domingo, 9 de agosto de 2009

1190) A arte do duplo sentido (5.1.2007)



Já não se fazem músicas de duplo sentido como antigamente. Uma das coisas mais difíceis na vida é ser fiel a um princípio e criticar os erros de sua aplicação. No momento em que fazemos uma dessas críticas, salta logo um inconformado; “Mas você não é a favor? Tá reclamando de quê?” Eu gosto, por exemplo, destes forrós nordestinos com letras de duplo sentido, que parecem estar dizendo uma coisa bem inocente mas que têm um subtexto, um trocadilho ou uma alusão de natureza sexual. Gosto porque faz parte de nossa linguagem, de nossa cultura, de nossa molecagem, de nossa maneira maliciosa de provocar as garotas dizendo uma coisa mas mostrando que estamos pensando em outra. Faz parte do jogo de sedução, da provocação bem humorada e não-ofensiva. Quando parte para o palavrão agressivo, o termo escatológico usado para escandalizar, perde a graça. Deixa de ser duplo sentido. Fica repetindo uma coisa só, sem sutileza, sem malícia, sem sedução que faça a menina avermelhar o rosto.

Quando Luiz Gonzaga diz “Eu tava na peneira, eu tava peneirando, eu tava no namoro, eu tava namorando”, o balanço da peneira de farinha é usado para sugerir o balanço erótico dos quadris, o que é reforçado quando ele diz que “de madrugada nós fiquemo ali sozinho...” Existe a malícia sadia do sertanejo jovem que não pode ver uma caboca dando sopa. Existe erotismo, um erotismo que se cobre com a folha-de-parreira da linguagem inocente: o que é isso, papai, a gente tava só peneirando a farinha...

Não sei até que ponto Rosil Cavalcanti tinha intenção de malícia quando inventou uma das cenas mais surrealistas de nossa música: a comadre Sebastiana pulando feito uma guariba, e gritando: “A, E, I, O, U, ipsilone!” Temos em primeiro lugar a rima em “U”, que é sempre uma das mais maliciosas. E em segundo lugar, sabemos todos que “picilone” é gíria popular para “palavrão”: “Fulano ficou danado da vida, gritou meia-dúzia de picilones e foi-se embora”. E existe também (aqui entramos num plano mais icônico-simbólico, mas tudo bem) o fato de que a própria letra Y sugere, em seu grafismo, a visão, a curta distância, do púbis feminino.

Rosil reincide noutra gravação, esta claramente maliciosa: “Quadro Negro”. Todos lembram, na voz de Jackson do Pandeiro, a história dos alunos da vaidosa D. Filomena, professora na vila de Acauã. Sempre muito vaidosa, mas seu modo de sentar proporcionava “cinema sem despesa” para os alunos sentados na fila da frente. Ela pergunta por que é que os alunos estão tão calados, e o narrador, num rasgo de audácia infantil, diz: “Eu então respondi à Filomena que eu estudo é olhando o ‘quadro-negro’!” E o refrão diz: “Um B com A, bêabá... Um B com E, bêebé... Um B com I, bêibí... Um B com O, bêobó... Ora vão estudar que é melhor!” É a própria professora quem exclama, ao se aproximar da perigosa região das palavras começadas por “bêubú”, fonte perpétua de atração para garotos que nunca leram Freud.

1189) Desnegação (4.1.2007)


(imagem: Duvet)

Andei comentando aqui (“Penumbras do Idioma”, 28 de setembro; “Três lapsos da língua”, 7 de outubro; “A linguagem dos sonhos”, 13 de outubro) o processo como o Inconsciente forma suas imagens, pegando aspectos contraditórios e fundindo-os num único conceito. Freud estudou isto, inclusive, na formação de idiomas antigos, onde existem palavras formadas por dois antônimos que exprimem uma única idéia.

Todas as línguas têm esta aparente contradição, que às vezes é resolvida pelo tom de voz ou pela linguagem gestual. Usamos “pois não” para concordar com algo ou conceder um pedido; e usamos “pois sim!” para manifestar nossa discordância ou incredulidade. Um estrangeiro costuma se desorientar um pouco com isto. Para nós, em ambos os casos, o conteúdo manifesto da frase é subjugado pela força do “jeito de dizer”, que é quem define.

