quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

5132) Monte Cristo e a vingança (12.12.2024)



Um dos grandes sucessos do cinema francês recente é a nova adaptação de O Conde de Monte Cristo de Alexandre Dumas. Mais uma entre tantas, porque esta é uma das narrativas de aventuras mais populares que existem. Publicada em folhetim entre 1844-1846, é a obra mais bem sucedida de Dumas, juntamente com Os Três Mosqueteiros (1844). 

 

Não é um livro qualquer; eu diria que em mais de um sentido é um livro essencial, e invoco o testemunho de um intelectual insuspeito, o grande Umberto Eco: 

 

O conde de Monte Cristo é, sem dúvida, um dos mais apaixonantes romances já escritos e, por outro lado, é um dos romances mais mal escritos de todos os tempos e de todas as literaturas. 

(“Elogio do Monte Cristo”, em Sobre os Espelhos e Outros Ensaios, Nova Fronteira, 1989, trad. Beatriz Borges, pág. 140) 

 

Falei “intelectual insuspeito”, mas não é bem o caso, pois Eco é suspeitíssimo. Grande admirador de romances policiais, de ficção científica, de histórias em quadrinhos, de folhetins oitocentistas, o nobre professor de Semiótica sabia trazer para o debate modernista ou pós-modernista as obras que lhe davam prazer, e forçava o colegiado a dedicar-lhes tempo e atenção. 



Monte Cristo é provavelmente um livro que merece as duas avaliações de Eco. Nunca o li por completo, embora já tenha possuído umas duas ou três edições diferentes. É aquele livro em que você lê 300 páginas e aí percebe (como diz um amigo meu) “que mal conseguiu sair da Rodoviária”. A viagem vai ser longa. 

 

O filme francês, escrito e dirigido por Matthieu Delaporte e Alexandre de La Patellière, tem três horas (ou pouquinho menos) de duração, e omite partes inteiras do romance – por exemplo, as aventuras de Edmond Dantès entre o momento em que encontra o tesouro, e o momento em que, anos depois, ostentando o nome de Monte Cristo, desembarca em Paris para mostrar que a vingança é um prato que se serve frio. Ou (mais de acordo com sua época) é uma dívida que se faz crescer com o fermento dos juros compostos. 

 

Não custa nada fazer um breve resumo do enredo. Edmond Dantès é um jovem marinheiro que se envolve sem querer nas intrigas políticas da época de Napoleão. Três homens se unem para destruir sua vida: Danglars (por inveja profissional), Villefort (que teme o testemunho de Dantès sobre fatos que presenciou) e Morcerf (que quer a noiva dele). 

 

Dantès é jogado num calabouço no castelo de If, onde passa cerca de 14 anos. Ali, faz amizade com um prisioneiro, o Abade Faria, que lhe ensina idiomas, ciências, filosofia; e lhe dá as indicações para desenterrar um tesouro que está oculto na ilha de Monte Cristo. Dantès foge da prisão, apossa-se do tesouro, e torna-se um dos homens mais ricos da Europa, agora com novo nome e nova identidade. 



(A Ilha de Monte Cristo)

 

O filme se concentra na parte mais dramática do romance: o modo como o misterioso Monte Cristo (o próprio Dantès, irreconhecível) torna-se amigo de Danglars, Villefort e Morcerf e envolve os três numa teia de gentilezas e parcerias. E de repente eles veem, com perplexidade e terror, o mundo desabar sobre suas cabeças. 

 

O filme tem uma narrativa bastante rápida, comprimindo a história talvez até demais. A personagem de “Haydée” (Anamaria Vartolomei) parece cair do céu, e sua presença só fica explicada no final. Além disso, o roteiro dá destinos diferentes a vários personagens, o que certamente terá feito muitos “dumistas” incendiarem as redes sociais francesas. 

 

Paciência. O cinema nunca foi muito respeitador com os desfechos oficiais das obras literárias. Maldo que ainda vou ver alguma adaptação de Hamlet em que o príncipe enforca o criminoso e sobe ao trono, e um Romeu e Julieta em que os dois pombinhos casam-se e são felizes para sempre. 

 

Afora isto, O Conde de Monte Cristo é o típico filmão de sucesso, com excelente direção de arte, fotografia, locações. 



Quem quiser encarar o romance, tem ao seu dispor a edição de bolso dos Clássicos Zahar, na tradução de André Telles e Rodrigo Lacerda (premiada com um Jabuti), com 1.662 páginas. 

 

Mas, o que causa a crítica ambivalente de Umberto Eco ao romance? Como é que um livro pode ser assim tão “apaixonante” e tão “mal escrito”? 

 

Eco poderia ter explicado melhor que “bem escrito” e “mal escrito” são conceitos entrelaçados, que convivem bem na mesma obra. Um livro pode ser composto de parágrafos impecáveis e estar cheio de personagens tediosos. Pode ter excelentes diálogos e uma trama idiota (ou vice-versa). Pode ser chatíssimo de ler mas recheado de lições políticas importantes; pode ter episódios emocionantes e ser cheio de erros na descrição do ambiente ou da época que aborda. 

