segunda-feira, 15 de agosto de 2022

4853) Drummond: "Elegia do Rei do Sião" (15.8.2022)



(Drummond, por Drummond)

 
Carlos Drummond de Andrade utilizou em vários poemas um dos variados efeitos de “distanciamento” que seu contemporâneo Bertolt Brecht preconizava no teatro. No caso, consiste em projetar uma situação humana qualquer num ambiente exótico e distante, muito afastado da realidade imediata do público, para que este não se distraia na comparação de detalhes, na busca de verossimilhanças superficiais.
 
Para que a fábula se revele e se imponha com seu conteúdo cru de fábula.
 
Brecht fez críticas ferozes à Alemanha de seu tempo ambientando peças na China, em Nova York, ou em cidades imaginárias. Fazendo isso, ele dilui toda a “cor local” que tantas vezes interfere em nossa leitura de um livro ou um filme.
 
Drummond fala, em seu primeiro livro, do Czar búlgaro que caçava borboletas, fala de variados ambientes de capa-e-espada em “Balada do Amor Através das Idades” – e comenta com certa ironia a vida deste reizinho do Sião, que morreu porque não conseguiu fazer um filho homem.
 
Ele diz:
 
Pobre rei de Sião que morreu de desgosto
por não ter um filho varão.
Pobre rei de Bangkok educado em Oxford,
pequenino, bonito, decorativo,
que morreu especialmente para nos comover.
 
Há um tom de simpatia, de paternalismo, mas ao mesmo tempo um leve escárnio, como se fosse fácil, ou mesmo obrigatório, mangar dessa masculinidade incompleta. O que talvez fosse uma preocupação do próprio Drummond, que dois anos antes do livro tinha sido pai de Maria Julieta, a única filha que teve. Seria uma prefiguração do seu próprio destino? Drummond viria a escrever depois: “O filho que não fiz / hoje seria homem.” Um poema melancólico e resignado (“Ser”, Claro Enigma, 1948-1951).
 
O filho que desejava, a Ásia não deu,
e seu desejo de um filho era maior que a Ásia.
Pobre rei de Sião que Camões não cantou.


Por que Camões? Por causa do nome “Sião”, que no poema de Drummond se aplica ao país hoje conhecido como Tailândia, mas que Camões usou como sinônimo de “Zion”, ou Israel:

Sôbolos rios que vão
por Babilónia, m'achei,
onde sentado chorei
as lembranças de Sião
e quanto nela passei.
Ali o rio corrente
de meus olhos foi manado,
e tudo bem comparado,
Babilônia ao mal presente,
Sião ao tempo passado.
(Camões, “Redondilhas”, 1595)
 
É o pranto dos israelitas escravizados na Babilônia e lembrando com ardor da pátria perdida, conforme está no livro dos Salmos. Literariamente os “rios da Babilônia” se consagraram como um local de lamentações de um paraíso-terrestre perdido, das canções de exílio de um povo escorraçado. Chegou até à ficção científica, num conto clássico de mundo pós-nuclear, “By the Waters of Babylon” (Stephen Vincent Benet, 1937).
 
Mas o Sião que compete ao poeta mineiro é o Sião tailandês, é o dele, não o de Camões. E o dele nada tem a ver com a pátria destruída, e sim com um reino exótico do Oriente, que por vias transversas acaba cutucando na memória do poeta a lembrança do Rei Salomão e seu harém de concubinas:
 
Amou três mulheres em vez de dez mil
e nenhuma lhe deu um filho varão.
De sua costela real nasceu uma pequenina siamesa.
Ao vê-la, o rei caiu para trás como um europeu,
adoeceu, bebeu um veneno terrível e morreu.
 
Creio que “veneno terrível” é melodrama inventado pelo poeta, mas o resto é verdadeiro. O rei a que ele se refere é o rei Vajiravudh (1891-1925), que governou sob o nome de Rama VI. O jovem rei passou em branco ao longo de três casamentos, e acabou sendo pai de uma filhinha, a princesa Bejaratana. Ela nasceu em 24 de novembro de 1925, e ele morreu no dia 26, aos 44 anos.


(Vajiravudh, ou Rama VI)

Vajiravudh, educado em Oxford, foi um “rei intelectual”. Seus opositores o acusavam de “ocidentalismo” e de dedicar muito tempo à leitura dos clássicos e pouco à administração do reino – o que parece ser uma injustiça, dada a longa lista de modernizações que promoveu no país. Era uma espécie de D. Pedro II: fundou a primeira universidade do Sião, escreveu poemas, peças de teatro e romances. Traduziu Shakespeare e Agatha Christie, e ajudou a introduzir a literatura de detetive na Tailândia, tendo inclusive criado um personagem inspirado em Hercule Poirot, o detetive Nai-Thong-In.
 
Mesmo um currículo tão simpático parece não ter sido suficiente para reduzir a crueldade com que Drummond descreve seus últimos dias:
 
Seu coração enegreceu de repente,
o corpo ficou todo fofo.
Depois queimaram o corpo fofo e o coração preto numa fogueira esplêndida
e a alma do rei de Sião fugiu entre os canais.
Pobre reizinho de Sião.
 
É uma mistura de piedade e desdém. Ou, quem sabe, o problema sou eu, com minha leitura de quase um século depois, mexendo nas coisas. Literatura é um fenômeno quântico: cada vez que a gente examina a mesma operação, dá um resultado diferente. Poesia, então, nem se fala.
 
Vajiravudh (que era neto do Rei do Sião retratado no musical hollywoodiano O Rei e Eu, com Yul Brynner e Deborah Kerr) é um personagem que merecia uma elegia melhor. Um monarca do tipo “ponto fora da curva”. Ameaçado de assassinato em 1912 numa tentativa de golpe de vários oficiais do exército, perdoou os golpistas, dizendo que estavam lutando pelo bem do país. Em sua obra literária defendia o antigo código de honra da cavalaria: “Minha alma é de Deus, minha vida é do Rei, meu coração é das damas, minha honra é minha.”