No relacionamento entre o Real e o Fantástico ocorre algo parecido: a união de opostos. André Breton afirmava que existe uma região da mente em que contrários como Vida e Morte, Real e Fantástico, Corpo e Mente, deixam de ser percebidos como contraditórios, e que é nessa região que o Surrealismo pode florescer. Muitos estados psicóticos têm nessas contradições um dos seus sintomas mais insistentes. Experiências alucinógenas, experiências místicas, técnicas de meditação: tudo isto acaba, cedo ou tarde, interferindo neste ponto do nosso software conceitual. Quando nossa mente se liberta momentaneamente das regras da razão e da lógica, percebe como idênticas certas coisas que parecem ser opostas. Tem gente que não suporta esta experiência e endoidece. Tem gente que agüenta o tranco e passa a ver o mundo com mais jogo-de-cintura.

A literatura fantástica faz o mesmo. O primeiro título que Bram Stoker pensou para seu romance Drácula foi “The Dead Undead” (“O Morto Não-morto”). Mary Shelley, autora de Frankenstein, tem outro romance fantástico intitulado “The Mortal Immortal”. E assim por diante. O Fantástico é a possibilidade de considerar como real um fato contraditório, impossível, a junção de duas coisas que não podem ser consideradas em conjunto. Algo que é homem e animal. Algo que está ausente mas está presente. Algo que já aconteceu mas está acontecendo e novo. E assim por diante.

Isto faz nossa mente fugir à Ditadura da Tautologia, a qual nos diz, por exemplo, que um clip serve apenas para prender folhas de papel e em hipótese alguma pode ser usado para rasgar o celofane de um CD, ou que um vaso de flores não pode ser usado para nocautear um assaltante. Ora, as coisas são o que são, mas nem por isto são apenas isto. Histórias de fantasmas, por exemplo, fazem os mortos aparecerem impossivelmente no mundo real. E com isto revelam o fato inconteste de que eles aparecem o tempo inteiro em nossas mentes, com a mesma assiduidade das pessoas ainda vivas. São os mortos não-mortos, são corpos que viraram imagens, são fatos que viraram histórias, e são tão reais quanto nós.

1188) Da Jovem Guarda ao Mangue Beat (3.1.2007)


(Chico Science)

Comentei aqui uma teoria (“O Rock e a Bossa Nova”, 23.11.06) segundo a qual o equivalente brasileiro ao rock americano não é o rock brasileiro, e sim a Bossa Nova, por ser ela, entre nós, o que o rock foi entre eles: a apropriação de uma música negra por parte de músicos brancos de classe média (os blues lá, o samba aqui). É uma simplificação? É, mas toda comparação simplifica. Quando a gente diz que o mapa da Itália parece uma bota, ou que a Lua crescente parece uma foice, está simplificando, mas as semelhanças são óbvias. É preciso saber que semelhança de processo não é a mesma coisa que semelhança de resultado. O poeta Alexei Bueno afirmou certa vez que o sucessor de Olavo Bilac foi Mário de Andrade, mesmo tendo posições estéticas e políticas totalmente opostas. Mas Mário fez, em seu lugar e seu tempo, o mesmo processo de aglutinação e síntese que Bilac tinha feito no dele.

O que chamamos de Rock Brasileiro é na verdade um movimento de apropriação cultural completamente diferente do rock americano. Não tem nada a ver com lançar mão da música negra, acústica, rural, das comunidades mais pobres. É uma tentativa de imitar uma música que nos chega de fora; a tentativa de produzir “um similar nacional”. Não há nada de errado com isto, porque a maioria dos países faz isto, e não apenas os países subdesenvolvidos. Grande parte da vitalidade cultural dos EUA e do Japão se deve a essa sua disposição permanente de observar, imitar e reproduzir coisas que deram certo em outros países. Fazem uma montanha de lixo que não tem mais tamanho, mas no meio desse processo criam um mercado, esquentam a economia, geram empregos, atraem talentos, e cedo ou tarde começam a pipocar coisas originais e inteligentes, porque gente inteligente existe em todo canto.

