quarta-feira, 24 de abril de 2013

3168) Resolvi gostar (24.4.2013)





(by Jon Kuta)



O bisturi me descascou como uma cebola, desdobrou origamis das minhas vísceras, foi deixando listras de fogo-napalm por onde passava, e enquanto isso as algemas laceravam meus pulsos e eu cravava os dentes no trapo cheirando a querosene que me mandaram morder num acesso de piedade. A dor quando surge colapsa todo o resto do Real. Somente ela existe no Universo, somente os seus dois polos: o corpo que a sente e ela que ferve nesse corpo, como o bilhão de explosões nucleares que o Sol ruge por minuto. 

Resolvi gostar. Resolvi me entregar por completo àquela dor. Desisti de lutar contra ela, de pedir que parasse, resolvi aceitar que ela fazia parte de mim ou eu que fazia parte dela, e assim deixar que a dor crescesse a ponto de dissolver o conflito.

Fui manipulado como cabra-cega, seduzido por hipóteses e promessas, enleado por sorrisos, tapinhas nas costas e adiantamentos bancários, e todo dia pisava numa armadilha, caía numa arapuca, despencava num alçapão. Assinei folhas em branco confiando na descrição do que em breve seria impresso ali. Aceitei sem checar. Acreditei sem conferir. Fiz de conta que não vi o que se escancarou na minha frente, fiz de conta que não entendi o fato consumado que rolava de boca em boca. Fui bobo da corte, peão no roque alheio, inocente útil... 

Resolvi gostar. Virou um teste de até-onde-isso-vai. Virou uma experiência de laboratório onde o rato resolveu assumir o controle porque entendeu, enfim, que era uma experiência. Resolvi entender. Me interessei por tudo, como quem pela primeira vez entende um jogo de críquete, e transformei meu opróbrio em espetáculo.

Me depuseram, me manietaram, me sacanearam, me expuseram ao ridículo, me traíram, me bateram a carteira, me rasgaram os documentos, me enxovalharam a reputação em todos os órgãos de imprensa em quarenta idiomas, arrastaram minha estátua puxada por burros e alvejada por ovos podres. 

Meus partidários, meus cupinchas e meus apaniguados foram os primeiros a esfregar a sola suja do pé na minha cara. As mulheres me enxotaram rua afora com vassouras. As crianças surgiram excitadas à janela e gritaram à minha passagem seu primeiro palavrão. Aguentei as gargalhadas impiedosas dos bem-falantes, a mangação dos mendigos, a maledicência dos despeitados, o chute-no-traseiro com o sapato feroz dos ressentidos. 

Resolvi gostar. Resolvi permitir que aquele enxovalhamento fosse uma lavagem, uma purgação, um massacre de mim mesmo, uma sessão de bate-tapete que improvavelmente me restituísse a mim mais cru, mais mineral, mais resíduo de essência indestrutível. Àquela altura valia tudo. E eu só gosto quando chega nesse ponto.