quarta-feira, 28 de abril de 2021

4698) A arte de usar a fórmula (28.4.2021)



 
O que é uma fórmula? É um conjunto de elementos que se devidamente usados produzem um resultado específico. 
 
A fórmula da água, H20, nos indica que se juntarmos dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio teremos uma molécula de água, e que essas moléculas, em quantidade suficiente, formarão o liquido que conhecemos tão bem.
 
A fórmula do romance detetivesco indica que deve haver um crime, que de início deverá haver um mistério acerca do crime (quem o cometeu, por quê o cometeu, como o cometeu), e que caberá a um personagem, o detetive, examinar os fatos e achar a solução.
 
Existem outras fórmulas literárias mais sofisticadas.
 
Por exemplo, os manuais de literatura falam da “sátira menipéia” (as denominações variam), cujas características principais seriam:
 
1) ausência de enobrecimento dos personagens;
2) mistura do sério e do cômico;
3) desprezo à verossimilhança, admitindo "as fantasmagorias mais desvairadas";
4) a representação frequente de "estados psíquicos aberrantes";
5) o uso intercalado de outros gêneros (cartas, novelas encapsuladas) no interior da história propriamente dita.



Capturei esta fórmula de um texto de José Guilherme Merquior sobre Machado de Assis e o seu Brás Cubas, onde Merquior aponta as semelhanças entre o livro de Machado e os traços desse gênero.
 
Um gênero literário não é mais do que um conjunto de obras que podem ser classificadas de acordo com uma fórmula. Os elementos citados na fórmula estão no livro? Então pronto.
 
Claro que sempre é preciso fazer um certo aconchambramento para que cada livro se encaixe bem direitinho na fórmula. Arranjar exemplos para uma teoria é sempre um “leito de Procusto”, aquele cara da mitologia grega que tinha um leito onde ele amarrava os prisioneiros: se o preso era muito comprido e sobravam os pés, ele cortava; se era baixinho e os pés não igualavam com o leito, ele o esticava com roldanas.
 
Os teóricos da expressão artística fazem isso há séculos, para demonstrar que o livro A é ficção científica, que o filme B tem ideologia popular, que o quadro C pertence à escola cubista, que a música D é rock autêntico...
 
Fórmula e obra são duas coisas diferentes. Alguém já disse que “o escritor medíocre obedece à fórmula, o escritor de talento desobedece à fórmula, e o gênio explode a fórmula e impõe uma fórmula nova”. Tipo isso.



(W. J. Solha)

Eu estava vendo nas redes sociais uma postagem de W. J. Solha, o escritor e artista plástico paulista "renascido" como paraibano. Solha dizia de sua estranheza ao ter um dos seus livros classificados como um “épico”, e outro se inscrevia na “literatura carnavalizadora” de Bakhtin. E Solha comenta, com bom humor: “Eu nunca tinha ouvido falar no russo nem nessa sua teoria”.

Existem dois tipos de criação artística. O primeiro deles é o que se pratica por aí em geral: absorver as obras alheias, e criar obras pessoais. O segundo é: absorver os preceitos teóricos e as fórmulas produzidas pelos teóricos, e criar a partir delas. Nenhum é melhor ou mais legítimo do que o outro – dependendo do resultado.
 
Eu posso, por exemplo, sem ter lido nenhuma “sátira menipéia”, pegar aquela fórmula usada lá em cima por Merquior e escrever um livro. Vai ficar parecido com as sátiras dos gregos e dos romanos? Capaz que fique. E no fim das contas não importa muito – o que importa mesmo é se a leitura da minha sátira menipéia produza um efeito estético no leitor. Independentemente de como seja chamada.
 
E mais. Eu posso pegar meu livro escrito sob a fórmula da “sátira menipéia” e dar-lhe outro rótulo igualmente artificial e igualmente plausível. Digamos que escrevi uma aventura interplanetária meio doidona, coisa que eu posso escrever com um pé nas costas. Direi aos críticos: “Meu romance é um exemplo do Absurdismo Interplanetário, na linha de Douglas Adams e de Robert Sheckley”. Aposto dobrado contra singelo como qualquer crítico engole essa. E faz muito bem.
 
Se nos livros do mestre Solha havia algo de épico ou de carnavalizador isso não se devia à aplicação de uma fórmula, mas à vagarosa sedimentação de efeitos, recursos, soluções estruturais, opções dramatúrgicas, etc., que ele foi absorvendo ao longo de anos e décadas de leituras.
 
Quando a gente lê muito, a gente percebe os grandes arcos que sustentam um gênero literário ou uma coletividade qualquer de idéias. Estão em cada obra individual. Mas estão invisíveis, porque em cada obra o que primeiro percebemos é o raro, o único, o individual. Mas depois de ler 100 romances policiais, 100 poemas épicos ou 100 comédias de vaudeville o verdadeiro escritor percebe a continuidade de certos traços, que percorrem transversalmente todas essas obras tão diferentes entre si. Esses traços são a fórmula-do-gênero, que ele encontrou sem procurar.
 
Um escritor pode passar para si mesmo esse dever-de-casa. Se tiver talento, pouco importa se ele leu 100 livros ou se leu somente a fórmula. Raymond Chandler nunca tinha publicado um livro até os 50 anos: era um executivo de empresa petrolífera, com educação clássica na Inglaterra. A pessoa menos indicada para escrever histórias policiais de pulp fiction. Precisava de dinheiro. As revistas pagavam bem. Leu quantidades industriais de pulp magazines, estudou a obra de Hammett, Gardner e outros... e explodiu a fórmula, criou uma fórmula nova.
 

 

  
 
 







domingo, 25 de abril de 2021

4697) As distopias do mundo real (25.4.2021)



 
Como se tem falado sobre literatura Utópica e Distópica! Dez anos atrás, você só via a palavra “Distopia” em websaites de ficção científica. Hoje circula por todo canto. Não dou seis meses para aparecer nas letras de algum álbum de dupla sertaneja. “Veeeem... Vem trazer o sol para clarear meu dia...  Vem me tirar desta distopia... em que você me deixou!”
 
Tudo é possível, porque é o espírito do tempo, é o momento presente do mundo, envolto (além dos problemas permanentes, e cada vez maiores) com uma Pandemia e tentativas localizadas de quarentenas, lockdowns, etc. 
 
Na literatura há ficções sobre Utopias que parecem brotar em lugares remotos, espontaneamente, “de dentro para fora”, sem interferência de outras civilizações e em alguns casos sem interferência sequer de um programa organizado de governo. Seriam utopias espontâneas, como a sociedade dos índios – contratos sociais que foram se fixando por si mesmos, sujeitos a interferências, adaptando-se...
 