 

No ensaio que citei acima, “Elogio do Monte Cristo” (de 1984), Umberto Eco examina essa contradição – um livro com qualidades indiscutíveis e defeitos propositais, defeitos em que o autor, Alexandre Dumas, forçou a mão para obter alguma vantagem. 

 

Diz Eco:

 

O Monte Cristo peca por todos os lados. Cheio de palavras ocas, descarado ao repetir o mesmo adjetivo a uma linha de distância, exagerado ao acumular esses mesmos adjetivos, capaz de iniciar uma divagação sentenciosa sem conseguir concluí-la, porque a sintaxe não se mantém, e assim procedendo e ofegando durante vinte linhas, é mecânico e desajeitado ao esboçar os sentimentos: seus personagens ou fremem ou empalidecem, ou enxugam grandes gotas de suor que escorrem pela testa ou, balbuciando com uma voz que nada mais tem de humana, levantam-se convulsivamente da cadeira e tornam a cair, com o autor preocupando-se sempre, obsessivamente, em repetir que a cadeira em que caíram era a mesma em que haviam sentado um segundo antes. (pág. 141) 

 

São os erros de Dumas, e os erros de todo mundo que escreve às pressas e não revisa – porque é um folhetim, e as páginas manuscritas têm que ser levadas às carreiras para a gráfica. São os erros de quem ganha por número de palavras ou de linhas, e por isto estica o texto, esmera-se em descrições de salões ou alcovas, espicha diálogos o mais que pode, sem trazer informação nova (Eco transcreve um exemplo hilário tirado dos Três Mosqueteiros, às páginas 141-143). 

 

Escrever assim é escrever mal, mas Dumas escrevia bem num outro plano, numa escala mais ampla que não a do detalhe. Escrevia “bem” na invenção de peripécias aventurescas, ou na reconstituição delas – tal como Shakespeare, ele colhia muitos dos seus argumentos em textos alheios ou registros de época. 



Quem livra a cara dele neste aspecto é a inesquecível Marlise Meyer, que conhecia o folhetim tão bem quanto Eco, e ressalva: 

 

Dumas descobre o essencial da técnica do folhetim, mergulha o leitor in media res, diálogos vivos, personagens tipificados, e tem senso do corte de capítulo. Não é de espantar que a boa forma folhetinesca tenha nascido das mãos de um homem de teatro. A relação do folhetim com o melodrama que domina então, ao mesmo tempo que o drama romântico, é estreita. Coups de théâtre múltiplos, sempre espantosos, chutes de rideau hábeis. Diga-se aliás que tanto o folhetim quanto o melodrama têm a ver com a forma romanesca que precede o folhetim em termos de popularidade: o chamado romance negro, ilustrado por Ann Radcliffe, e o romance na linhagem de Richardson, que lança o par jovem virtuosa e seduzida (Pamela) e o cínico sedutor (Lovelace). 

(Folhetim: Uma História, Companhia das Letras, 1996, pág. 60) 

 

Alexandre Dumas escrevia bem – na articulação de situações dramáticas, dos conflitos de interesses, dos segredos, das ameaças, das mentiras que precisam ser sustentadas, das traições, das duplicidades, das manobras de poder dentro da vida social ou familiar, do choque entre interesses pessoais e o momento político ou econômico...  

 

Neste aspecto, autores como Dumas, Balzac, Flaubert têm olho esperto, conhecimento das manobras políticas e da natureza humana: mas do ponto de vista da percepção psicológica e do trato da palavra, pode-se argumentar que Balzac escreve melhor que Dumas, e Flaubert melhor que ambos. (E talvez Proust melhor que Flaubert, etc. etc.) 

 

“Escrever” envolve níveis diferentes de criação, e nem todo mundo é igualmente bom (ou ruim) em todos. 

 

a)      A concepção “macro”, de situações humanas, de personagens, de histórias interessantes com fases sucessivas de interesse renovado, ou seja, manter um certo suspense, uma certa surpresa, uma bem-vinda imprevisibilidade nos fatos narrados; 

b)      A arte de compor os trechos menores (capítulos ou parágrafos) colocando em cada um o necessário para fazer “cair a ficha” na mente do leitor; 

c)       A habilidade para compor e alternar trechos de ação física, trechos de reflexão, de descrição, de interpretação dos fatos narrados, etc. 

d)      A habilidade para revelar sua narrativa através de frases bem articuladas, que produzam iluminação, revelação no leitor (informação nova); 

e)      Escolha de vocabulário de acordo com o que a narrativa pede – elevado, plebeu, rebuscado, abstrato – mas sempre a palavra precisa e nova, em vez do clichê desgastado que todo mundo já ouviu (as frases-feitas, os lugares-comuns que confundimos com “realismo”). 

 

Ninguém é igualmente bom em todos estes “aplicativos”, e ninguém é bom o-tempo-inteiro em qualquer um deles. Num mesmo livro de um autor podem ser encontrados exemplos contrastantes. 

 

O veredito de Umberto Eco mostra que para ele Dumas é excelente nos itens a, b e c, e fraco nos itens d e e. De modo que é preciso relativizar, e muito, esse conceito meio simplório de “bem escrito” versus “mal escrito”. O próprio Eco encaminha essa discussão, admitindo que mesmo com todos os defeitos de escrita do Monte Cristo ele é fã do livro.