sábado, 19 de setembro de 2020

4622) A ficção e o entulho de informação (19.9.2020)




(manuscrito de Immanuel Kant)

Que quantidade de informação um romancista deve dar, ao leitor, sobre o mundo que está descrevendo?
 
Depende. Escritores de romances históricos geralmente respondem: “A maior quantidade possível!”. E eu entendo. Passaram anos estudando as Guerras Púnicas, ou o Ciclo da Borracha na Amazônia, ou os reis leoninos da Alta Mesopotâmia.  Leram centenas de livros, fizeram milhares de anotações, e isso tudo vai se perder? De jeito nenhum. O leitor vai ter que pagar com seu tempo o tempo que o escritor consumiu pesquisando.
 
Outros dizem: “Informação nenhuma; não precisa”. Há centenas de romances pós-modernos onde não sabemos sequer em que país se passa a narrativa. Tudo é abstrato. Não sabemos sequer os nomes dos personagens, que são indicados por iniciais.
 
No outro extremo, existem os autores que se acham na obrigação de informar tudo, ou que têm um prazer enorme em informar tudo. Entre os escritores de língua inglesa circula o termo “infodump”, que significa mais ou menos “entulho de informação”. Acontece muito no romance histórico, em que não basta dizer o resultado de uma reunião do Imperador Napoleão com seus generais: é preciso dizer cada plano que foi proposto, debatido, contestado, apoiado, decidido, executado. O autor estudou o tema. Precisa mostrar serviço.
 
Os chamados techno-thrillers de autores como Tom Clancy ou Alastair Reynolds não se limitam a dizer “Fulano puxou a pistola”. Tem que dizer a marca, o calibre, o modelo, o ano, as adaptações feitas pelo personagem, as peculiaridades do mecanismo...
 
Se é um romance de Fantasia Medieval, e alguém mata um porco para uma festa, é preciso explicar (e tome duas ou três páginas falando apenas disso) com que tipo de faca se matava o porco na Escócia de 1450, quantas pessoas eram necessárias para segurar o bruto, como se pelava, como se tratava, com que ervas se temperava, como era preparado cada pedaço...
 
O infodump é a delícia de uns e o pesadelo de outros.


Numa resenha de um livro na revista Locus, Gary K. Wolfe chama a atenção para essa mania de Neal Stephenson (autor que eu muito admiro, aliás):
 
Na reta final do thriller Reamde, a jovem geóloga que é um dos personagens centrais está fugindo desesperadamente de terroristas islâmicos numa floresta do Canadá quando se vê escalando a inclinação de um talude e faz uma pausa para pensar sobre “o ângulo de repouso, que é a inclinação que um determinado monte de material pulverizado adota naturalmente ao longo do tempo, e que explica o formato externo de um formigueiro, de um monte de açúcar, uma pilha de cascalho ou de seixos.” Não é o tipo de coisa em que eu estaria pensando se estivesse sendo perseguido a tiros por terroristas, mas o fato é que eu não sou um personagem de Neal Stephenson.
(“Locus”, # 608, setembro 2011, trad. BT)
 
Stephenson é, dentro da FC norte-americana, um dos campeões indiscutíveis em entender e explicar como a tecnologia do mundo de hoje funciona. Ele estuda e pratica compulsivamente todo tipo de gadget tecnológico que inclui nos seus livros, e são muitos. Eu não diria que ele faz essas coisas “para se amostrar”. Não: ele apenas é um cara que pensa assim, funciona assim, e quando escreve reproduz em sua ficção seus processos espontâneos de pensamento.
 
Só li dois livros dele, ambos excelentes. Um é Snowcrash (1992), publicado no Brasil pela Editora Aleph, com tradução de Fábio Fernandes, lançado numa edição com o título de Nevasca e em outra com o título original. O outro é The Diamond Age (1995), um futuro de ultra-tecnologia onde os chineses reproduzem a Era Vitoriana inglesa nos menores detalhes.
 
O problema com Stephenson é que poucos livros dele têm menos de 900 páginas, e romances de 1.200 páginas não são nenhuma surpresa. É como uma viagem de navio – é agradável, mas você sabe que é um projeto a longo prazo.


Em outro momento, o mesmo Gary K. Wolfe explica, comentando outro romance de Stephenson (Anathem, 2008), sobre uma civilização de eruditos num planeta distante (uma espécie de O Nome da Rosa interplanetário):
 
Em seu aspecto mais ambicioso, ele nos convida para examinar por inteiro o corpo principal da filosofia do Ocidente através do prisma de um mundo inventado; e, embora exista nisso um indiscutível charme de estudante universitário, ficamos pensando se uma parte do entusiástico público leitor de Stephenson não se verá em breve atribuindo a ele a invenção de muitas das idéias que ele recapitula em seu fabuloso “Syntopicon”.
(“Locus”, # 572, setembro 2008).
 
Diga-se desde logo que esses romances de mil páginas não são feitos apenas de digressões enciclopédicas. Stephenson é um narrador compulsivo de aventuras, mestre dos episódios de perseguição, fuga, invasão, conflito, brigas de socos, guerras de exércitos; pode-se dizer que seus romances são videogames de ação e aventura para intelectuais. Personagens com quem a gente se identifica, diálogos espertos, sutilezas psicológicas...
 
Mas o problema continua de pé. É preciso mesmo explicar tantos detalhes assim?
 
A resposta tem que levar em conta que existem pessoas que adoram essas explicações, e outras que não as suportam. Se eu tivesse mais tempo e menos afazeres, leria com imenso prazer, por exemplo, o famoso “Ciclo Barroco” dele, formado por Quicksilver (2003, 944 páginas), The Confusion (2004, 815 páginas) e The System of the World (2004, 915 páginas). 

Mas a vida é curta. O que me aguarda na minha estante, no momento, e de cenho franzido, é o premiado Cryptonomicon (1999, 1.140 páginas).


Lembro-me das aulas do mestre Damon Knight, quando ele dizia às vezes: “Não precisa descrever a espaçonave. Todo mundo já sabe como é uma espaçonave. Mostre somente o detalhe que vai ter importância na história”. É um conselho útil, mas acontece que muitos escritores (e leitores) de FC são engenheiros, sejam profissionais, estudantes, diletantes ou curiosos, e para esses leitores é um pouco frustrante pegar um romance, saber que a espaçonave está indo da Terra para Alfa do Centauro, e não receber um vintém de informação sobre o meio de propulsão utilizado ali.
 
Outra coisa:
 
Não se trata apenas da ficção científica. Vamos dar uma passada nos infodumps dos clássicos brasileiros. Podemos começar com os tratados de geologia e botânica que Euclides da Cunha inseriu em Os Sertões. Ou então pensemos no Romance da Pedra do Reino: basta alguém citar o nome de uma família sertaneja para Ariano Suassuna pegar o leitor e dar uma volta inteira ao quarteirão explicando genealogias e cavalgadas.


Autores regionalistas são usuários aplicados do infodump, porque grande parte do romance regionalista está imbuído de uma missão de retratar, registrar, conservar usos e costumes através da palavra escrita.
 
Daí que nossa ficção rural se dedique a longas digressões sobre cuidados com o gado, sobre novenas e festas tradicionais, sobre o trabalho do vaqueiro ou do agricultor, sobre batuques e festejos... Páginas e páginas onde o autor oitocentista preservou o ambiente que conhecia – e eu, pelo menos, sou agradecido por isto. O livro pode até não ser grande coisa como romance. Ironicamente, é o infodump etnográfico que hoje o torna precioso para nós.