Em outros casos, temos as Utopias De Cima Para Baixo, aquele velho esquema de um grupo que toma o poder e decide estabelecer ali a civilização ideal da paz e harmonia, mesmo que para si tenha que recorrer ao extermínio dos dissidentes. É aquela contradição entre boas intenções teóricas e métodos práticos truculentos, tão bem expressa pelo Augusto Matraga, de Guimarães Rosa, em sua fase de beato: “Pro Céu eu vou, nem que seja a porrete!...”
 
Muitas utopias literárias são impostas a porrete, daí o comentário tão frequente de que a utopia de uns é sempre a distopia de outros.
 
As discussões recentes sobre este assunto têm se concentrado em três obras principais: Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, 1984 de George Orwell e Laranja Mecânica de Anthony Burgess. São três livros de autores respeitados pela crítica literária e pelo Establishment intelectual e acadêmico do seu país de origem – os três eram ingleses, embora Orwell tivesse nascido na Índia.
 
Este é um forte elemento em comum, porque todos três exprimem modos peculiarmente britânicos de refletir sobre governos fortes, guerra, sociedade rigidamente estratificada em classes sociais, demagogia política, embrutecimento das classes trabalhadoras, estrangulamento das possibilidades de futuro dos mais jovens. Há nos três livros muita coisa de universal, mas são um conjunto de reflexões tipicamente britânicas sobre o perfil que deverá ter a derrapagem final da Humanidade.



Não são as únicas receitas. É claro. Por exemplo, tanto Huxley quanto Orwell sofreram uma forte influência do russo Yevgeny Zamiátin, com Nós (1921), já publicado no Brasil (como A Muralha Verde, pela GRD; como Nós, pela Aleph).  Como o autor é meio obscuro, sua influência passa um pouco despercebida, mas eu diria que ele marcou toda essa geração de autores ingleses.
 
As distopias são “cenários de gargalo”, ordens sócio-políticas em que todas as possibilidades de ação e de realização humana veem-se bloqueadas em várias direções e canalizadas rumo a atividades que interessam a um governo forte, bem armado e com domínio da tecnologia, inclusive a tecnologia conceitual (manipulação ideológica das massas, etc.). O que nelas existe de caos são as emoções turbulentas, autodestrutivas e rancorosas da população – um pouco menos no livro de Huxley, onde um paraíso de drogas legalizadas a mantém numa agitação auto-erótica permanente.
 
As possibilidades, como sempre, são infinitas. O francês Georges Perec tem um curioso romance-memória, W ou A Memória da Infância (1975; Companhia das Letras, 1995). Uma das linhas narrativas do livro descreve a ilha de W, no Atlântico Sul, onde vigora uma sociedade baseada no autoritarismo, nos esportes atléticos, na competição incessante, na busca de índices numéricos, na violência física, na traição moral.
 
É como se numa oficina de ficção científica um professor dissesse a um aluno: “A sua tarefa vai ser imaginar um mundo organizado em torno de uma Olimpíada nazista permanente”.



O livro de Perec, apesar da superfície realista, é um pesadelo irreal, que só nos atinge de forma indireta. Muito mais real é uma narrativa onde somos capazes de reconhecer algo de nossa vida cotidiana. Frederik Pohl e C. M. Kornbluth escreveram The Space Merchants (1952), já traduzido no Brasil como Os Mercadores do Espaço, onde imaginam uma América do Norte faminta, desempregada e desvalida, mas como quem está no Poder são os publicitários, todas as pessoas imaginam que são felizes e que a vida é somente aquilo mesmo.
 




quinta-feira, 22 de abril de 2021

4696) O planeta dos Crimes Impossíveis (22.4.2021)



Teve início esta semana a campanha de financiamento coletivo de meu novo livro, a antologia Crimes Impossíveis, a ser lançado pela Editora Bandeirola, com o apoio do Catarse.

Quem quiser saber os detalhes da campanha, os prêmios e as formas de apoiar, dê um pulo aqui neste link:

https://www.catarse.me/crimes_impossiveis

 

Esta é uma nova série de antologias que estou preparando para a Editora Bandeirola, sob a coordenação de minha editora Sandra Abrano, que tem apoiado as minhas idéias, acreditado nas propostas, e durante a quarentena dos últimos doze meses já reunimos um material que, se tudo correr bem, pode nos dar uma boa série de antologias até 2022 ou 2023.

Crimes Impossíveis é a primeira delas, e tem o tema: “Mistérios de Quarto Fechado: de 1838 a 1933”, e cobre o período dos precursores e criadores do conto detetivesco, além da chamada Era de Ouro desse gênero. Nos volumes posteriores, um deverá incluir os Autores Modernos (onde entrariam alguns grandes mestres como John Dickson Carr, Ellery Queen, Agatha Christie etc.) e um volume dedicado a autores brasileiros e latino-americanos, uma pesquisa que demanda mais tempo.

Idealmente esses três volumes devem sair em 2021, 2022 e 2023. Idealmente esta primeira antologia servirá de alavanca para financiar as demais.

Eu me lembro que a primeira vez que peguei uma folha de papel e anotei as variantes do “Crime de Quarto Fechado” foi por volta de 1966, quando eu trabalhava no “Diário da Borborema” e colecionava revistas de contos policiais como Mistério Magazine de Ellery Queen, X-9, Meia Noite, Suspense... Todo mês tinha um número novo de cada uma delas, nas bancas.





O quarto fechado é um desafio à engenhosidade. Quem inventou esse tipo de história? Minha antologia coloca esse curioso problema. A versão oficial é de que o primeiro locked room mystery foi o conto fundador de Edgar Allan Poe, The Murders in the Rue Morgue, publicado há exatamente 180 anos, em abril de 1841. Outra corrente mais recente mostra a possível precedência de um conto de Sheridan LeFanu, de 1838. Os dois estão no meu livro.


(O manuscrito original de “Os assassinatos na Rua Morgue”, que está completando este mês 180 anos)


O crítico acadêmico é um cientista, é aquele cara que chega na cozinha da casa da gente e diz: “Mas você vai usar esses dois peixes na moqueca? Observe que são dois peixes diferentes. Esse aqui tem escamas triangulares e este tem escamas arredondadas.” A gente agradece a informação, mas uma antologia é uma moqueca: deve ser julgada pela experiência do sabor, e deixar para outro momento a catação-de-lêndeas das minúcias estruturais.

(Antes que os nerds gastronômicos venham me explicar que peixes de escamas diferentes têm sabor diferente e não devem aparecer juntos num mesmo prato, devo explicar que em literatura uma comparação desse tipo esgota-se neste primeiro momento; toda comparação, se aprofundada, diverge cada vez mais e conduz ao absurdo.)

Quando falamos de um gênero literário – no presente caso, o conto criminal-detetivesco – existem duas atitudes possíveis a quem vai classificá-los.

