sexta-feira, 27 de maio de 2022

4827) O indivíduo na planície (27.5.2022)



As verdades da literatura (da arte em geral) são verdades subjetivas, de dentro para fora. Um ótimo livro pode ser inspirado por uma idéia, e outro ótimo livro pode ser inspirado pela idéia oposta. Isto vale até para extremos como o de religiões, ideologias, políticas, etc. Mas o mais comum é vermos temperamentos diferentes produzindo obras diferentes.
 
Steven Erikson é um autor canadense, arqueólogo de formação, autor da bem-sucedida série de fantasia do “Malazan Book of the Fallen”, no estilo de Game of Thrones.
 
Numa entrevista à revista Locus (# 484, maio de 2001) ele faz uma comparação interessante de sua obra com a obra da também canadense Margaret Atwood, autora de The Handmaid’s Tale. Erikson se queixa de que existe, entre autores canadenses, uma mentalidade de vítimas do ambiente; heróis canadenses, cedo ou tarde, sucumbem ao ambiente e morrem.
 
É uma luta incessante que envolve um meio ambiente muito inóspito e a persistência humana; uma luta onde o ambiente invariavelmente triunfa. E todo mundo adotou este aspecto de vitimização como nossa identidade cultural. (trad. BT)
 
Erikson faz uma comparação entre duas atitudes possíveis:
 
De acordo com a tese de Atwood, se eu mostro um indivíduo solitário parado no centro de uma planície, esse indivíduo irá se sentir pequeno e insignificante. Mas quando eu escrevo algo assim, esse indivíduo percebe que ele, ou ela, é a coisa mais alta que existe de horizonte a horizonte. Com isso eu assumo uma atitude completamente diferente, que muitas vezes é uma reação deliberada a todo o espírito predominante no meio acadêmico e literário do Canadá.
 
Em discussões desse tipo brota muitas vezes a pergunta: “E qual dos dois está certo?”  Minha resposta geralmente é “Não existe resposta certa e resposta errada a esse tipo de pergunta. Cada autor reage de forma pessoal aos estímulos da sociedade e da cultura e do momento histórico. Cada um tem sua resposta, sua reação, sua verdade.”
 
Querer reduzir a “identidade nacional” canadense às atitudes pessoais de Atwood e de Erikson é algo sem sentido. Mesmo que não estivéssemos falando de algo tão complexo, mesmo que fosse apenas uma questão tipo “Qual a sua atitude pessoal diante do mundo?”, ainda assim as respostas são insuficientes. Erikson escreveu uma série de fantasia com 10 romances, provavelmente uma massa de texto maior que Game of Thrones, com centenas de personagens. Ninguém escreve algo dessa dimensão sem possuir um repertório proporcional de idéias, emoções, conceitos, respostas diante da vida, que possam ser transmitidas aos personagens.
 
Todo autor “é” seus heróis, mas esses heróis não bastam para representá-lo. Ele é também seus vilões, e seus figurantes medíocres, e suas vítimas trágicas, e seus “alívios cômicos”.
 
Este é o perigo de quando estudamos superficialmente uma literatura qualquer (ou qualquer conjunto de obras artísticas). Muita gente dirá que a literatura de Machado de Assis é cheia de sutilezas, de ceticismo, de ironia. Isso resume Machado? De jeito nenhum. Guimarães Rosa inventava palavras novas, distorcia a sintaxe, misturava regionalismos com arcaísmos. Isso resume sua obra? De jeito nenhum.
 
Um dos problemas de quem é professor, ou de quem escreve textos para o público em gral, dando informações iniciais sobre um tema, é a necessidade de usar esses resumos, essas formulazinhas, essas micro-definições que nem de longe correspondem à complexidade de um autor. Mas quando estamos fazendo balanços gerais (“O conto brasileiro na segunda metade do século 20”...) é inevitável fazer esse tipo de redução. Pegamos um autor de obra extensa e variada, e o definimos em duas ou três linhas de texto, que serão lidas, decoradas e repetidas por algumas pessoas até o fim da vida, crentes de que aquilo é “a verdade”.
 
A obra de Nelson Rodrigues exibe conhecimento psicológico, visão pessimista do ser humano, uso do sexo e do palavrão, autenticidade nos diálogos e nas descrições de ambientes, principalmente da classe média carioca.
 
Isso aí é verdade? Eu penso que sim, enxergo tudo isso na obra de Nelson. Saber isso equivale a conhecer a obra de Nelson? De jeito nenhum! 
 
Mas se nós, que somos profissionais da escrita, não temos tempo de ler as obras mais importantes de todos os autores importantes, o que dizer do leitor comum, cuja vida útil é ocupada com mil outras tarefas e compromissos? Se eu, que leio 5 a 6 horas por dia, não consigo ficar em dia com tudo, quanto mais a pessoa que lê 5 ou 6 horas por semana, ou menos que isso.
 
Daí que essas formulazinhas de vez em quando precisam ser viradas pelo avesso.
 
Kafka era pessimista? Talvez, mas também havia humor no que ele escrevia – consta que ele lia capítulos de O Processo para a família e todos morriam de rir.
 
Augusto dos Anjos era o poeta da morte? Talvez, mas muitos dos seus poemas são celebrações cósmicas da Vida, vista como uma série infinita de metamorfoses e processos evolutivos.
 
Cecília Meireles era uma poetisa subjetiva e emocional, cantando a natureza, os devaneios? Talvez, mas escreveu também um dos maiores poemas políticos de nossa literatura, o Romanceiro da Inconfidência.
 
E assim por diante. Não deveríamos nos limitar nem mesmo às avaliações que os autores fazem de si mesmos; nem sempre, ou quase nunca, o que um autor vê em sua própria obra é o que vai encontrar resposta nos leitores.