domingo, 26 de março de 2017

4220) A arte de escrever difícil (26.3.2017)




(ilustração: Salvador Dalí)

As palavras difíceis e as palavras fáceis são dois grandes testes para quem escreve.  Podemos chamá-las também de palavras complicadas e palavras simples, ou então de palavras raras e palavras comuns.  Tudo é a mesma coisa.

Acho que hoje em dia a grande maioria dos manuais ou das oficinas literárias aconselha as pessoas a usarem palavras simples.  Houve um tempo em que não era assim.  Palavrório rebuscado (ou, mais simplesmente: vocabulário difícil) era um sinal de talento, de erudição, de poder social. 

Principalmente no Brasil do século 19, um Brasil agrário com milhões de analfabetos, pouquíssimas universidades, e uma elite dirigente que sempre utilizou a cultura livresca e o diploma como filtros obrigatórios para a ascensão social. 

O povo podia ter a cultura que tivesse, mas só era considerado culto quem fosse capaz de usar provérbios em latim, de citar Sófocles ou Platão, de recitar em francês ou utilizar com propriedade termos obscuros. 

Muitos pretendentes a literatos dessa época costumavam folhear o dicionário de caderno em punho, anotando palavras difíceis (Objurgatória! Catafalco! Quejandos! Fâmulo! Tremebundo! Estentórico!) e depois procurando um pretexto para enfiá-la nos seus artigos ou contos. 

Um dos acusados desse cacoete é o quase esquecido Coelho Neto (1864-1934), dono de um vocabulário sonoro e cheio de preciosidades, e que foi por muito tempo considerado o maior escritor brasileiro. 

Abro ao acaso uma página de seu melhor romance, A Conquista, e logo dou de cara com “um pardieiro sombrio e lôbrego”, “lazarone”, “racimos”, “corbelhas”, “tresandava”, “comezaina”, “vinhaça”...  Podemos dar o desconto de que alguns destes termos fossem comuns em 1899, ano do livro; mas a gente vê que Coelho Neto não era autor de colocar uma palavra direta se dispusesse de um sinônimo enfeitado e obscuro. 

Uma boa comparação de estilo pomposo e estilo claro pode ser feita entre seus textos e os de Lima Barreto no recente livro Lima Barreto versus Coelho Neto: Um Fla-Flu Literário, de Mauro Rosso, que compara os artigos de ambos a respeito do futebol.


Guimarães Rosa é um dos primeiros exemplos que nos ocorrem quando pensamos numa linguagem arrevezada, troncha, abstrusa...  Palavras complicadas pareciam não faltar no seu embornal, e qualquer página aberta também ao acaso, como esta de Tutaméia, nos dá “intruge-se”, “lepidão”, “quizília”, “uca”, “sipipira”...

Entram aí regionalismos, arcaísmos, formações novas a partir de radicais conhecidos.  De tantas em tantas linhas uma palavra parece saltar da página e ficar de pé, oferecendo-se ao exame, pedindo para ser interpretada e encaixada na frase.  (E muitas vezes percebemos que a própria frase já nos indica ou insinua o que ela veladamente diz – e nisto reside uma das artes do escrever difícil.) 

E depois que o leitor pega o tom da voz narrativa de Rosa, torna-se um prazer a mais esse descascar das palavras novas para vê-las por dentro.

Existem autores que escrevem difícil numa outra clave musical, quer dizer, com o propósito de despertar um outro tipo de resposta no leitor. 

Há o caso curioso do curitibano Paulo Leminski, cujos poemas curtos eram de uma admirável limpidez de linguagem, e que por outro lado nos deu um dos romances de vocabulário mais idiossincrático em nossa literatura, o Catatau (1975).  Nele encontramos trechos destemperados como:

“Runáticos, versitergeremos, certo.  Nome, porém, não trocaremos por sinamônico algum nenhúnico!  Posso provar: tenho aprovação própria.  Pensar por pensar.  Some um círio suando de pensar, aceso na cabeça e as formigas me comendo e me levando em partículas para suas monarquias soterradas”. 

A citação mais longa é necessária para dar idéia do sabor do texto, da metralhadora verbal com que o autor dispara aparentes disparates sobre nós. 

O romance de Leminski cria um delírio verbal num tom desorientado (mas mantido do princípio ao fim com admirável coerência) para contar a história da viagem imaginária de René Descartes ao Brasil e a impressão que nosso mundo tropical e suas ervas alucinógenas despertam em sua mente lógica e científica. 

Neste caso, juntam-se palavras inventadas, palavras indecifráveis, palavras híbridas, pedaços de raízes gregas e latinas, fragmentos do tupi ou de gírias e jargões específicos. 

A palavra vale um pouco pelo que significa em si, mas talvez valha até mais em função do quanto sustenta essa voz narrativa: caótica, estilhaçada, multicultural. 

Gabriel Garcia Márquez costumava afirmar que coloca muitas palavras nos seus textos sem muita atenção para o seu significado, mas apenas pela sua capacidade de manter e prolongar certa musicalidade necessária ao encantamento da prosa.  “Basta uma palavra no lugar errado”, dizia ele, “e todo o efeito vai por água abaixo”.

Imagino que Coelho Neto queria exibir, para prazer seu e do leitor, seu preciosismo e erudição; que Rosa queria trazer para a língua geral, dentro da jurisdição de seus romances, certos processos internos do linguajar do homem do sertão mineiro.

E que Leminski produzia um caos ordenado para desequilibrar a tendência raciocinante e lógica do leitor e fazê-lo viver a experiência do mundo por dentro do personagem, de suas palavras (e um personagem literário, qualquer um, é uma criatura feita apenas de palavras e nada mais). 

A palavra difícil exige esforço do leitor, e convém que ele receba em troca alguma coisa.





(Uma outra versão deste texto foi publicada na revista Língua Portuguesa, da Editora Segmento, São Paulo, # 64, fevereiro de 2011 )