O crítico, geralmente, funciona como uma Alfândega Distópica. Bota defeito em tudo, desconfia de todo mundo e só passa por ali quem atender com perfeição a todas as suas exigências. O propósito dele é definir o gênero-em-si, sem ser contaminado por nenhum elemento estranho a ele. É como um químico que peneira e filtra e destila um material até achar um elemento químico em estado puro.

O antologista, por outro lado, é uma espécie Chef de Soparia, e tem uma atitude diferente, que é a minha. Ele é um agregador. Esquece as diferenças, e aproxima coisas distantes sempre que vê nelas algum grau de semelhança. Basta que dois contos muitíssimo diferentes em tudo tenham um elemento forte em comum, para que eles possam ser incluídos na mesma antologia.

Por que? Porque o Crítico é um cientista que quer definir a essência de um fenômeno, e o Antologista é uma espécie de escritor, tudo que ele quer é compor um livro, mesmo que somente com imaginações alheias. Em vez de definir o fenômeno, ele quer apenas intensificá-lo (e quem vier depois que o defina).

 

Crimes Impossíveis mostra o quanto essas classificações literárias são cansativas e às vezes contraditórias. O conto de Edgar Poe não tem criminoso, o conto de Sheridan LeFanu não tem detetive. Os dois, em conjunto, criaram o gênero em que esses dois personagens arquetípicos confrontam suas inteligências e suas motivações pessoais.

Já escrevi algures que a função de qualquer antologia é fazer cada leitor lembrar-se instantaneamente de 450 histórias que também deveriam ter sido incluídas naquela seleção. Entendo perfeitamente. Eu também sou assim, quando leio, em um dia, uma antologia que um coitado qualquer levou um ano para pesquisar e organizar.

Não importa. O que importa é o prazer da leitura, o prazer de experimentar aquele coro de vozes narrativas aparentemente dissonantes, de países diferentes, épocas diferentes, cenas literárias diferentes, glosando o mesmo mote.

O livro tem um prefácio, e apresentações individuais para cada autor. Os contos incluídos são:


1) "O Romney Roubado" (1919) -- Edgar Wallace

2) "A Adaga de Alumínio" (1909) -- R. Austin Freeman

3) "O Suicídio de Kiaros" (1897) -- L. Frank Baum

4) "O Mistério de Doomdorf" (1914) -- Melville Davisson Post

5) "A Morte na Praia" (1922) -- Maurice Leblanc

6) "O Problema da Cela 13" (1905) - Jacques Futrelle

7) "A Aventura da Faixa Malhada" (1892) -- Conan Doyle

8) "Uma Passagem na História Secreta de uma Condessa na Irlanda" (1838) -- Sheridan LeFanu

9) "Os Assassinatos da Rua Morgue" (1841) -- Edgar Allan Poe

10) "A Maldição do Livro" (1933) -- G. K. Chesterton







 


 














segunda-feira, 19 de abril de 2021

4695) A bênção do anonimato (19.4.2021)



 

Queixam-se muitos escritores, os jovens principalmente, de que trabalham no escuro, como completos desconhecidos. Ninguém lhes dá atenção, ou lhes dedica respeito, enquanto eles elaboram, sabe-se lá com que sacrifício, o livro com que pretendem um dia estrear nas letras.
 
Entendo isso, mas entendo também o anonimato como uma bênção. Ninguém os elogia, mas ninguém também os esculhamba em público. Ninguém lhes pede contas de sua vida pessoal. Ah, a imprensa não noticia suas viagens, seus aniversários, as noites em que recebem amigos para jantar? Aproveitem.
 
Pobre escritor que desembarca sozinho no aeroporto, arrastando a mala de rodinhas, e não há uma multidão pedindo autógrafos e selfies? Em verdade vos digo que quem anseia por essas coisas e se dedica à literatura está batendo à porta errada num prédio que não vai ser construído.
 
O anonimato pode ser uma bênção. Se não o anonimato total, mas o fato de que muitas vezes o escritor trabalha no centro de um mundinho de algumas dezenas de pessoas que o consideram O Gênio Da Raça, mas são só algumas dezenas. Parentes, amigos, colegas, alunos... Ele escreve, as pessoas leem, os anos se passam e todo mundo diz que ele merece o Prêmio Nobel. Isso é bom. Dá-lhe ânimo para continuar escrevendo.
 
Não foi outro, por exemplo, o destino de Jorge Luís Borges entre os 35 e os 50 anos, época em que produziu, podemos admitir, suas obras fundamentais, as que deram um abalo no conceito de literatura na segunda metade do século: História Universal da Infâmia (1935), História da Eternidade (1936), Ficções (1944), O Aleph (1949).
 

(Jorge Luis Borges) 

Dizer que foram escritas no anonimato é talvez um exagero. Borges era conhecido em Buenos Aires e Montevidéu, mas era o ídolo de uns happy few, uns poucos felizardos que acompanhavam suas publicações e suas palestras. Nada disso, porém, se compara à explosão que ele experimentou a partir dos 60 anos, quando dividiu o Prix International com o irlandês Samuel Beckett. Traduções em penca, reedições, viagens pelo mundo todo. As intermináveis, insuportáveis, incontornáveis entrevistas.
 
Escritores deveriam ser poupados de duas tragédias: a penúria e a fama.
 
José Veríssimo, em sua equilibrada e judiciosa História da Literatura Brasileira (1916), observa alguns casos curiosos entre nossos autores:
 
Na literatura brasileira dá-se freqüentemente o caso estranho de iniciarem-se os escritores com as suas melhores obras e estacionarem nelas, se delas não retrogradam. O fato passou-se com Alencar com o Guarani, com Macedo com a Moreninha, com Taunay com a Inocência, com Raul Pompéia com o Ateneu, com o Sr. Bilac com as suas primeiras Poesias, e se está acaso passando com o Sr. Graça Aranha com o seu Canaã
 
Até onde vai meu conhecimento é um julgamento merecedor de exame. O próprio Veríssimo, comentando a obra de Alencar, não deixa de observar que o temperamento deste, seu excesso de zelos, sua disposição para a polêmica, seu envolvimento com a política, foram alguns fatores que tiveram influência direta na sua obra, principalmente na segunda fase desta, a partir de 1870, em que se assinava “Sênio”, e que para Veríssimo é claramente inferior à primeira fase.


(José de Alencar ]
 
Artista nervoso e nimiamente suscetível, um sensitivo, alma de impressionabilidade doentia, não soube Alencar sofrer com isenção e superioridade o malogro das suas ambições políticas, mais quando vinha acompanhado da negação dos seus talentos literários e da sua obra, em arremetidas açuladas pelos mesmos com quem o seu temperamento irritadiço, quiçá vaidade de intelectual que se não dissimulava bastante, o tinham politicamente incompatibilizado.
 
