segunda-feira, 19 de novembro de 2018

4406) O menino Guimarães Rosa (19.11.2018)




Hoje se completam 51 anos da morte de João Guimarães Rosa, e acabei folheando um livro que li recentemente: Joãozito – Infância de Guimarães Rosa, de Vicente Guimarães (José Olympio/INL-MEC, 1972).

Vicente Guimarães está meio esquecido agora, mas foi um célebre autor infantil quando eu era menino, principalmente em textos veiculados na revista Sesinho, editada pelo SESI. Ele usava o pseudônimo “Vovô Felício” para assinar seus contos curtos, muito divertidos, e suas obras paradidáticas. Seu personagem mais original era João Bolinha, um boneco cujo corpo e membros eram feitos de bolas articuladas umas às outras.



Lembro com clareza de dois livros infanto-juvenis seus que li e reli quando garoto: Lenda da Palmeira (1944), sobre a fundação de Belo Horizonte, e a biografia de Rui Barbosa, Rui (1949).



Vicente era o irmão mais novo de “Chiquitinha”, D. Francisca Guimarães Rosa, mãe do escritor. Um tio meio “primo”, porque era apenas dois anos mais velho do que o sobrinho, e os dois compartilharam leituras, brincadeiras e aventuras. Uma amizade que durou até a morte de Rosa em 1967.

Joãozito é menos uma biografia do que uma rememoração nostálgica, com a previsível exuberância de afetos e louvores. Um livro simpático, que vale menos pela análise do que pela profusão de pequenos detalhes e episódios esclarecedores de aspectos do escritor e da obra.

Torna-se meio datado e cansativo pelo fato de Vicente tentar emular a linguagem do sobrinho, num jogo meio brincalhão, meio hagiográfico: “E como é gostoso, agradável, escrever assim, laborando as frases, enfeitando-as com palavras vigorosas, lendo-as e relendo-as, riscando, corrigindo, transformando, realizando hipérbatos e sínquises para mais vivazear o texto ou ao lugar-comum fugir”.

Com a repetição de um número limitado de truques, o estilo acaba lembrando mais o Yoda de Star Wars do que Rosa: “Tudo que você fez em literatura, Joãozito, genial foi.



No livro de “Vovô Felício”, contudo, encontram-se fartas informações sobre a cidade de Cordisburgo, seu ambiente social, sua história política; sobre a família Guimarães; sobre os personagens pitorescos do lugar; sobre férias, fazendas, gado, boiadas, brinquedos, leituras.

Vicente esclarece pequenos detalhes da formação cultural do escritor:

Em março de 1917, chegou a Cordisburgo, como coadjutor, o Frei Canísio Zoetmulder, frade franciscano, holandês. (...) [Com ele, Joãozito] além de curiosidar o holandês, aperfeiçoou os estudos de francês. Foi Frei Canísio o seu professor e não o Frei Estêvão, como noticiaram em diversas biografias suas, publicadas em jornais e livros. Houve informação errada. (p. 29-30)

A boa memória de Vicente o faz evocar pequenas lembranças da meninice que depois Rosa iria reproduzir em seus livros.

Como esta cantiga, usada por ele em “A Hora e Vez de Augusto Matraga”:

Eu já vi um gato ler
e um grilo botar escola;
nas asas de uma ema
vi jogar jogo de bola.
Só me falta ver agora
cender vela sem pavio
sungar pra riba a água do rio,
dar louvores e macaco,
o Sol se tremer com frio
e a Lua tomar tabaco. (...)
(p. 78)

E este episódio de brabeza cômica, usado em “Corpo Fechado”. Um valentão está na bodega quando chega outro, olha-o de cima a baixo e diz ao caixeiro: “Você, rapaz, tem aí dessas facas que entram na barriga e murgueiam?” O outro engrossa o cangote e pergunta também ao rapaz: “Ei, moço! Você tem aí dessas balas mauser que batem na testa e chateiam?” (p. 80)

Aqui e acolá pequenas pistas vocabulares, como a existência de um tal Alferes Felão, sujeito de maus bofes lá de Cordisburgo, que acabou virando nome comum na prosa rosiana, no Grande Sertão: “Aquele Hermógenes era matador – o de judiar de criaturas filhas-de-deus – felão de mau”.

