta ordem de pausa, ficando nós sabendo que ali se pausava com o mesmo gênero de pausa com que se pausa no fim de um verso, não faria obra diferente, nem estabeleceria a confusão que estabeleceu.
 
Jorge Luís Borges, em seu “Prólogo” à coletânea de poemas Elogio da Sombra (1960, trad. Carlos Nejar e Alfredo Jacques), adverte: 
 
Comum é afirmar que o verso livre não é outra coisa senão um simulacro tipográfico; penso que nessa afirmação se oculta um erro. Para além de seu ritmo, a forma tipográfica do versículo serve para anunciar ao leitor que a emoção poética, não a informação ou o raciocínio, é o que o está esperando.
 
Certa vez, conversando com um amigo poeta, já nesta confortável Era Do Computador, perguntei como ele costumava dividir os versos do poema. Ele disse: “Ah, agora é fácil, eu vou escrevendo tudo em texto corrido. Quando acabo, volto pro começo e vou quebrando as linhas com a tecla Enter, quebro uma aqui, outra acolá...”
 
Fiquei maravilhado com esta varinha-de-condão, tão prestimosa, tão acessível, e escrevi o poema abaixo, que resgata, num outro patamar de sensibilidade e ritmo, algumas idéias contidas no parágrafo inicial deste artigo:
 
Existem
algumas sutilezas curiosas
na teoria poética. Elas
dependem de uma capacidade nossa
de perceber
por instinto,
num golpe de olhos,
a diferença entre prosa
e poesia. 
 


("Poema" – Joaquim Cardozo)
 





quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

4904) A sabedoria, de Lao-Tsé a John Lennon (18.1.2023)



 
Já comentei aqui um dos meus episódios preferidos da História – ou das lendas da História, o que vem a dar no mesmo. Uma relato que inclusive mereceu um poema escrito por Bertolt Brecht.
 
O sábio chinês Lao-Tsé, já com mais de 70 anos, resolveu se aposentar e ir morar numa região distante. Empacotou meia dúzia de coisas essenciais (um livro, um cachimbo, etc.), montou num boi puxado por um menino, e pegou a reta. Chegando num posto de fronteira, o guarda perguntou ao menino quem era aquela figura. 
 
– É um homem sábio – disse o menino, todo orgulhoso. – Ele descobriu como a água mole é capaz de partir a pedra dura. E que a dureza não dura para sempre. 
 
O guarda mandou que passassem, porém mal eles tinham andado alguns metros, correu atrás. Disse que se o homem era mesmo tão sábio devia colocar por escrito essa sabedoria, para que gente ignorante como ele, o guarda, pudesse ter algum proveito. 
 
Lao-Tsé olhou as roupas surradas e o jeito modesto do guarda, e achou que essa era uma boa idéia. Além do mais, recusar o pedido pareceria um ato pouco amistoso. Durante sete dias, ele dormiu na cabana do guarda, e procurou resumir da maneira mais clara possível os pontos essenciais de sua filosofia. Quando terminou, deu de presente ao guarda o manuscrito, que constava de 81 fragmentos. 



 
O manuscrito é conhecido hoje como o Tao Te  Ching – O Livro do Caminho Perfeito, e circula pelo mundo, em todas as línguas, há cerca de 2.500 anos. É um livro pequeno: esta edição que tenho, em inglês (Ed. Shambhala, Boston, com tradução e adaptação de Ursula LeGuin) tem apenas 125 páginas, incluindo prefácio e notas. 
 
Bertolt Brecht termina seu poema dizendo:
 
Mas as honrarias não são devidas apenas
ao sábio que assinou o manuscrito.
A sabedoria de um homem precisa ser arrancada,
e por isso o guarda da fronteira merece o seu quinhão.
Foi ele quem fez o livro ser escrito.
 