Para muitos autores o excesso de exposição pesa na mão, na hora de escrever. O excesso de expectativas positivas, por exemplo. Estou cansado de ver a imprensa literária publicando matérias no tom de “O mundo inteiro aguarda com enorme expectativa a nova obra magistral de Umberto Eco. Os originais foram entregues na semana passada à editora Einaudi, e um frenético leilão já está em curso pelos direitos de tradução em dezenove idiomas.”
 
Tem quem escreva com um barulho desse? Precisa ter nervos de jogador de basquete na hora do lance-livre.
 
Alguns se dão bem com isso. Outros não.
 
No cinema, acho que foi François Truffaut quem se referiu à “maldição do segundo filme”, porque o jovem diretor derrama tudo que sabe e tudo que pode em seu primeiro trabalho pra valer, vê como este é recebido com admiração e entusiasmo, o que gera uma tremenda expectativa para seu filme seguinte – que ele não sabe o que vai ser, porque gastou toda a munição que tinha na obra-prima com que estreou.
 
Com ele aconteceu mais ou menos isso, porque estreou com o “universalmente aclamado” Os Incompreendidos (1959), “o filme que inventou a Nouvelle Vague”, e ninguém lembra mais do filme que fez no ano seguinte, um policial noir baseado em David Goodis, Atirem no Pianista. Truffaut conseguiu – como tantos – fazer filmes numerosos e superiores ao seu primeiro, mas porque era um cinemeiro, vivia do e para o cinema, tinha muito talento, queimou tudo quanto tinha para queimar, morreu com 52 anos.


(François Truffaut)


Talvez o menor impacto que teve a obra de Eric Rohmer o tenha ajudado a ser ele mesmo e produzir dezenas de filmes simples, discretos, feitos sem alarde e assistidos com silenciosa simpatia por um público pequeno mas até hoje fiel.



(Eric Rohmer)


Na literatura, que é um ofício mais solitário, vejo muitos casos em que um primeiro romance, mesmo com as limitações naturais de uma obra de estréia, reflete a pessoa e o mundo do seu autor. Quando há um grande sucesso, acontece às vezes que quem escreve os livros seguintes não é o mais o autor que escreveu o primeiro, e sim o autor que ele imagina ser depois de ter lido tudo que se escreveu sobre ele.
 
Como tudo na vida, esse excesso de auto-consciência pode ajudar e pode atrapalhar. Nem todo mundo administra o sucesso com mão firme. Para os mais extrovertidos, o anonimato é um peso insuportável e a fama é o voo libertador. E quem pode dizer que estão errados? Outros, no entanto, trocariam boa parte da badalação pública pelo direito de escrever sem prestar contas a ninguém, sem ter por cima do ombro um grupo de críticos prontos a sentar-lhe a chibata ou a chamá-lo de gênio por dá cá aquela palha.
 
 
 






sexta-feira, 16 de abril de 2021

4694) O sinônimo da nota musical (16.4.2021)



Os aficionados da cantoria de viola vivem a me perguntar se Zé Limeira existiu de verdade. Curiosamente, ninguém me pergunta o mesmo sobre o poeta violeiro Bandeira Sobrinho, com quem conversei muito, bebi, viajei, glosei motes, e que para muita gente não é uma pessoa real, vive apenas no mundo dos personagens diegéticos.
 
Bandeira Sobrinho, caso não-diegético fosse, teria uns cinquenta anos quando eu tinha vinte e cinco, e nossa amizade meio improvável se consolidou aos poucos, entre uma cerveja no Bar de Seu Manu e um café pequeno no Calçadão. Era forte, atarracado, tinha um bigode grisalho, óculos. Bebia muito, sorria pouco, mas tinha um inesperado senso de humor.
 
Não foi o violeiro mais brilhante de sua época, porque disputava espaço em Campina Grande com outros de sua geração, como José Gonçalves ou Antonio Barbosa, e com os da nova geração de galos-de-briga que, naqueles meados dos anos 1970, começavam a botar as unhas de fora: Ivanildo Vila Nova, Moacir Laurentino, Severino Feitosa, para falar apenas dos que moravam em Campina.
 
Quando fomos publicar os folhetinhos transcrevendo os versos gravados nos espetáculos do Congresso Nacional de Violeiros, patrocinados pela Universidade Regional do Nordeste, tivemos a idéia de incluir nos folhetos as partituras com as melodias correspondentes a cada estilo: sextilha, galope, martelo, quadrão, etc.  

O diretor do Museu de Arte era José Umbelino, que convocou o maestro Pedro Santos para a tarefa. Pedro Santos, grande sujeito, era de João Pessoa e nessa época estava pagando os pecados em Campina, porque no Museu quem mandava era a gente, e não tinha hora de funcionamento.
 
– Maestro, este aqui é o poeta Bandeira Sobrinho, meu grande amigo. Ele vai cantar as melodias e você copia.
 
– Muito bem, vamos lá.
 
Fui tomar um café na cantina e voltei meia hora depois para constatar um impasse entre os dois.
 
– Algum problema?
 
– Não propriamente um problema – disse o maestro, que era o rei da paciência e da diplomacia. – Mas cada vez que eu peço pra repetir ele canta uma melodia diferente.
 
– É a mesma – insistiu Bandeira, já arrufando as penas.
 
– Não, poeta, presta atenção... – explicava Pedro, ao piano, um dedo nas teclas, outro apontando a partitura recém-rabiscada. – Aqui era essa nota, e você na segunda vez cantou essa outra aqui.
 
– E que diferença faz – disse Bandeira. – Se não foi a mesma nota, foi um sinônimo.


(maestro Pedro Santos)


Surgiu pela primeira vez nessa tarde a minha percepção de que um dos elementos que diferenciam a cultura erudita e a cultura popular é que a primeira privilegia a visão de detalhe, e a segunda a visão de conjunto. 

Pode não ser a melhor maneira de colocar essa questão, mas vejam só. Eu também costumo cantar e tocar violão, e não sou dos mais afinados. Se estou cantando uma música qualquer, seja dos Beatles ou de Ataulfo Alves, não estou preocupado com as notas individuais, e sim com a frase melódica. Aqui e acolá pode uma nota não ser igual ao disco, pode não ser igual até à que cantei há pouco; e daí? O que importa é que o ouvinte reconheça a frase. “Pois é, falaram tanto, que desta vez a morena foi-se embora...” Se o ouvinte reconhecer a melodia geral, que diferença faz uma nota ou um sinônimo dela?
 
Bandeira e o maestro Pedro comeram o pão que o diabo amassou durante algumas tardes, mas as partituras foram feitas e saíram no folheto. Surgiu entre os dois uma amizade distante baseada no respeito e na perplexidade. Foi um pouco como aquele filme de guerra de John Boorman que passou na época no Cine Capitólio, Inferno no Pacífico, onde um soldado americano e um japonês, numa ilha deserta, brigam tanto que acabam admirando um ao outro.
 
