domingo, 3 de julho de 2022

4839) Drummond: "Cota Zero" (3.7.2022)




No ano de 2010, lembrei que o primeiro livro de Carlos Drummond de Andrade, Alguma Poesia (1930) estava completando 80 anos de publicação. Era no tempo em que estas colunas saíam no Jornal da Paraíba seis vezes por semana. Eu ficava às vezes catando assunto no laço, e resolvi comentar todos os poemas do livro.
 
E de fato saí comentando, mas sem a obrigação diária (gosto de variar os assuntos), e o projeto foi se estendendo, até que o interrompi por volta de 2013. Por que? Acho que as colunas não geravam muita resposta dos leitores. Comecei a achar que estava falando sozinho. Parei os comentários.
 
Acontece que de cerca de um ano para cá esses comentários drummondianos deram um salto de audiência (o Blogspot fornece essas estatísticas) e agora um leitor me perguntou por que motivo eu parei de comentar o livro. São duas boas razões para comentar os poucos poemas que faltam. E quem sabe um dia eu faço uma edição-pirata eletrônica, botando o poema de um lado e meu comentário do outro. (Não sei se o poeta aprovaria a idéia; mas coisa pior ele já sofreu, pelo poema da pedra.)
 
Vou retomar justamente com o que talvez seja o menor poema do livro, e que talvez tenha despertado iras semelhantes: “Cota Zero”.
 
Stop.
A vida parou
ou foi o automóvel?
 
Esse pequeno e desafiador fragmento deve ter feito muito poeta pós-parnasiano espolinhar de agonia. Não tem métrica, não tem rima, não tem estrofe, não tem poesia. Que esculhambação era essa, senhoras e senhores?
 
É bom lembrar que quando Drummond publicou “Cota Zero” tanto o automóvel quanto o idioma inglês eram novidades no Brasil, se comparados aos índices de hoje. Éramos (os poetas, pelo menos) afrancesados, éramos tão soi-disant parisienses quanto os nossos confrades de Lisboa. E para alguns poetas, poetas contestadores, ser modernista era, em parte, ser o contrário disso.
 
Drummond era um jovem atento para as novas expressões (alhures no livro ele emprega “forde”, no sentido automobilístico). Mais do que isto, no entanto, está o comichão modernista de provocar, alfinetar, espicaçar, inquietar os bem-pensantes da época. Não deve ter outro propósito esse fragmentozinho que ele incluiu deliberadamente em seu livro de estréia.


(Manuel Bandeira, pelo peruano Walter Toscano)
 
Manuel Bandeira, anos depois, comentou com certo desalento esse tipo de poema:
 
“Piadas... (...) Por essas e outras brincadeiras estamos agora pagando caro, porque o ‘espírito de piada’, o ‘poema-piada’ são tidos hoje por característica precípua do modernismo”.  
 
Isto será um pedido de desculpas, ou um dar-de-ombros despreocupado?  As piadas modernistas fizeram um bem danado a nossa poesia. Não destruíram a pomposidade beletrista (esta é mais resistente do que as baratas ou o titânio), mas a desmoralizaram em parte, tiraram a poesia que estava prisioneira da tribuna, dos sodalícios, das arcádias de gravata-borboleta, e a trouxeram de volta à avenida, à feira livre, ao bonde, à mesa de bar, à praia, à vida real onde as pessoas trabalham, as pessoas se divertem, e se exprimem numa linguagem rica e direta, sem a obrigatoriedade avassaladora dos onipresentes polissílabos proparoxítonos.
 
(Digressão: quarenta anos depois Chico Buarque redimiu os proparoxítonos em “Construção”, e mesmo reconhecendo que é uma das grandes canções de todos os tempos, franzo a testa ao pensar que muitos beletristas disseram: “Isso sim é poesia, e não Drummond dizendo STOP.” Fim da digressão.)
 