Walter Benjamin, que esteve na companhia de Brecht poucas semanas depois do poema ser composto, comenta a metáfora da “água mole” dizendo que “quem deseja fazer com que a dureza seja derrotada não deve perder nenhuma oportunidade para fazer um gesto amistoso”. (Bertolt Brecht – Poems 1913-1956, Methuen, London, 1976, ed. John Willett, p. 572).
 

Corta para o ano de 2022, Rio de Janeiro. Estou eu, “nas minhas madrugadas”, como dizia Paulinho da Viola, acompanhando as mensagens num dos meus grupos de Facebook, dedicado à obra dos Beatles. E vejo o seguinte diálogo entre pessoas que não conheço (a tradução é minha): 
 
Karl McDermott
Ao que parece, um professor espanhol encontrou John Lennon na Espanha, durante as filmagens de “How I Won The War”, em outubro de 66, e disse que usava as canções dos Beatles para ensinar inglês aos seus alunos, mas às vezes não entendia direito as palavras. Lennon respondeu: “Bem, se é assim, no próximo disco vou mandar imprimir as letras na contracapa!”
 
Horas depois apareceu, embaixo do post dele, este comentário:
 
Pepa Martínez Jiménez
Karl McDermott, isto é 100% verdadeiro. Esse homem foi meu professor durante alguns anos, e já conheço bem esta história. Ele manteve contato com Lennon durante algum tempo, depois desse encontro. Mesmo hoje, cinco anos após sua morte, os alunos guardam boas lembranças dele. 
 
Quando li isto, não resisti a comentar:
 
Braulio Tavares
Pepa Martínez Jiménez, fala pra gente o nome do teu professor.
 
A resposta não demorou muito:
 
Pepa Martínez Jiménez
Braulio Tavares, o nome dele era Juan Carrión.



Talvez pareça estranho para pessoas mais jovens, mas cinquenta anos atrás não era muito fácil conseguir letras de músicas, nacionais ou estrangeiras. Quem se interessasse, tinha duas opções. A primeira era “tirar a letra” voltando muitas vezes a agulha no disco até conseguir copiar verso por verso. Ainda tenho velhas pastas esbagaçadas pelo tempo, cheia de letras que copiei assim, no pé da vitrola. 
 
A segunda opção era recorrer às numerosas “revistinhas de letras de música”, que eram abundantes justamente por causa desse problema. Vamos Cantar, Cante Comigo, A Modinha Popular, O Samba, Só Sucessos... Esta solução, como a maioria das soluções, criava um novo problema, porque a confiabilidade das letras transcritas não era grande coisa. Vendo as aberrações nas letras em português a gente já avaliava o nível de competência de quem estava tirando as letras de rock. 
 
Essas revistas evoluíram, já nos anos 1970, para a histórica “Vigu”, Violão & Guitarra, que além das letras trazia as cifras dos acordes no violão. Foi mais importante do que a decifração da Pedra de Rosetta. Para quem já “arranhava” o Método Paulinho Nogueira, era um aleluia.
 
Ainda hoje canto errado essa ou aquela letra de rock por causa do vício que essas revistinhas deixaram de herança. Agora, com a Web, letras criteriosas e corretas não faltam. Meu saite preferido, simples e organizadíssimo, é o AZ Lyrics (https://www.azlyrics.com/).
 
Mas... deixem-me erguer um brinde nesta noite chuvosa de sábado ao meu desconhecido amigo Juan Carrión, que, com a humildade de um guarda de fronteira, conseguiu convencer um roqueiro sábio de que era importante tornar sua sabedoria acessível aos simples mortais. E outro brinde a Lao-Tsé e a John Lennon, que entenderam, sem esnobismo, sem pose, o quanto era importante dar uma colher de chá às pessoas interessadas em entendê-los.
 
Uma última nota: alguns anos depois do episódio espanhol, George Harrison compôs, e os Beatles gravaram, uma adaptação do Fragmento 47 do Tao Te Ching, sob o título “The Inner Light”, cuja letra diz:
 
Você não precisa cruzar a porta
para saber o que acontece no mundo.
Você não precisa olhar pela janela
para ver o caminho do paraíso.
Quanto mais você viaja,
menos você fica sabendo.
 