A cultura erudita se baseia na possibilidade da existência da Versão Única, ou da produção de um Documento Definitivo, de uma Matriz da qual deverão derivar todas as cópias, citações, referências, etc.  É o Império do Documento Escrito.
 
Já a cultura oral se baseia na superposição incessante de versões sempre diferentes entre si, mas guardando uma semelhança que permite considerar que sejam “a mesma coisa”. Não há (isso vale para os Mitos, para as Lendas, para todas as formas orais de narrativa) uma versão mais verdadeira do que todas as outras. Cada uma é a foto-da-nuvem. A nuvem é o conjunto de todas.
 
Quando eu estou cantando até me preocupo em “cantar a letra certa”, mas se na hora não me vier uma palavra entra outra, e fica por isso mesmo. Em mesa de bar (=cultura oral), ninguém liga. Em estúdio (=cultura erudita), o técnico manda fazer de novo. “Vamos fazer a boa, agora...”
 
E mesmo essa cultura musical de estúdio deixa-se contaminar pela outra. Porque num universo como a Música Popular Brasileira, só para dar um exemplo, letra e melodia de uma canção são geralmente respeitadas, mas não são sagradas. Intérpretes mexem, sim; e uma explicação simples para o que acontece pode ser esta: “Se a cantora desafina, erra a nota, pára tudo e vamos gravar de novo; se a cantora está interpretando, está fazendo floreios vocais com pleno domínio de sua técnica, então vale, mesmo que vá longe da melodia original”.
 
A música fonográfica abomina a desafinação (=o erro) mas acolhe a criatividade pessoal. Os compositores escutam, percebem que a música foi alterada, mas muitas vezes admitem que foi alterada “para melhor”, ou pelo menos para se adequar ao sentimento próprio daquela interpretação; e não reclamam.
 
Quando Ella Fitzgerald ou Nana Caymmi começam a florear a melodia, isso é a forma aristocrática (digamos assim) do “cantar de oitiva” dos intérpretes populares, que em seus terraços de sábado ou fundos-de-quintal de domingo cantam a melodia (e a letra) do jeito que lembram, que entendem e que conseguem.



(Lourival e Pinto)
 
O cantador de viola, o poeta repentista, dá atenção à melodia, mas é a mesma que dá ao paletó quando sai para cantar. Tem que estar tudo em ordem, mas não é isso que ele vai exibir para o público: ele vai exibir os versos, a poesia, e tanto a música quanto o figurino são meros coadjuvantes. 

Pesquisadores já comentaram comigo sobre sua decepção ao tentar acompanhar o áudio de uma cantoria entre os mestres Lourival Batista e Pinto do Monteiro, dois dos maiores gigantes do repente, e duas das vozes mais trôpegas dessa arte. Principalmente porque a maioria dos áudios que gravaram já foi na entrada da velhice, quando dicção, dentadura e garganta já não estavam mais em seus melhores momentos.

Quando Geraldo Sarno filmou um pé-de-parede entre os dois veteranos, no curta Cantoria (produzido por Thomas Farkas), usou legendas em português, para meu grande alívio. 
 
A nota musical ajuda quando está correta, mas para o cantador o maior importante é que não atrapalhe. Na hora, se ela não puder vir à goela, que mande um sinônimo.
 
 
 
 
 



terça-feira, 13 de abril de 2021

4693) Um cânone brasileiro alternativo (13.4.2021)



No ano já distante de 2006, a revista recifense Continente Multicultural convidou uma porção de gente, eu inclusive, a participar de uma votação sobre o “Cânone da Literatura Brasileira”, incluindo aí a prosa de ficção e a poesia.
 
Não sei como os outros definem “cânone literário”, mas eu defino, meio frouxamente, como um possível conjunto de obras que é preciso conhecer para entender os caminhos, as possibilidades e o espírito da nossa literatura.
 
Não é uma lista dos “dez melhores”.
 
É uma lista de livros que contribuíram fortemente para a formação dos autores que vieram depois; e com impacto inclusive fora do âmbito estritamente literário. Livros influentes; e livros que nos reflitam como povo, que nos revelem como cultura, que indiquem a um leitor, recém-chegado ao mundo, o que é o Brasil pela voz dos seus escritores – e modéstia à parte, não sei que voz mais adequada haveria.
 
Na época daquela enquete, questionei um detalhe que me preocupava. Com o passar dos anos, certos livros vão se tornando quase obrigatórios. Sua ausência provocaria indignações, arrufos, talvez até uma troca de sopapos. “Como se atreve a deixar de fora Grande Sertão: Veredas?! Dom Casmurro?!!!”.
 
Resultado: ninguém mexe mais no cânone, onde entram somente as unanimidades. Fica parecendo os Dez Mandamentos. Pra tirar dali um desses consagrados vai ser preciso fazer uma verdadeira CPC, “Campanha de Problematização e Cancelamento”.
 
Minha sugestão, na época, foi deixar de fora os títulos que parecessem óbvios. E indiquei dez que na época me pareceram plenamente merecedores de figurar entre o que o Brasil já produziu de melhor, mas que talvez nunca entrassem numa lista dessa natureza. Talvez até por serem preteridos por outras obras supostamente “superiores” do mesmo autor.
 
Pensando assim, fiz minha sugestão incluindo seis obras de prosa: Corpo de Baile de Guimarães Rosa, Memórias Sentimentais de João Miramar / Serafim Ponte Grande de Oswald de Andrade, Romance da Pedra do Reino de Ariano Suassuna, Reinações de Narizinho de Monteiro Lobato, A Grande Arte de Rubem Fonseca, Nove, Novena de Osman Lins. 
 
E quatro de poesia: Invenção de Orfeu de Jorge de Lima, Romanceiro da Inconfidência de Cecília Meireles, Eu de Augusto dos Anjos e Cobra Norato de Raul Bopp.
 
Todo mundo tem o direito (e o prazer) de discordar, é claro, mas com esses dez livros embaixo do braço eu passaria mais uma vida inteira. Alguém dirá: “Mas faltou Fulano de Tal!”  E eu responderei: “Em toda lista falta alguém, até na Lista de Schindler.”
 
Colocou-se há pouco, numa discussão semelhante, a questão: “Tudo bem, você indicou uma opção B aceitável; mas, haveria uma opção C?”  Ou seja: seria possível indicar uma nova lista sob os mesmos critérios, deixando de lado os “óbvios, incontornáveis”, e também os dez títulos acima?
 