Um detalhe que sempre me chama a atenção é o do gosto de Rosa pela literatura policial. Aqui e acolá em suas conversas ele cita o Mistério Magazine de Ellery Queen, uma leitura recorrente, que muito o elevou em meu conceito.

Diz Vicente que um dia, os dois já morando no Rio de Janeiro, Joãozito, que estudava para o exame no Itamaraty, ligou para o tio-amigo. Estava com a cabeça agoniada, estudando há mais de vinte horas seguidas, precisava conversar para não ficar doido. Vicente correu ao Hotel Fluminense, onde Joãozito se hospedava.

Eu morava no Andaraí. O bonde que passava por minha casa ia justo atravessar a Praça da República. Não me demorei.
Ao chegar no quarto do hotel, bati na porta. Escutei: “Entre”.
Encontrei meu sobrinho nu, deitado, coberto por um lençol, comendo ostras e na mão tendo um livro policial.
Admirei-me: “Então você me chama porque está cansado de estudar e eu o encontro lendo romance policial!”.
Explicou: “Só assim consegui desviar meu pensamento. O romance policial me distraiu. Recurso lembrado só depois de meu telefonema a você”.

Esse concurso para o Itamaraty, em que Rosa foi aprovado em segundo lugar, deu-se em 1934. Nada me impede de especular que ele poderia estar lendo algum volume da Coleção Amarela (Editora Globo, Porto Alegre), como Na Pista do Alfinete Novo de Edgar Wallace (um dos preferidos de Ariano Suassuna), que saiu em 1933.

Joãozito é assim, cheio de pistas para os futuros biógrafos, inclusive esta:

Estudioso, culto, competente, possuía memória invejável. No dia de sua posse na Academia Brasileira de Letras, almoçou, com sua mãe, em meu apartamento. Procurando obter minha opinião quanto à tonalidade de voz que devia manter ao microfone, reproduziu de cor, quase perfeita, a parte inicial de seu discurso, que gravamos, para que ele ouvisse e julgasse. Temos a fita. Lembrança preciosa. (p. 98)

“Temos a fita”!

Rosa era supersticiosíssimo, e sabe-se o quanto se cercava de rituais protetores. Temia a idade de 58 anos, porque (segundo Vicente) “de seus sete tios amigos, quatro morreram quando viviam os cinquenta e oito anos.”  Rosa morreu com cinquenta e nove.

Na parte final do livro vêm transcritas as cartas de João, muitas delas fornecendo opinião, crítica e conselho sobre os textos do tio. E ele nunca abre mão de seus princípios estéticos:

Nisso, aliás, como em tudo o mais, o que se passa aqui é mero reflexo do que vai pelos países cultos. A palavra de ordem é: construção, aprofundamento, elaboração cuidada e dolorosa da “matéria-prima” que a inspiração fornece, artesanato. (carta de 1947, p. 132)

É de se lamentar um pouco a diplomacia de Vicente Guimarães, omitindo, em sua transcrição das cartas, os nomes dos escritores contemporâneos que Rosa critica, confidencialmente:

Outros, são universalmente considerados como cretinos. Um exemplo: o nosso conterrâneo [.....], se bem que entendido um pouco de gramática e tendo jeito para folclorista, faz de palhaço, quando se mete a proferir sentenças sobre arte. (...) Exemplo: o meu amigo [.....], se bem que tendo, realmente, o “Fogo sagrado” e muita seiva rica, tomou um bonde errado; construiu sua obra baseando-a no tosco e no instintivo, e agora...  (p. 138-139)

Em outra carta transcrita no livro, para sua prima Lenice, do Curvelo, ele declara em 1966:

Posso dizer sinceramente que, de tudo o que escrevi, gosto mais é da estória do Miguilim (o título é “Campo Geral”), do livro Corpo de Baile. Por que? Porque ele é mais forte que o autor, sempre me emociona; eu choro, cada vez que a releio, mesmo para rever as provas tipográficas. Mas, o porquê, mesmo, a gente não sabe, são mistérios do mundo afetivo. (p. 173)

Joãozito é um livro precioso; puxando com pente-fino as adiposidades, os pastiches de estilo, as repetições, as compreensíveis hipérboles afetivas de quem rememora uma pessoa querida e importante, resta muita, muita coisa sobre o ambiente que formou a cabeça-miguilim do autor de “Campo Geral”.

Para quem quer ter uma idéia do ambiente histórico, social e familiar do autor, é leitura indispensável.