Assim, o espírito sábio
não vai, mas conhece;
não olha, mas vê;
não age, mas faz acontecer.



 
 






domingo, 15 de janeiro de 2023

4903) Temas clássicos da narrativa policial (15.1.2023)



(by Tom Gauld) 

 
Algumas ressalvas, de início. Primeiro, que esta lista não quer ser exaustiva. Segundo, que os temas não se limitam ao romance, estão prsentes também no conto, no cinema, etc.  São, a rigor, temas da narrativa policial. Terceiro, que “policial” é um termo constantemente criticado pelos que preferem “literatura de mistério”, “ literatura de crime”, etc., de acordo com o elemento que predomina em cada história. É uma discussão importante, mas à parte.
 
Compus a lista abaixo há muitos anos, sem outra pesquisa a não ser minha memória das histórias que li.


O quarto fechado
São as histórias de “locked room” (também ditas “de sala trancada”), os crimes impossíveis onde, na versão mais simples, a vítima é encontrada morta num aposento trancado por dentro, sem qu se saiba como o assassino entrou ou saiu. Desta situação básica foram criados alguns milhares de variantes. Em 2021, publiquei pela Ed. Bandeirola (SP) a antologia Crimes Impossíveis, com dez contos clássicos desta vertente.
 


 
A mensagem do morto
A vítima é ferida, mas em seus últimos instantes de consciência tenta deixar uma pista denunciando quem a matou – fazendo um gesto, rabiscando uma palavra, indicando um objeto, etc.  A pista tem que ser de tal natureza que mesmo vista pelo assassino não lhe chame a atenção, pareça um movimento sem sentido; e ao mesmo tempo deve chamar a atenção do detetive e permitir-lhe a associação de idéias correta.
 
Ellery Queen é um dos que exploraram com mais inteligência este tema (A Tragédia de X, “Mum is the Word”, “G. I. Story”, etc.). Há geralmente um ar de implausibilidade neste recursos – que pessoa, agonizando com um tiro ou uma punhalada, teria tempo de raciocinar e conceber uma denúncia desse tipo? Mas, ressalvando este detalhe, é o tipo de história que repousa sobre apenas um detalhe enigmático, e esse detalhe, em tese, indica de forma precisa a identidade do assassino.
 



O documento desaparecido
Um documento desaparece, sabe-se que não foi destruído, e é preciso reavê-lo a todo custo. Muitas vezes é um testamento, ou a prova de um crime, ou uma carta comprometedora... O precursor mais ilustre é “A Carta Furtada” de Edgar Allan Poe. Em muitos casos o autor segue a tática de Poe de revelar no fim que o documento estava apenas disfarçado, mas, num certo sentido, à vista de todos. Histórias deste tipo não precisam necessariamente envolver crimes. São histórias de mistério e engenhosidade, apenas. 
 
Lembro de ter lido no Mistério Magazine de Ellery Queen uma história (não sei de quem) de um velho, dono de uma mansão com imenso jardim, que tentava deixar sua grana para alguém, e a família (hostil) era contra. No fim da história, alguém percebe que antes de morrer ele havia plantado flores amarelas em todo o jardim, e quando florescem todas ao mesmo tempo formam o texto (lacônico, por suposto) do testamento.
 
É um conto típico da “fase rococó” de um subgênero, quando todas as variantes já foram testadas e é preciso inventar truques cada vez mais imaginosos.



O álibi perfeito
Todo criminoso, de acordo com o beabá detetivesco, tem que dispor de três elementos: o motivo, a arma e a oportunidade. Neste último detalhe repousam todas as histórias que giram em torno do álibi. Um álibi é qualquer circunstância provando que o suspeito não poderia cometer o crime porque não teve a oportunidade; geralmente, ele consegue provar que na hora do crime estava em outro local. 
 
