quarta-feira, 27 de setembro de 2023

4986) Drummond: "Sociedade" (27.9.2023)



(Carlos Drummond -- auto-caricatura)

Um ângulo interessante da poesia modernista, que de certa forma se cristalizou após a Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, é o modo como a nova poesia começou a se aproximar da prosa, e, mais precisamente, da crônica, um gênero literário praticado e consumido sem problemas no Brasil. 
 
A crônica é um tipo de voz literária que se dirige ao leitor de modo um tanto informal, e que o leitor aceita com a mesma descontração. O que fazia muita gente rebaixar a crônica como gênero literário . Na época em que Carlos Drummond publicou seu primeiro livro (Alguma Poesia, 1930) vigorava (embora não por unanimidade) a visão de que a Arte teria que ser necessariamente solene, e a linguagem poética teria que ser necessariamente uma linguagem “elevada”. A poesia, portanto, podia se aproximar da epopéia, mas não da crônica. 
 
A crônica dispensava essas elevações, conversava com o leitor, e pode ter sido, ela também, uma influência a mais no estilo que Machado de Assis transportou para o conto e para o romance. Ao invés de um narrador onipotente contando uma história para um leitor invisível, o romance de Machado – a partir de Brás Cubas (1881) – adotou esse tom conversacional, coloquial, de trocar-figurinhas com o leitor enquanto lhe relata os acontecimentos. 
 
Isso vazou para a poesia, e isto que eu chamo de poema-crônica tornou-se cada vez mais frequente – e cada vez mais perseguido pelos defensores da poesia-em-cima-de-um-altar.

Drummond assimilou, com a espontaneidade de quem por fim encontrou sua turma, essa irreverência que hoje pode nos parecer meio bobinha, mas na época era um escândalo em copo dágua.
 
“Sociedade” é um dos poemas de Alguma Poesia em que esse veio aparece de forma mais divertida. Um poema de cortes rápidos, falas curtas, descrição minimalista, que de certo modo faz um contraponto às famigeradas colunas sociais onde se redigem, séculos afora, notas tipo: “O Sr. e a Sra. Fulano receberam nesta sexta-feira, para jantar, a visita do casal Sr. e Sra. Sicrano, personalidades de destaque de nossa sociedade...” 
 
“Me aguarde ...” (deve ter pensado o tímido Carlos Drummond).
 
Sociedade
 
O homem disse para o amigo:
– Breve irei a tua casa
e levarei minha mulher.
 
O amigo enfeitou a casa
e quando o homem chegou com a mulher,
soltou uma dúzia de foguetes.
 
O homem comeu e bebeu.
A mulher bebeu e cantou.
Os dois dançaram.
O amigo estava muito satisfeito.
 
Quando foi hora de sair,
o amigo disse para o homem:
– Breve irei a tua casa.
E apertou a mão dos dois.
 
No caminho o homem resmunga:
– Ora essa, era o que faltava.
E a mulher ajunta: – Que idiota.
 
– A casa é um ninho de pulgas.
– Reparaste o bife queimado?
O piano ruim e a comida pouca.
 
E todas as quintas-feiras
eles voltam à casa do amigo
que ainda não pôde retribuir a visita.
 
O poeta generaliza os tipos (“o homem”, “a mulher”, “o amigo”). Deixa implícita a hierarquia social entre os dois, porque não é o amigo que convida: o homem anuncia, sem papas na língua, que irá à casa do outro. A dúzia de foguetes soltados pelo amigo reforça o sentido de que aquela visita é um evento notável. O amigo sente-se, a partir daí com crédito a um convite semelhante, mas nada disso acontece. É o casal visitante quem repete a visita conforme lhe dá na vontade. Na vida social, manda quem pode, obedece quem tem juízo. 
 
O amigo, anfitrião desta primeira visita, anuncia timidamente que irá à casa do “homem”, mas este não corresponde. Sai falando mal do jantar – e quem, com toda sinceridade, nunca foi à casa de alguém para depois sair botando defeito na decoração, na discoteca, no comportamento das crianças, no menu, nos modos à mesa?... 
 
A vida social, neste retrato drummondiano (mordaz e sincero), é uma relação verticalizada, entre pessoas de diferente status social, em que os De Cima se aproveitam dos De Baixo, cobram favores que não retribuem, exigem atenções, desfrutam o que lhes agrada, e no fim de tudo saem falando mal como modo de reafirmar a própria superioridade: “Eles não estão à nossa altura”. 
 
Manuel Bandeira se queixava de que grande parte da má fama dos modernistas se devia ao temperamento galhofeiro do grupo, e seus poemas-piada. Carlos Drummond já observou que no seu famoso poema da pedra no meio do caminho o que irritava os críticos nem era o abstracionismo do conteúdo, mas o fato de que ele escrevia “tinha uma pedra”, em vez de “havia uma pedra”, como teria escrito um “poeta culto” de 1930.
 
Uma boa parte desta má fama, no entanto, pode ser atribuída a essa disposição para zombar das frivolidades sociais, das hipocrisias de classe, das amizades interesseiras, do alpinismo social baseado no sorriso fácil e no tapinha nas costas.