Não acho difícil. Conferenciei aqui com meus botões, ou melhor, com minhas teclas, e bolei a lista abaixo. Para não me afastar muito da proposta inicial, são novamente seis obras em prosa e quatro em verso. Todos me parecem necessários para compreender do que o Brasil é capaz – além de serem livros, é claro, que me despertam um sentimento de gratidão e de orgulho-alheio, sempre que me lembro deles.
 
E sempre lembrando: o objetivo destas minhas listas é indicar títulos “não-óbvios”, que dificilmente seriam indicados para um cânone porque outras obras do mesmo autor, as consideradas “obrigatórias”, passariam na frente.
 
Obras em prosa:

 
1.       Dona Flor e seus Dois Maridos (1966) de Jorge Amado. Não botei nada do baiano na minha primeira lista, e tenho convicção de que se alguém for “canonizar” um livro dele provavelmente vai ser Gabriela, Cravo e Canela. Mas Dona Flor foi um sucesso enorme desde o lançamento, foi adaptado para o cinema, marcou gerações. Sem ter sido o primeiro livro de Jorge que li, foi o primeiro que me despertou, na adolescência, para as possibilidades literárias do romance erótico e para as possibilidades brasileiras do romance de fantasmas. (E me ajudou a ir morar na Bahia dez anos depois, mas isso já é outra história.)



2.       Memorial de Maria Moura (1992), de Raquel de Queiroz. Qual é o título óbvio, de Raquel? Claro que é O Quinze, que dizem ter sido escrito quando ela tinha 17 anos – e é um grande livro. Mas por trás dele acabam ficando invisíveis outros romances excelentes, como este. É um épico sertanejo de uma mulher-guerreira, uma mistura de Cat Ballou e Dona Guidinha do Poço. Pesquisa histórica e geográfica bem fundamentada, aventuras, violência, morte, paixões eróticas desenfreadas, religião, economia rudimentar. Um romance guerreiro que se encerra, triunfalmente, com o “exército” sertanejo partindo para uma batalha de resultado imprevisível. E publicado por uma escritora de 80 anos.



3.       Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909), de Lima Barreto. O óbvio de Lima é Policarpo Quaresma, mas eu tenho uma admiração por esta história de um rapaz negro, inteligente, com leitura, forçado a trabalhar como contínuo num jornal cheio de pavões menos competentes do que ele. O retrato do Rio é excelente. Foi o primeiro livro escrito pelo autor, que já estava todo nele. E o retrato da imprensa brasileira continua atual.



4.       Felicidade Clandestina (1971), de Clarice Lispector. Os títulos canônicos mais óbvios de Clarice seriam A Paixão Segundo G.H. (mais complexo) ou A Hora da Estrela (mais popular). Mas eu acho que a influência maior da obra da “frasista mais famosa da Internet” está nos contos, sempre brilhantes. Como neste livro, onde cabem pequenas crônicas, pequenas histórias absurdistas, retratos de família, e até o inexplicável e inesgotável “O Ovo e a Galinha”.



5.       Elas Gostam de Apanhar (?), de Nelson Rodrigues. A obra de Nelson é um caos bibliográfico; sua influência sobre o público foi maior na imprensa do que nos livros. Coloco aqui esta coletânea da Editora Bloch (não localizei a data), que li nos anos 1960, com capa de Ziraldo. Tudo que está no teatro de Nelson está em sua prosa de ficção.



6.       Várias Histórias (1896) de Machado de Assis. Pois é, em qualquer cânone alguém instala o Dom Casmurro ou o Memórias Póstumas de Brás Cubas (com toda justiça, aliás) e deixa de fora um dos maiores contistas do país. Escolher um volume de contos entre tantos também não é fácil. Escolho este porque a maioria de seus contos saiu durante a década miraculosa de 1880.
 
 
Obras em poesia:


1.       Caprichos & Relaxos (1983), de Paulo Leminski. É um autor recente, mas ouso dizer que já pode ser incluído no cânone, até mesmo como provocação, porque era um notório chovedor no piquenique alheio. Leminski marcou presença no romance, no ensaio, na publicidade, na música popular, e recentemente seu volume Toda a Poesia chegou às listas de best-seller. Sua influência, dos anos 1980 para cá, tem sido imensa – e merecida.



2.       A Educação pela Pedra (1962-65) de João Cabral de Melo Neto. Mais uma vez: o óbvio cabralino em qualquer lista seriam O Cão Sem Plumas ou Morte e Vida Severina, mais conhecidos, mais marcantes, mais emblemáticos. Não me custa nada indicar esse livro duro, árido, onde Cabral se transpôs com alicerces e tudo para o verso longo, o quase-decassílabo, expandindo sua poética para além das cadências redondilhas do romanceiro. 



3.       Poemas (1922-1953) de Ascenso Ferreira. É o volume que reúne os três livros anteriores do autor (Catimbó, Cana Caiana e Xenhenhém). A oralidade, o coloquialismo, o vocabulário regional, os temas “folclóricos”, tudo está presente nesses livros que são talvez o melhor encontro entre o Modernismo e a poesia falada. E deve ter sido um dos primeiros livros da poesia brasileira a trazer a partitura das melodias citadas.



4.       Xadrez de Estrelas (19760 de Haroldo de Campos. A Poesia Concreta dos paulistanos teve um impacto profundo na literatura brasileira, inclusive sobre os que não gostam dela. Eu gosto. Esta coletânea de Haroldo de Campos traz vários dos seus livros concretistas e se encerra com o clássico Galáxias (1973), uma experiência de prosa poética “riocorrente”. Alguém pode até não gostar dos poemas (eu gosto), mas ninguém pode negar que essa poesia fez muitos poetas perceberem pela primeira vez que a poesia era feita de palavras, não de idéias, e que as palavras tinham materialidade.
 
Os títulos listados acima seriam, na minha opinião, uma boa introdução à literatura brasileira para um hipotético estrangeiro (sueco, queniano ou vietnamita) razoavelmente bem informado, e com domínio razoável da língua portuguesa falada no Brasil.
 
A lista esgota nossa literatura? Não, nenhuma lista esgota. Por que ficam de fora tantos autores? Provavelmente porque nunca li, como é o caso de obras que admiro à distância, como O Tempo e o Vento de Erico Verissimo ou Memórias do Cárcere de Graciliano Ramos. 

E por que não incluí as obras X, Y e Z, que efetivamente li? Porque o mote é “lista de dez”. Quando estou desocupado, precisando esquentar o motor do juízo para escrever coisas mais sérias, pensar nisso ajuda a produzir a ignição. A lista não tem importância.
 
 
 





sábado, 10 de abril de 2021

4692) A piada e o tiro de canhão (10.4.2021)


É uma historieta das antigas, que já vi atribuída a diferentes pessoas. Digamos que tenha acontecido com Chico Anysio. Ele estava na fila de embarque do aeroporto, quando um general o avistou, aproximou-se, os dois já se conheciam de outras paradas, cumprimentaram-se cordialmente.
 