Vai daí que muitas histórias policiais “às avessas” (narradas do ponto de vista do criminoso) mostram a preparação cuidadosa de um falso álibi. Sempre é possível produzir a impressão de que “A” não poderia matar “B” porque estava em outro local naquela hora, ou então produzir a impressão de que “B” foi morto em outro momento (neste caso é mais difícil, pois a medicina pode estabelecer uma faixa de certeza quanto à hora do crime). 
 
Um exemplo muito bom, de autor brasileiro, é o romance de Fernando Sabino A faca de dois gumes (1985), em que o protagonista comete um crime no Rio de Janeiro, tendo preparado tudo para provar que estava em São Paulo naquela hora. O livro foi adaptado para o cinema por Murilo Sales.


 
As mortes em série obedecendo a um padrão
O subgênero “serial killer” estava num certo ostracismo cinquenta anos atrás. Acho que foi ressuscitado pelo sucesso do filme O Silêncio dos Inocentes (1991) de Jonathan Demme, que ganhou o “Grande Slam” do Oscar: Melhor Filme, Diretor, Roteiro, Ator e Atriz. Daí em diante, serial killers despencaram em catadupa sobre as nossas telas. Hoje, são tema de séries documentais de TV. O serial killer é o maior mito pop do século 21.
 
A narrativa detetivesca coloca para si mesma esta questão: Qual o elo que liga essas mortes? O que fez este assassino matar estas pessoas, e não outras? 
 
Na vida real, sabemos que para a maioria dos serial killers a pessoa da vítima é o que menos importa. Não são crimes de ódio ou de vingança pessoal. O crime é um ritual que ele cumpre para benefício próprio, e a vítima está ali como uma rês anônima sendo sacrificada num altar pagão.
 
A literatura, no entanto, exige significado, deliberação, arquitetura. Esses crimes têm que ter uma razão para acontecer – nós (os detetives) é que não percebemos ainda. E quando percebemos somos capazes até de prever quem será a próxima vítima. É um tema que percorre desde o terror criminal de O Abominável Dr. Phibes (1971, Robert Fuest) até A Noiva Estava de Preto (livro de Cornell Woolrich, filme de François Truffaut) e Seven (1995, David Fincher).


As mensagens enviadas pelo criminoso, fornecendo pistas indecifráveis
Outro lugar comum dos serial killings é o fato de que o criminoso faz um jogo de gato-e-erato com a polícia, enviando mensagens intrigantes ou ameaçadoras. Jack o Estripador, o serial killer arquetípico, fez isto com a polícia londrina, enviando até algumas estrofes de doggerel (versos populares) zombando da impotência policial. 
 
Um clichê da narrativa de suspense baseada nisto é o fato de que o assassino envia pistas de quem será a próxima vítima, e faz a polícia se desesperar na tentativa de decifrá-las, para evitar que o crime aconteça. Uma inteligente adaptação deste tema está no conto “O Chá Doido” (“The Mad Tea-Party”) de Ellery Queen.




O roubo da jóia trancada a sete chaves
Como roubar uma jóia (ou um quadro, um objeto de arte, etc.) de alto valor, quando se sabe que este roubo será praticado, e o dono do objeto tomou todas as providências para evitá-lo? Este tema reúne alguns elementos do “quarto fechado” e também do “documento desaparecido”. Trata-se de mostrar que por mais que alguém guarde, trancafie e proteja um objeto, ele poderá ser roubado.
 
Entram aqui alguns dos mais famosos ladrões da narrativa policial: de Arsène Lupin a Raffles, do Sinete Cinzento (de Frank Packard) a Simon Templar, “O Santo” (de Leslie Charteris). Nenhum furto parece impossível a esses mefistofélicos articuladores de planos que podem envolver de tudo: passagens secretas, substituições relâmpago, subornos imprevisíveis, trocas de identidade, manobras diversionistas... 
 
