sexta-feira, 24 de março de 2023

4925) Sete autores obscuros (24.3.2023)




1
Tomás Carmelo Fiúza (1915-1998), contabilista, paraense de Marabá, casado, três filhos. Dedicou sua vida à criação do volumoso poema épico Tábua Esmeraldina, em doze cantos e cerca de 60 mil versos, contando a criação da floresta amazônica desde os dias do Jardim do Éden até a época atual. O poema usa a Tábua de Logaritmos como guia numérico, num sistema inventado por Tomás na adolescência, e aperfeiçoado durante a vida inteira. Por meio dele, era-lhe possível governar o número (variável)  de estrofes em cada Canto, o número de versos em cada estrofe, e o número de sílabas em cada verso. Após sua morte, os filhos se cotizaram para financiar uma edição eletrônica da obra, cuja publicação em papel foi considerada “inviável” pelas trinta e sete editoras a quem foi submetido o manuscrito. 

 

2
Lauro B. Kronka, 41 anos, funcionário público, ao dirigir consertos no sistema subterrâneo de esgotos de Cracóvia, descobriu uma galeria que dava acesso ao terreno exatamente por baixo do edifício para onde, após a II Guerra Mundial, tinha sido transferido o Banco Estadual, sem levar em conta a rede de galerias já existente naquele subsolo há mais de cem anos. Este fato o levou a escrever e publicar o romance policial O Assalto da Véspera de Natal,  onde descrevia com riqueza de detalhes a ação de um grupo de ladrões que esvaziava o cofre-forte do Banco por aquela via subterrânea. Mal a obra chegou às livrarias, o Banco comprou e incinerou toda a tiragem, reforçou a segurança do cofre, e deu a Lauro B. Kronka um “cala-a-boca” sob a forma de um salário vitalício para que não revelasse a ninguém os aspectos mais peculiares do trajeto que havia descoberto. 



3
Anália Cedro da Costa, bibliotecária, solteira, faleceu aos 68 anos, deixando inédito o livro de memórias que, por ocasião de sua festa dos cinquenta anos, anunciou à família estar escrevendo. De fato, quando os herdeiros tiveram acesso aos seus arquivos pessoais, constataram que durante todo esse tempo ela se limitara a produzir dezenas de versões, muito diferentes entre si, do primeiro (e finalmente único) capítulo, intitulado “Meu Nascimento”, que ela reescreveu obsessivamente, em todos os estilos, todos os pontos de vista, todas as convenções narrativas ao seu alcance, o que resultou num volume com mais de 500 páginas de versões desse capítulo, as quais só tinham em comum entre si a frase inicial: “Nasci numa manhã chuvosa de segunda-feira, e manhã chuvosa de segunda-feira tem sido a minha vida desde então.” 


4
Roberto Espiridião de Lima, mineiro de Juiz de Fora, cresceu colecionando gibis e livrinhos de bolso, até se mudar para o Rio de Janeiro, casar aos 19 anos com a namoradinha grávida, instalar-se vitaliciamente num conjugado na Rua Benjamin Constant, e entrar num parafuso sem fim de trabalhos mal remunerados mas que ele executava com fervor, bendizendo a sorte. Arranjou numerosas tarefas de revisão e “tradução livre” em várias editoras pequenas, onde logo passou a publicar suas próprias aventuras de faroeste, sob pseudônimo; livrinhos de 80-100 páginas que ele começava a escrever numa terça-feira e entregava na segunda-feira seguinte. Ao morrer de enfarte aos 55 anos deixou anotações metódicas comprovando que ao longo de mais de três décadas municiou sem parar editoras como a Monterrey, a Bruguera, a Cedibra, as Edições de Ouro, a Vecchi e a Rio Gráfica Editora, tendo publicado ao todo 238 títulos, sob 203 pseudônimos diferentes. 


5
Lindalva Martins, alagoana de Penedo, prendas domésticas, nunca se casou, e morreu aos 103 anos depois de ter sido cuidada pelos pais, pelos irmãos, e pelos sobrinhos, sucessivamente. Escreveu poemas desde a infância mas nunca se interessou em publicá-los. Diz a família que nunca houve um dia em sua vida em que ela não escrevesse vários poemas, curtos ou longos, geralmente em folhas de caderno espiral que ela depois arrancava e dava de presente a quem estivesse por perto. Quando completou 100 anos, foi visitada por jornalistas e equipes de televisão. Afirmou que esquecia os poemas logo depois de escrevê-los. Perguntada de onde lhe vinha uma inspiração tão incessante, ela estendeu o braço (estava sentada em sua caminha de solteira, no quartinho-dos-fundos onde dormia), pegou uma caneca de lata, enfiou o dedo indicador na asa e fez um movimento ilustrativo, enquanto explicava: “A poesia não pára, é um riachinho que vive passando, dia e noite, aí quando eu tou com sede eu pego minha canequinha, e...” 



6
Harry Greene Holt, 37 anos, natural de Albany (NY), desde os 11 anos estudou a fundo a obra de Quentin Tarantino, tendo composto antes dos 18 anos uma meticulosa tábua cronológica e genealógica relativa a todos os filmes do diretor. Escreveu centenas de cartas e emails para ele, tendo recebido apenas uma resposta, em 2002 – uma foto autografada, sem dedicatória. Isto redobrou suas esperanças e seu otimismo. Em 2016 ele concluiu o seu romance épico, uma saga policial-criminal em 8 volumes, Los Vegas, cujo objetivo era preencher ficcionalmente todas as lacunas existentes entre os filmes do diretor, que, numa atitude incompreensível, sempre se recusou a recebê-lo. 



7
Coriolano Bernardes, nascido em 1868, carioca, comerciante, charadista, estreou na poesia em 1891 com o volume de sonetos Versos Versáteis, que teve acolhida morna por parte da crítica, e cujo título foi na época considerado uma imitação dos Versos e Versões (1887) de Raimundo Correia. Três anos depois veio à luz sua segunda obra, Versos Perversos, que desta vez foi negativamente comparada aos Versos Diversos (1890) de Antonio Sales. O desgosto e o ressentimento produziram um longo hiato na carreira do autor, que parou de publicar, mas não de escrever, tanto que deixou pronta e revisada, ao morrer em 1917, a obra póstuma O Holocausto dos Leopardos Verdes no Castelo Ateu de Zanzibar.