A Jovem Guarda (que eu adoro até hoje) foi imitação, o Rock-BR dos anos 1980-90 foi imitação. A criatividade que houve se deveu aos talentos envolvidos (que foram muitos), e não à natureza do processo, que era basicamente imitativa. Existe uma continuidade total entre as obras de Roberto & Erasmo, Renato e Seus Blue Caps, Os Incríveis, Brazilian Bitles, Blitz, Legião Urbana, Titãs, Paralamas, Barão Vermelho. Todos estes artistas tentaram reproduzir aqui no Brasil um modelo de composição, instrumentação, arranjos, performance cuja principal (e em alguns casos, exclusiva) inspiração era o rock que se fazia nos EUA nas respectivas épocas.

Por outro lado, temos artistas de hoje que fazem o que o rock americano fez: eletrificar (no lado da criação) e industrializar (no lado da produção) os ritmos negros, rurais, “primitivos”. É aí que entra o trabalho do Mangue Beat pernambucano, e de Lenine, Cabruêra, Otto, As Parêa, Silvério Pessoa, Totonho, Lula Queiroga, Escurinho, Mombojó... O que fazem? Em vez de fazer rock no Brasil, fazem uma coisa que não é rock, mas que é o que seria o rock mundial se os EUA não tivessem existido.

1187) O discurso do inconsciente (2.1.2007)




(Damon Knight)

Os freudianos dizem que tudo é intencional, até mesmo o que é involuntário. Neste último caso, a intenção vem do Inconsciente, que está doido para dizer ou fazer uma coisa e ninguém deixa. No primeiro descuido, ele corre para o centro do palco, diz a primeira coisa que lhe vem à cabeça e foge de volta para a escuridão das coxias, antes que o zelador do teatro o persiga a vassouradas. 

E, já que nossa mente funciona assim, tudo pode ser interpretado, tudo pode ser analisado, porque tudo obedece a um plano, ou, na pior das hipóteses, tudo que dizemos é registro sismográfico de um terremoto inaudível que nos faz vibrar de mansinho 24 horas por dia, como um eletrodoméstico ligado.

Damon Knight, com a nitidez instantânea dos escritores de ficção científica, comenta que o termo “inconsciente” é enganador: 

“Quer você esteja dormindo ou acordado, ele está ali, supremamente consciente, percebendo tudo. Você pode cochilar, perder os sentidos, dar um branco – ele, não”. 

Knight chama a nossa consciência a “Mente A”, que não passa de um filtro de acesso à “Mente B” (o inconsciente). A Mente A esquece 90% do que processa; a Mente B não esquece coisa alguma. Diz ele: 

“A Mente A normalmente não percebe a Mente B; a Mente B monitora a Mente A o tempo todo. A Mente A maneja os raciocínios lineares do tipo ‘se X, então Y; se Y, então Z’. Já a Mente B funciona através de redes de associações simultâneas. A Mente B determina o que você faz; a Mente A produz as explicações”.

Pode ser uma descrição simplista, mas serve como uma primeira abordagem. A linguagem jornalística, que busca sempre a concisão, as definições curtas e imediatas, tende a empobrecer os fenômenos. Já vi estudantes jovens perguntando: “Mas em que parte do cérebro fica o Inconsciente?” 

Tendemos a espacializar as coisas, quando na verdade não estamos nos referindo a regiões do cérebro, mas a hierarquias de processos. Essa hierarquia significa que alguns processos mentais ficam se checando uns aos outros o tempo inteiro, ficam se verificando, trocando informações, e isto se dá (penso eu) em torno das nossas sensações corporais imediatas, das nossas pecepções áudio-visuais (o que estamos vendo e ouvindo aqui-e-agora). 

Tudo isto é monitorado por um conjunto de imagens superpostas (ou conceitos mentais formados por memórias entrelaçadas) que me informam quem sou, o que faço,onde estou, que dia é hoje. Aquelas perguntas que a gente se faz todos os dias antes de abrir os olhos, para checar se está tudo bem.

Por baixo disto tudo, há um nível hierárquico distanciado onde se trabalha a todo vapor, mas sem acesso a esta zona de controle recíproco. O Inconsciente se parece aos milhares de operários numa fábrica, que não participam das decisões do dia a dia, mas param a fábrica no instante em que quiserem. Os processos conscientes tocam o barco. O inconsciente se manifesta quando o barco mergulha numa tempestade, ou percebe um iceberg ali na frente.