GENERAL – Chico, conte aí uma piada.
 
CHICO – Só conto se o senhor der um tiro de canhão.
 
Todas as pessoas em volta riram, os dois abraçaram-se, despediram-se, embarcaram cada um no seu voo.
 
A verdade é que o general saiu ganhando, porque Chico disse a piada – e o general não precisou (felizmente) disparar canhão nenhum. O episódio, entretanto, ilustra a cilada fatal em que o artista sempre acaba caindo em qualquer cabo-de-guerra com um poderoso. O artista (humoristas incluídos) não resiste à chance de produzir uma obra de arte, mesmo não-remunerada, mesmo que seja uma frasezinha apenas.
 
Digressão: Eu considero a frase, a frase-de-efeito, o aforismo, o ditado, a máxima e outras modalidades como uma forma de arte literária, SIM. É uma forma híbrida (porque se mistura e se confunde com o verso, o diálogo ficcional, etc.), e uma forma acessória, secundária, porque geralmente vem apensa, ou seja, pendurada, a uma forma maior, seja o conto, o artigo, o poema, o ensaio, o diálogo teatral. Mas a frase perfeita, lapidar, irretocável, escrita e publicada a sós, é uma forma de arte, SIM. 
 
Pois bem: quando um bom fazedor de frases tem uma idéia para uma frase boa, eficaz, ele não resiste a dizê-la, mesmo que isso signifique, como no episódio de Chico Anysio, uma vitória de Pirro, em que o sujeito ganha mas logo em seguida percebe que sofreu uma derrota maior que essa vitoriazinha momentânea.
 
Este fenômeno está incluído na mesma categoria de outro caso proverbial: o sujeito que “perde um amigo mas não perde uma piada”. Quando a piada ocorre ao piadista, ele tem a compulsão irresistível, neurótica, freudiana, de dizê-la – mesmo que isto signifique perder uma amizade. Mesmo que signifique perder uma queda-de-braço simbólica com um general.
 
Que importância tem isso?
 
Esse fenômeno está ligado a outro aparentemente muito distante, que é O Mito Do Artista Sofredor. O mito do poeta que escreveu seus melhores versos quando passava fome – mas não conseguia parar de escrever. Escrever era mais importante do que alimentar-se. Tendo a idéia para um soneto perfeito, ele passava dias trancado na água-furtada, sem ânimo para mendigar um pão, mas rabiscando, rasurando e alinhavando uma ou duas linhas por dia, até a obra-prima ficar pronta.
 
Muitos artistas bradam aos quatro ventos que a criação é algo que ferve nas suas veias, e que não criar, para eles, é sinônimo de morrer.
 
Os produtores-executivos leem essa entrevista no jornal, e pensam: “Ótimo, vou cortar metade da verba, visto que ele ‘não consegue deixar de ser criativo’”.
 
É diferente o caso dos artistas “meio mercenários”. Feito aqueles diretores de cinema que mandam parar a produção no instante em que uma parcela do dinheiro atrasa. “Volta todo mundo pro hotel. Só tem filmagem quando o dinheiro aparecer.” Para algumas pessoas, é um interesseiro, um prostituído. Para outras, é um sujeito prático: ele sabe que só assim se negocia com produtores – interrompendo a produção.
 
Chico Anysio poderia ter dito: “Não leve a mal, General Fulano, mas eu só conto piada para quem paga o meu salário, que no caso é o doutor Roberto Marinho”. Mas não, a mente dele era formatada para ter sempre uma piada pronta na ponta de língua, e o general talvez fosse perceptivo o bastante para saber disso.
 
Tem outra piada antiga, que mostra os perigos dessa compulsão. O Bobo-da-corte está conversando com o Rei e no meio da conversa diz: “Às vezes uma desculpa é pior do que uma ofensa.”  O Rei não vê sentido nisso e diz: “Você tem dois minutos para demonstrar isso, senão mando cortar sua cabeça.”  O Bobo fica meio desconcertado mas, um instante depois, o Rei dá-lhe as costas para falar com o Grão-Vizir, e o Bobo enfia o dedo na sua bunda. O Rei dá um pulo enorme, indignado, e o Bobo diz: “Desculpe, majestade, pensei que fosse a bunda da rainha.”
 
Neste segundo caso, o Bobo soube reverter a provocação do poderoso e saiu ganhando. (Pelo menos simbolicamente – a piada termina aí, sem registrar a reação final do Rei.) Ele tinha feito uma observação não-engraçada. O Rei questionou o que ele disse, fez-lhe uma ameaça... e só então a verve piadística entrou em ação, com uma dupla vingança, porque envolveu com seu deboche tanto o Rei quanto a Rainha. Já que um Bobo-da-corte tem salvo conduto para dizer o que quer, ele sentiu firmeza e pegou pesado.
 
Embora talvez a gente possa imaginar que Chico Anysio também saiu ganhando alguma coisa. Ele disse a piada. O general não deu o tiro de canhão. A piada faz parte da vida, faz parte das conversas entre amigos e conhecidos, piada é coisa que se diz na casa da gente, no colégio, no trabalho, na mesa de bar. Uma coisa que até um general entende, até um general aprecia.
 
Tiro de canhão é diferente. Tirando os treinamentos, tiro de canhão se dá em guerra, em golpe, em atentado, em revolução, e seu objetivo é um só – matar e destruir.
 
Talvez Chico Anysio estivesse sugerindo, veladamente:
 
– Digo a piada sim, general, e deixo de graça, como os vendedores de amendoim dão uma derramadinha de graça em toda mesa de bar, mesmo sabendo que a maioria daqueles cervejantes não vai lhe comprar um pacotinho. A derramadinha é para o cara ficar lembrando o quando é bom comer um amendoim salgado com uma cerveja bem geladinha. Se não comprar hoje, compra noutro dia. E se não comprar a mim, compra a outro vendedor tão precisado quanto eu, e a vida é assim mesmo, os rios só correm para o mar, e talvez o pacote que eu vendo hoje seja resultado de uma derramadinha que um colega deixou na mesa desse cara duas noites atrás.
 
A piada era para dizer: “Está vendo, general, como uma piada é algo mais simples, mais agradável e mais nosso do que um tiro de canhão? Está vendo como o senhor precisa do meu produto, e eu não preciso do seu?”.
 
 







quarta-feira, 7 de abril de 2021

4691) "Cat Ballou", a mocinha e os três mocinhos (7.4.2021)


 

Este antigo faroeste dirigido por Elliot Silverstein, Dívida de Sangue (“Cat Ballou”, 1965) é uma curiosa mistura de faroeste, comédia e musical. Aquilo que a gente chamava de “um filme leve”, onde as coisas acontecem com uma certa dramaticidade mas a gente sabe que não existe a menor possibilidade de não ter um final feliz, onde as pessoas simpáticas são recompensadas e as antipáticas sofrem o devido castigo.
 