O Ladrão, aliás, é um personagem à parte na narrativa de crime. Muitas vezes não é o ladrão banal, que rouba para lucro próprio. É o indivíduo que faz do furto uma arte, uma habilidade à disposição de quem possa pagar por ela. O ladrão é um profissional contratado para executar uma manobra de alto risco. E não conheço exemplo melhor do que Karmesin, o herói mirabolante criado por Gerald Kersh, para quem tanto faz roubar um cadáver do necrotério quanto a água de uma piscina.
 



A casa isolada e os crimes sucessivos
É o subgênero também chamado de círculo fechado (“closed circle”). Um grupo de pessoas está reunido num lugar qualquer, com pouca possibilidade de contato com o mundo exterior, e uma série de crimes começa a acontecer, deixando claro que o criminoso provavelmente é um deles. Os lugares e as situações variam: uma ilha longe da costa (Glass Onion, Rian Johnson), uma casa cercada por um incêndio (The Siamese Twin Mystery, Ellery Queen), um hotel isolado pela nevasca (The Mousetrap, Agatha Christie), uma casa de campo isolada pela chuva (The Mad Tea Party, Ellery Queen).
 
Este subgênero pode equilibrar os fatores de mistério e de suspense, uma vez que se torna claro para todos que novos crimes deverão acontecer, e ninguém pode fugir dali.
 



O amnésico acusado de um crime e investigando por conta própria
Um homem desperta meio zonzo, geralmente depois de uma bebedeira, ou de uma pancada na cabeça; e descobre que meses ou anos se passaram desde a última vez que consegue lembrar-se. Onde ele estava, e o que fez durante esse tempo? O homem com amnésia descobre, nas primeiras horas após recuperar sua personalidade original, que está com documentos que não são os seus (embora a foto seja sua), roupas que não conhece, e pessoas desconhecidas o abordam com estranheza. E descobre que provavelmente cometeu um crime nesse período de que não se lembra.
 
Uma variante desse tema começa com o protagonista despertando amnésico – a história irá relatar seus primeiros dias ou meses sem lembrar quem é, metendo-se em enrascadas e sem ter a quem recorrer. 
 
Mistério e suspense se juntam nas narrativas em que o protagonista tenta colar os cacos de si próprio. Um clássico no cinema é Memento (2000, Christopher Nolan). Uma adaptação do tema para o techno-thriller político é a série iniciada com A Identidade Bourne (2002, Doug Liman). Na literatura, lembro de A Cortina Negra (Cornell Woolrich), Morte Inglória (Hugh McCutcheon), sobre os quais escrevi aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2010/08/2324-amnesia-1982010.html
 



(The Lodger, 1927, Alfred Hitchcock)
 
O vizinho (inquilino, locador) misterioso
Num hotel, pensão, casa de cômodos, etc., surge um belo dia um indivíduo misterioso, esquisito, que nada faz de censurável ou de agressivo, mas que incomoda pelo seu ar “diferente” ou hábitos estranhos. Crimes acontecem na vizinhança. Terão relação com a chegada dele?  The Lodger (1911) de Marie Belloc Lowndes é um clássico deste subgênero, e foi adaptado ao cinema por Alfred Hitchcock (1927). 
 
Uma variante inevitável é a do vizinho “estudadamente simpático”, alguém que fala com todo mundo, paga bebidas, faz favores antes que eles sejam solicitados, dá sempre um jeito de se meter na vida dos outros hóspedes, torna-se aquele sujeito de quem alguém só consegue se livrar com grosseria. E logo surge a suspeita de que ele está tentando amealhar amizades, e se garantir contra algo.
 
............
 
E por aí vai. Falo alternadamente dos tópicos acima como “temas” e como “subgêneros”. A tendência, na literatura popular, é que um tema, ao fazer sucesso, seja repetido com variantes pelo próprio autor inicial, ou por outros. Se este sucesso aumentar, ele se transforma num subgênero, com regras próprias que serão um conjunto das regras propostas nas diversas variantes. “Regras” é um termo muito forte: digamos que todas estas histórias, vistas em conjunto, apontam caminhos, que um novo autor pode usar ou não, de acordo com sua conveniência.