Já falei aqui no blog sobre outra pequena heresia poética do mesmo livro (“2478: Drummond: o poema ready-made”), o infamemente famoso “Sinal de Apito”:
 
Um silvo breve: Atenção, siga
Dois silvos breves: Pare.
Um silvo breve à noite: Acenda a lanterna.
Um silvo longo: Diminua a marcha.
Um silvo longo e breve: Motoristas a postos.
(A esse sinal todos os motoristas tomam lugar nos seus veículos para movimentá-los imediatamente). 
 
Será que nestes textos meio aleatórios (ele diz tê-lo colhido “...de um trecho de regulamento da Inspetoria de Veículos”) o poeta via uma certa simetria visual, sugestiva da simetria que vemos nas estrofes poéticas? Talvez. Via neles o tal frêmito de modernidade de quem começava a conviver com automóveis em plena rua? Talvez; pensem na quantidade de poemas e letras-de-música que temos hoje falando em computador, em celular, em chat, em zap; tudo moderno nos seduz.


(ilustração de Poty para Sagarana)

O poeta via nessa frases impessoais uma certa dicção hierática, expressão de um Poder invisível (o Detran, no caso)? Talvez. A mim me lembra a fascinação de Guimarães Rosa (em “São Marcos”, Sagarana, 1946) pelo famoso “rol dos reis leoninos”, uma lista de nomes de soberanos da Mesopotâmia onde seu personagem enxergava poesia pura:
 
Sargon
Assarhaddon
Assurbanipal
Teglattphalasar, Salmanassar
Nabonid, Nabopalassar, Nabucodonosor
Belsazar
Sanekherib
 
Fascinação puramente verbal e sonora, sem contaminação semântica de espécie alguma, sem as impurezas do significado, da intenção, das concessões ao dicionário.
 
A mesma fascinação de Horácio Oliveira, o protagonista de O Jogo da Amarelinha (“Rayuela”, 1963) de Júlio Cortázar. A certa altura do livro (Capítulo 41) Oliveira encontra nos bolsos um papelucho copiado de “algum documento de caráter vagamente internacional”, e que parecia ser uma lista de nomes dos integrantes de um certo Conselho da Birmânia.
 
A lista reza assim (trad. BT):
 
U Nu,
U Tin,
Mya Bu,
Thado Tiri Thudama U E Maung,
Sithu U Cho,
Wunna Kyaw Htin U Khin Zaw,
Wunna Kyaw Htin U Thein Han,
Wunna Kyaw Htin U Myo Min,
Thiri Pyanchi U Thant
Thado Maba Thray Sithu U Chan Htoon.
 
“Os três Wunna Kyaw Htin são um pouco monótonos,” pensou ele consigo, examinando os versos. “Deve significar algo como Sua Excelência O Honorabilíssimo. Olha só este aqui, Thiri Pianchi U Thant, é o que soa melhor. E como se pronuncia Htooon?”

Cortázar era tradutor assalariado da Unesco, em Paris, e não custa lembrar que quando Rayuela foi publicado o Secretário Geral da ONU era o famoso U Thant (1909-1974).


Logo em seguida, Cortázar diz que Oliveira não resistiu a copiar aquela “jitanjáfora”, palavra que na época me hipnotizou, com seu mistério mesopotâmico ou birmanês. Hoje disponho da preciosa edição de bolso da Cátedra (Madrid, 1992), organizada pelo dedicado Andrés Amorós, que informa numa nota da rodapé:
 
“Jitanjáfora: nome inventado por Alfonso Reyes em 1929. Designa um certo tipo de jogos literários, que utilizam os valores fônicos e a capacidade sugestiva da linguagem. Não é muito distante do que faz às vezes Cortázar neste romance; um exemplo claro é o capítulo 68”. (É o capítulo do “glíglico”.)
 
Pronto! Esta informação me tirou das costas um peso de meio século. Toda vez que eu publicar agora um poema meramente melódico e um beletrista emergir a questionar-me, explicarei que é uma simples jitanjáfora, e enviá-lo-ei de imediato ao Pai-dos-Burros, do qual ninguém retorna sem um níquel de conhecimento.