Foi o primeiro filme que vi com Jane Fonda, bem no começo de minha carreira de cineclubista, e um dos primeiros em que comecei a aplicar de forma conscienciosa os ensinamentos de livros preciosos como Elementos de Cinestética do Padre Guido Logger ou A Linguagem Cinematográfica  de Marcel Martin.
 
Cat Ballou é a filha única de um fazendeiro viúvo, que é assassinado por uma questão de terras, por um pistoleiro a mando dos ricaços locais. Ela junta um grupo de amigos jovens, contrata um pistoleiro para se vingar, consegue, mas continua a meter-se em sarilhos e é condenada à forca. Três minutos antes do fim do filme, escapa espetacularmente.


 
Lembro que na época a gente chegava a discutir se aquilo era um faroeste (porque a ambientação é de cowboys), uma comédia (porque há uma porção de cenas engraçadas), um filme romântico (porque um dos amigos de Cat procura conquistá-la durante o filme inteiro, e consegue) ou um musical (porque o filme é narrado musicalmente, com dois tocadores de banjo cantando cordelmente a vida de Cat Ballou).
 
Pode ter sido um dos filmes em que comecei a entender que os gêneros literários ou cinematográficos existem como conjuntos de elementos a que as obras podem recorrer ou não. Não faz sentido dizer “o filme X pertence ao gênero Y”. Um filme não “pertence” a nada, um filme usa elementos de um gênero, ou de mais de um, conforme a conveniência de quem o escreve e dirige.
 
Trinta anos depois eu estaria discutindo se Alien, o 8º. Passageiro, era um filme de horror ou um filme de ficção científica. E constatando que para muitas pessoas a única coisa importante para se saber de um filme é “A Que Gênero Ele Pertence”, e uma vez estabelecido isso, pode-se passar adiante e ir falar de outro assunto.
 
Revi agora Cat Ballou, meio achando que estava perdendo meu tempo em rever algo que já assisti duas ou três vezes quando tinha 17 anos. Melhor ir ver filme novo, não é mesmo? 

 
Foi bom ter visto, para apreciar melhor o lado cordelesco do filme. A crítica norte-americana sempre se refere aos músicos que narram a história (Nat King Cole e Stubby Kaye) como “uma espécie de coro grego”, que descreve situações, avisa o que vai acontecer e depois comenta o que aconteceu. Acho curioso que essa crítica se detenha tão pouco sobre os “cordelistas” do tempo do faroeste, que estão presentes (e com presença importante) em tantos filmes.
 
São os poetas ambulantes que escrevem em revistinhas baratas (chapbooks) as aventuras dos Billy The Kid e dos Bat Masterson de sua época. Fazem o que no Nordeste faziam Leandro Gomes de Barros, Francisco das Chagas Batista e João Martins de Athayde narrando as proezas e as crueldades de Antonio Silvino ou Lampião.


 
Logo no começo do filme vemos Cat Ballou sendo embarcada no trem por uma tia protetora, e abrindo um livrão escuro, encadernado, que ela comenta com o vizinho de cabine ser um volume de poesias de Tennyson. Segundos depois, escapa de dentro do livrão um chapbook barato onde se contam as aventuras do pistoleiro Kid Shelleen. Lá pelo meio do filme, depois que o pai é assassinado, ela reencontra o cordel e é através dele que se dispõe a contratar Kid Shelleen para executar sua vingança. Chega-lhe à porta um pistoleiro andrajoso, bêbado, um pistoleiro-pastelão. O desencanto dela é o de todos que confundem a lenda impressa com a vida real.  



 
Stubby Kaye Nat King Cole, por sua vez, são personagens que eu acho mais brechtianos do que gregos, porque eles estão de banjo em punho no meio da rua, dentro das salas, diante do cadafalso, a poucos metros dos personagens da história que narram. Estão cantando “The Ballad of Cat Ballou” numa mistura sedutora de improviso (porque os fatos que eles narram estão acontecendo naquele instante, à sua volta) e de balada tradicional (porque é este o ponto de vista narrativo).
 
E com isso eles colocam o filme no gênero que invento agora, o “Cordel do Faroeste”, e quem achar que é exagero assista Os Imperdoáveis (1992, “Unforgiven”) de Clint Eastwood, Um De Nós Morrerá (1958, “The Left Handed Gun”) de Arthur Penn e outros. Há sempre um cordelista de lápis e papel em punho, acompanhando os indivíduos que fazem História. 
 
Outro aspecto interessante é a distribuição de personagens masculinos servindo como ajudantes a uma personagem feminina que tem uma jornada a cumprir. Parece ser um arquétipo narrativo, não sei se típico da narrativa norte-americana.
 
Tomei consciência disso pela primeira vez lendo uma entrevista de Karen Joy Fowler (a autora de The Jane Austen Book Club) em que ela comentava seu (excelente) romance meio-fantástico, Sarah Canary (1991). Esse livro transcorre no Oeste norte-americano, na mesma época de Cat Ballou. Nele aparece “do nada” uma mulher estranha, que não entende inglês e não fala nenhuma língua conhecida. Ela ganha o apelido de “Sarah Canary” porque apenas emite uns piados de pássaro.


Essa mulher é recolhida a um asilo, foge, e passa a ser protegida por um grupo de indivíduos jovens, meio marginalizados: um chinês, um esquizofrênico paciente do asilo e um agente postal. Eles viajam a pé, são perseguidos, metem-se em aventuras, e aqueles três caras estão protegendo, de maneira até inexplicável para eles, aquela mulher feia, estranha, e que não se comunica com eles. (O leitor de FC deduz que ela é uma alienígena extraviada.)
 
Numa entrevista, Karen Joy Fowler comentou que concebeu esse estranho grupo de pessoas tendo como referência os personagens de O Mágico d Oz: A menina Dorothy, cercada pelo Homem de Lata, o Espantalho e o Leão Medroso. E disse achar interessante que nenhum crítico tivesse atentado para esse fato.
 
Bem, a Internet atentou recentemente para o fato de que existe uma distribuição parecida de personagens em Star Wars: a princesa Leia, cercada por Han Solo, Chewbacca e C-3PO.



Não duvido haver uma longa lista de histórias em diversos gêneros (fantasia, cavalaria, etc.) em que uma personagem feminina aparece acompanhada por “galantes cavaleiros” dispostos a tudo por ela. É o caso de Cat Ballou, que conta com a ajuda e a companhia afetiva de três rapazes: o "tio", o "sobrinho" e o índio, que a ajudam a contratar o pistoleiro Kid Shelleen e consumar sua vingança.